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O PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA PELA PERSPECTIVA DO PODER JUDICIÁRIO

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Pedro de Melo Ferraz[1]

Marcio Roberto Marques[2]

Não parece possível, tampouco adequado, tratar do princípio da função social da empresa sem que, antes, introduza-se sua correlação intrínseca com o próprio instituto da função social, este que se desdobra em diversas outras espécies de princípios, como o da função social do contrato e da propriedade.

A ciência do Direito é o campo de ação de diversos princípios, os quais são considerados os pilares do 'edifício jurídico'.[3] Dentre tantos, um que suscitou singular distinção e debate com a promulgação da Constituição de 1988 foi o da função social, pois extremamente compatível com o novo paradigma trazido com sua chegada.

A partir da inserção desse princípio no ordenamento jurídico brasileiro foi possível ver sua ramificação se espalhar por diversas normas da Constituição Federal, do Código Civil, do Código de Defesa do Consumidor, bem como de legislações esparsas, tais quais a Lei das Sociedades por Ações, Lei de Falência e Recuperação Judicial, Estatuto da Cidade, dentre outros.

Quanto à conceituação desse princípio, assim como é nos demais, sua dificuldade reside em precisar suas características essenciais e distintivas – entre si e dentre os demais institutos jurídicos –, de forma que, não raras as vezes, a literatura jurídica, impossibilitada de dar uma resposta concreta sobre “o que é”, limita-se a determinar o “para que serve”, preenchendo seu conceito com sua função prática.

Por esta razão se faz de suma importância a realização da análise da interpretação do princípio pelos aplicadores, uma vez que o grau de abstração do princípio diminui conforme este é interpretado para ser aplicado ao caso concreto.[4] Mesmo com uma determinação pouco precisa quanto à conduta, com o enfoque voltado mais ao objetivo a ser atingido, os princípios são ferramentas essenciais e amplamente utilizadas no ordenamento jurídico.

Não se exige para a interpretação e aplicação do princípio uma precisa correspondência com um fato. O que se exige é um exame de correlação entre os fins objetivados e as condutas necessárias à sua promoção.[5]

É fácil observar a relação amplamente conectada entre os princípios da função social da propriedade, do contrato e da empresa, principalmente quando observada a necessária comunicação entre esses institutos para seus respectivos funcionamentos. A exemplo, tem-se que a relação contratual é a base fundamental da constituição da empresa, assim como a principal ferramenta de sua atividade. Ainda, a relação de propriedade se faz presente em toda a extensão da relação empresarial, seja nos bens que compõem seu estabelecimento ou o próprio capital necessário para sua constituição e funcionamento.

Seguindo com a análise da conceituação da função social da empresa, compreendeu a doutrina, em um primeiro momento, ser esta referente à existência de externalidades, a saber, impactos da atividade empresarial externos à própria empresa, atingindo sujeitos não diretamente vinculados a ela ou suas atividades.[6]

Ainda, o princípio da função social da empresa pode ser compreendido como um limitador do exercício de um direito – como o da livre promoção da atividade empresarial – ou como norma condicionante de atuação positiva quando sua interpretação origina um dever, a exemplo do que acontece na matéria de direito ambiental no tratamento adequado do produto da atividade e atenuação dos danos ao meio ambiente.

Sob outra perspectiva, Fábio Ulhoa apresenta entendimento de que a função social da empresa se trata de uma acepção originalmente positiva, um esforço em criar um ambiente adequado e útil ao sistema em que a empresa esteja inserida, incluindo neste aspecto as relações interempresariais. Em outras palavras, seria este a promoção do bom funcionamento da empresa.[7]

Nesse recorte, a análise verticalizada da aplicação prática do princípio da função social da empresa se dará pelo estudo da interpretação feita pelo Poder Judiciário na oportunidade de julgamento dos casos que se veem na necessidade de aplicação do princípio-função no fato posto em análise.

Importa verificar o entendimento tomado pelos tribunais quando da interpretação desse princípio para a aplicação ao caso concreto, possibilitando, assim, maior compreensão dos limites da ferramenta, suas implicações e a viabilidade de sua utilização no dia a dia para a preservação da empresa e de sua atividade econômica.

O Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), nos últimos anos – recorte de 2020 a 2025 – utiliza-se da interpretação da função social da empresa para aplicá-lo no caso prático enquanto medida de preservação do funcionamento da empresa. Em julgamento do Agravo de Instrumento nº 0036017-77.2024.8.16.0000[8] restou apreciada a temática sob a ótica locatícia, em que uma empresa locava imóvel como atividade empresarial.

A empresa locatária, parte requerente, suscitou a utilização do princípio da função social da empresa para que sua atividade fosse preservada, muito embora estivesse inadimplente com os aluguéis. Em defesa, a empresa locadora – requerida – alegou que este mesmo princípio, caso utilizado para a preservação da locatária inadimplente, prejudicaria sua própria atividade, colocando em risco sua permanência no mercado.

Extrai-se do julgado, portanto, que esse princípio corresponde ao adequado funcionamento da empresa, com plena geração de lucro, desenvolvimento de sua atividade e de empregos, de forma que preservar sua função social seria, na mesma medida, preservar sua atividade.

