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Em defesa da falência continuada

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Dentre as inovações da Lei n.º 11.101/05, talvez uma das mais importantes tenha sido a previsão da possibilidade de continuação das atividades da falida, após a decretação da falência, como meio de preservação de valor do ativo até a sua liquidação para pagamento do passivo.  Diz se “inovação” com certa reserva, pois a lei anterior – o nem um pouco saudoso Decreto Lei 7.661/45 – de certa forma já continha algumas disposições que permitiam a continuação dos negócios do falido.  Mas de forma muito pouco eficaz, sendo praticamente letra morta, de modo que se pode, sem exagero, tratar o conceito insculpido na Lei n.º 11.101/05 como verdadeira inovação, sim, especialmente quanto ao seu status de ferramental jurídico concreto e efetivo para tornar a continuação de negócios da falida – finalmente – uma realidade.  A lamentável constatação, porém, é de que, apesar de alvissareira e óbvia, a iniciativa, surpreendentemente, ainda não ganhou corpo na prática falimentar brasileira, o que é um grave erro a ser corrigido.
Emprestada do direito falimentar estadunidense – que prevê tal possibilidade no §721 do Chapter 11, US Bankruptcy Code  –, a falência continuada visa à preservação do valor intangível inerente à organização de fatores produtivos (empresa), ainda que o titular de tais fatores produtivos organizados não tenha mais futuro como seu organizador (empresário). Evita se que a necessária interrupção do aumento de endividamento, com a liquidação dos ativos para pagamento dos passivos do empresário (no mais das vezes, da sociedade empresária), resulte na desagregação destes fatores produtivos que ela agregou e organizou – ou, em outras palavras, que a falência da sociedade empresária resulte na destruição da empresa.  Se a empresa de propriedade da sociedade empresária falida se mantém operante, com sua falência, esta empresa fica preservada como um ativo mais valioso do que a simples soma dos ativos inertes congregados para a sua formação. Isto maximiza o valor do ativo e, portanto, aumenta a expectativa de pagamento das dívidas.
Ainda há, embora secundário, outro benefício na falência continuada: garantir a continuidade  também do fornecimento de bens ou serviços importantes para o mercado, quando a organização de uma empresa para fazê lo demanda o emprego de esforços extremos e a suplantação de grandes obstáculos, sendo difícil a mera substituição rápida da sociedade empresária insolvente por outra sociedade empresária fornecedora.
Quanto ao procedimento, ao contrário da crença de muitos, não é de grande complexidade: a Lei n° 11.101/05 determina que, com a decretação da falência, o juízo nomeará um administrador judicial para desempenhar diversas funções, ficando responsável pela administração dos bens e representação da massa falida. O juízo também pode determinar, na mesma decisão, que o administrador judicial continue provisoriamente a atividade empresarial da falida, seja atendendo a pedido de um credor, do falido, do administrador judicial ou determinado de ofício pelo juízo. A administração das atividades pode ser exercida por um gestor durante a continuação das atividades, preferencialmente selecionado levando se em consideração a atuação e expertise no ramo de negócios da falida. A remuneração deste gestor será fixada pelo juízo e o seu pagamento tem ampla preferência na ordem de prioridades estabelecida em lei, o que privilegia e deveria incentivar o interesse de profissionais qualificados a buscarem atuação neste tipo de atividade.  Nada impede que a remuneração seja variável, ou mista, como um incentivo ainda maior para eventuais interessados nesta gestão.
Mas se os benefícios são tão claros e o procedimento não parece ser um mistério, pergunta se:  por que ainda é tão rara a adoção da “falência continuada”?  A resposta está, em grande parte, na barreira cultural de operadores – juízes, administradores judiciais, promotores, advogados – que continuam partindo da premissa de que “a falência é o pior resultado” e, com isto, mantêm vivas, por muito mais tempo do que deveriam, sociedades empresárias moribundas, muitas vezes irrecuperáveis, enquanto suas respectivas empresas (seus negócios, suas operações) definham, até um ponto em que, no momento da decretação da falência, não há – de fato –nada mais a ser continuado.  E existe uma estranha relação de causa e efeito entre ambos os aspectos: se, por um lado, a cultura de não se levar sociedades empresárias à falência leva à carência de casos de falência continuada, por outro, esta carência de precedentes acaba alimentando a própria cultura de se evitar a falência de empresários, como se fosse a única forma de preservação da empresa – numa tautologia tão angustiante quanto prejudicial. 
É bastante comum que operadores, ainda que diante de casos em que a recuperação judicial é descumprida, inviável, ou mal-conduzida – sendo a “falência continuada” uma opção razoável e disponível – partam do pressuposto de que simplesmente não há precedentes e temam, até justificadamente, que o caso sob sua responsabilidade (seja como magistrado, promotor, administrador judicial, ou advogado) seja a “cobaia” de um experimento cujo resultado é imprevisível. Ledo engano. 
Procurando contribuir para a interrupção deste círculo vicioso, buscamos identificar e sintetizar alguns casos em que operadores mais seguros não hesitaram em lançar mão deste mecanismo disponibilizado pela Lei n.° 11.101/05, com bons resultados – como era mesmo de se esperar. 
Um dos primeiros casos processados sob a égide da Lei n° 11.101/05 foi o da Viação Aérea Rio Grandense S.A., a Varig, distribuído à 1ª Vara Empresarial do Foro da Comarca do Rio de Janeiro, originalmente apresentado na forma de recuperação judicial. A Varig teve seu plano aprovado ainda em 2005. Em 2006, o então presidente da Varig, Sr. Marcelo Bottini, foi destituído de seu cargo pelo juízo da recuperação, sob o fundamento de que a medida seria benéfica para o cumprimento, pela Varig, dos termos do seu plano. Naquela oportunidade, o juízo designou a Licks Contadores Associados como gestora judicial da Varig, que passou a ser responsável pela condução de todas suas atividades. Em 2010, depois de inadimplir certas obrigações previstas no plano, o próprio gestor judicial requereu a convolação da recuperação judicial em falência, informando ao juízo que havia interessados na aquisição de partes das operações da Varig, notadamente aquelas relacionadas ao Centro de Treinamento de Operações de Voo, e ao setor de rádio e comunicações de aviação aérea.  De tal forma, o gestor judicial requereu a autorização do juízo para que a Varig continuasse a operar entre a declaração da falência e a venda dos ativos.  O juízo da 1ª Vara Empresarial do Foro da Comarca do Rio de Janeiro acolheu os pedidos formulados pelo gestor judicial e, em 20 de agosto de 2010, decretou a falência da Varig, autorizando, porém, que se mantivessem estas operações, tal como pedido por seu gestor.
Outro caso notório de falência continuada foi processado no Estado de Goiás, onde o Grupo Avestruz Master – produtora de avestruz que operava praticamente uma pirâmide financeira – teve sua falência declarada depois que suas fraudes tornaram se públicas. A falência foi decretada em 2006 e, na mesma decisão, o juízo falimentar determinou que a massa falida continuasse a operar de forma a evitar perecimento de produtos estocados em câmara frigorífica. A decisão do juízo falimentar foi recorrida pelos antigos sócios do Grupo Avestruz Master, mas mantida pelo Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Aliás, este tipo de dinâmica evidencia o que está sendo realmente protegido quando se retarda a decretação de uma falência sob o argumento da “preservação da empresa”:  no mais das vezes, é o interesse dos detentores do capital da sociedade empresária, e não a alegada “preservação da empresa”, ou os interesses dos credores. Esta preservação pode ser alcançada com a determinação de continuação das atividades, para que a “empresa” –  em sentido técnico, como conjunção de fatores econômicos visando ao lucro, o que não se confunde com a sociedade empresária – seja vendida a terceiros, o que é a forma preferencial de realização do ativo, nos termos do Art. 140 da Lei n° 11.101/05.

 

As cortes paulistas também tiveram a oportunidade recente de aplicar a falência continuada no processo envolvendo a Mondelli Indústria de Alimentos S.A., operadora de frigoríficos sediada na cidade de Bauru. A Mondelli ajuizou sua recuperação judicial em janeiro de 2012, buscando reorganizar seu passivo e continuar suas atividades empresariais.  Em agosto de 2013, depois de ter negado a homologação do plano aprovado em assembleia e ter concedido prazo para apresentação de um novo plano, o juízo de Bauru determinou o afastamento dos administradores da Mondelli devido a indícios de prática de crimes falimentares, nomeando a credora Hapi Comércio de Alimentos Ltda. como sua gestora.  O afastamento dos administradores da Mondelli foi submetido ao Tribunal de Justiça de São Paulo na voz dos antigos administradores, que foi ecoada por alguns dos credores e pelo comitê de credores, atuando como intervenientes naquele recurso, especialmente em conta da alegada relação de parentesco entre os sócios da Hapi e os administradores destituídos. A decisão do juízo de Bauru foi mantida naquela instância. Em janeiro de 2015, com base em fatos da mesma natureza daqueles que conduziram ao afastamento de seus administradores, o juízo de Bauru decretou a falência da Mondelli, determinando, porém, a continuidade de suas atividades até a realização de seus ativos.

Vê se que, apesar de casos de “falência continuada” no Brasil ainda serem raros, não são inexistentes, como muitos pensam ou presumem.  E, onde foi testada, funcionou muito bem como uma “terceira via” entre a manutenção de uma recuperação judicial insustentável e a simples decretação da falência com a lacração dos estabelecimentos.

Enquanto isso, são inúmeros os exemplos de sociedades empresárias que, em recuperações judiciais inviáveis, descumpridas ou mal-conduzidas, claudicam durante anos, como zumbis empresariais, gerindo o negócio (a verdadeira empresa, em sentido técnico) de maneira ineficiente, sem acesso a capital e sem possibilidade de crescimento ou mesmo estabilização, apenas aumentando o passivo e diminuindo o ativo da futura massa falida.

Está na hora, portanto, de o sistema brasileiro de insolvências abandonar os preconceitos e reconhecer nas “falências continuadas” uma solução que conjuga, de um lado, a necessidade de encerramento de recuperações judiciais inviáveis, inadimplidas, ou de maneira geral mal-conduzidas, cujo arrastamento é francamente prejudicial a credores e interessados em geral, e, de outro, a preservação da empresa (o negócio, a atividade), para que seja alienada a empresário viável, com melhor gestão e acesso a capital.

"11 U.S. Code §721 – Authorization to operate business. The court may authorize the trustee to operate the business of the debtor for a limited period, if such operation is in the best interest of the estate and consistent with the orderly liquidation of the estate."
  Art. 140. A alienação dos bens será realizada de uma das seguintes formas, observada a seguinte ordem de preferência:
I – alienação da empresa, com a venda de seus estabelecimentos em bloco;
II – alienação da empresa, com a venda de suas filiais ou unidades produtivas isoladamente;
III – alienação em bloco dos bens que integram cada um dos estabelecimentos do devedor;
IV – alienação dos bens individualmente considerados.
 

Autor(a)
Eduardo Mattar
Informações do autor
Eduardo Mattar é sócio no escritorio Pinheiro Guimaraes Advogados
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