Entretanto, essa proteção à atividade não é irrestrita, como perfeitamente pontuou o Desembargador Relator Marcelo Gobbo Dalla Dea em seu voto, exprimindo que os princípios Constitucionais, dos quais se extrai o da função social da empresa “não servem para proteger as partes da inadimplência das obrigações firmadas no âmbito do livre exercício da autonomia da vontade”. [9]

Sob outra perspectiva, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) em julgamento do Recurso Especial nº 1 894741 RS 2020/0234240-7[10] analisou o tema conexo preponderantemente ao Direito Tributário.

Assim, numa discussão que percorreu a ideia de aplicação do princípio da função social da empresa intentando a preservação de sua atividade em razão da ausência do recolhimento de tributos, restou entendido de que a prerrogativa da proteção da atividade econômica por meio da interpretação do princípio da função social, novamente, não é irrestrita, não se aplicando às empresas que não cumprem com suas responsabilidades fiscais, o que, consequentemente, às coloca igualmente aversas ao cumprimento de sua função social.

Por meio de seu voto, o Ministro Mauro Campbell Marques salientou que “a função social da empresa também se realiza através do pagamento dos tributos devidos, mormente quando vinculados a uma destinação social”.[11]

Concluiu-se, portanto, que o recolhimento dos tributos se relaciona também ao cumprimento da função metaindividual da empresa e contribui para o ambiente social e em que ela se insere, especialmente quando esses tributos são necessariamente destinados para programas sociais.

Sob o ponto de vista do microssistema falimentar e recuperacional existente no ordenamento jurídico brasileiro por meio da Lei nº 11.101/2005, o STJ, no julgamento do Recurso Especial nº 2.054.386/SP,[12] apresentou entendimento diametralmente inverso à preservação da empresa pela interpretação do princípio da função social.

Neste caso, ante a fragilidade da atividade empresarial e sua incapacidade de fazer frente às suas responsabilidades contratuais, o tribunal reconheceu a necessidade de exclusão da empresa do mercado – pela ferramenta da falência – em razão do risco que a sua inaptidão para a atividade gerava ao ecossistema econômico em que se inseria.

No mérito do julgamento restou entendido que, muito embora o princípio da função social da empresa preveja a manutenção de sua atividade, esta última, quando deficitária ou impossibilitada de garantir à empresa seu eficiente cumprimento, não pode ser preservada, sob o risco de prejudicar a cadeia econômica de que faz parte.

Utilizou-se o risco de prejuízo à cadeia econômica que se insere a empresa para fundamentar sua extinção – por meio do processo falimentar – de forma a conceder ao princípio da função social da empresa interpretação diversa da anteriormente proposta – prerrogativa de preservação da atividade.

Concluindo, a interpretação dos Tribunais quanto ao princípio aqui estudado se dá, em sua maioria, na utilização do princípio-função de preservação da atividade econômica, respeitando suas limitações e os interesses metaindividuais, aplicando-se somente às empresas economicamente viáveis e que cumprem efetivamente suas responsabilidades internas – relação com empregados, sócios, acionistas etc. – e externas – relação com credores, fornecedores, meio ambiente.

A manutenção da atividade empresarial é extraída da interpretação dada à promoção de sua função social. Esta que se dá, como se extrai do entendimento jurisprudencial analisado, por meio da geração de riqueza, de empregos, do pagamento de tributos ou da promoção de competitividade no mercado.

 

[1] Advogado na Marques Administrações Judiciais. Pós-graduando em Direito Civil e Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).  Graduado em Direito pela UniOpet.

[2] CEO e Administrador Judicial na Marques Administrações Judiciais. Pós-Graduado em Falência e Recuperação de Empresas pela PUCPR. Pós-Graduado em Direito Tributário pelo – Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Pós-Graduado em Auditoria e Perícia Contábil pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Graduado em Direito pelo CESUMAR e em Ciências Contábeis pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).

[3] REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

[4] ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo: RDA, Rio de Janeiro, n. 215, p. 151-179, jan./mar. 1999.

[5] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2018.

[6] SALOMÃO FILHO, Calixto. Função social do contrato: primeiras anotações. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 93, n. 823, p. 67-86, maio 2004.

[7] COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

[8] TJPR - 18ª Câmara Cível - 0036017-77.2024.8.16.0000 - Araucária -  Rel.: DESEMBARGADOR MARCELO GOBBO DALLA DEA -  J. 05.08.2024,

[9] TJPR. Recurso 0036017-77.2024.8.16.0000-Araucária, Rel. Marcelo Gobbo Dalla Dea, 18ª CC, j. 05/08/2024.

[10]  STJ - REsp: 1894741 RS 2020/0234240-7, Data de Julgamento: 27/04/2022, S1 - PRIMEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 05/05/2022

[11] STJ. REsp n. 1.894.741/RS, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 1ª Seção, j. 27/04/2022, DJe 05/05/2022.

[12] STJ. REsp n. 2.054.386/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, 3ª T., j. 11/04/2023, DJe 17/04/2023.

 

Informações do autor
Pedro de Melo Ferraz
Advogado na Marques Administrações Judiciais. Pós-graduando em Direito Civil e Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Graduado em Direito pela UniOpet.

Marcio Roberto Marques
CEO e Administrador Judicial na Marques Administrações Judiciais. Pós-Graduado em Falência e Recuperação de Empresas pela PUCPR. Pós-Graduado em Direito Tributário pelo – Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET). Pós-Graduado em Auditoria e Perícia Contábil pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). Graduado em Direito pelo CESUMAR e em Ciências Contábeis pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).

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