I. Introdução
Os quase 15 anos da edição da Lei n.º 9.307, de 23 de setembro de 1996 ("Lei de Arbitragem"), demonstram que a inovação legislativa contribuiu para o avanço do instituto da arbitragem no direito brasileiro. O desenvolvimento desse mecanismo de solução de controvérsias fez com que a arbitragem ganhasse espaço e reconhecimento no meio empresarial.
Diante desse cenário cada vez mais favorável à ampla utilização do instituto da arbitragem, incumbe aos operadores do direito analisar situações controvertidas à sua aplicação. Uma das questões que dividem opiniões é a relação entre a arbitragem e a insolvência de empresas. A incerteza em relação a esses dois institutos jurídicos não foi eliminada com a edição da Lei n.º 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 (“Lei de Falências e Recuperações”). Julgamos oportuna, desse modo, a análise de questões práticas relativas às duas leis – Lei de Arbitragem e Lei de Falências e Recuperações – a fim de verificar a viabilidade da adoção da arbitragem por empresas que se encontrem em regime de insolvência.
Sendo este um vasto campo para reflexão e debate, é necessário delimitar o objeto de nossa análise à utilização da arbitragem por empresas que estejam em regime de recuperação judicial e de falência, deixando, assim, o debate sobre a recuperação extrajudicial para outra oportunidade.
Pretende-se, para tanto, relacionar o instituto da arbitragem com as mencionadas hipóteses de insolvência e, assim, analisar duas situações distintas: possibilidade de (i) inclusão de cláusula compromissória no Plano de Recuperação Judicial (“Plano de Recuperação” ou “Plano”) da empresa devedora após sua aprovação e homologação judicial para solução de controvérsias decorrentes de seu cumprimento; e (ii) instaurar ou dar prosseguimento a procedimento arbitral previsto em contrato firmado pela empresa anteriormente à decretação de sua falência.
Ambas as situações provocam debate entre doutrinadores, chamam a atenção (e porque não dizer, trazem muitas dúvidas) dos advogados que se deparam com os novos mecanismos previstos na Lei de Falências e Recuperações, bem como exigem contínuo posicionamento do Poder Judiciário sobre o tema.
II. Instauração ou prosseguimento de arbitragem na superveniente decretação de falência de uma das partes
Os efeitos jurídicos da insolvência da empresa com relação ao instituto da arbitragem podem ainda ser discutidos sob outro ponto de vista: contratante vinculada a contrato no qual conste cláusula compromissória (tenha o procedimento arbitral tido início ou não) que subsequentemente tem sua falência decretada.
Entendemos que a decretação da falência de uma das partes contratantes não impede o cumprimento da cláusula compromissória firmada anteriormente, tanto para dar prosseguimento ao procedimento arbitral em andamento, quanto para instaurar arbitragem após o evento de insolvência.
Faz-se, no entanto, necessária a análise das seguintes questões práticas relacionadas ao tema.
- Arbitrabilidade
Inicialmente, deve-se verificar a possibilidade de submissão da questão em exame a procedimento arbitral. A resposta passa novamente pelo disposto no art. 1º da Lei n.º 9.307/96, que impõe que o objeto da controvérsia verse sobre direitos patrimoniais disponíveis.
Parte-se, assim, da premissa (que será adiante analisada) de que, inexistindo qualquer situação de insolvência quando da celebração do contrato no qual foi pactuada a cláusula arbitral, os contratantes se encontravam na livre disposição de seus bens, sem qualquer restrição à sua capacidade de transacionar.
Nesse sentido, examine-se importante precedente da Câmara Especializada de Falências e Recuperações Judiciais do Tribunal de Justiça de São Paulo: “(...) mesmo considerando-se que no processo de falência há interesses da coletividade dos credores do devedor comum, não se entrevê qualquer impedimento ao cumprimento de convenção de arbitragem pactuada anteriormente à decretação da falência, em cláusula prevista no contrato firmado por pessoas jurídicas, regularmente constituídas e apresentadas na forma de seus atos constitutivos, com plena capacidade negocial e tendo por objeto direitos patrimoniais disponíveis, conforme estabelece o art. 1º, da Lei n.º 9.307, de 1996.”[1]
Corroborando a possibilidade de instauração de procedimento arbitral por empresa insolvente, com base em convenção contratual, o Superior Tribunal de Justiça[2] considerou aplicável cláusula compromissória firmada antes da decretação do regime especial. Apesar de a decisão tratar de empresa em regime de liquidação extrajudicial, não haveria razão para impedir a aplicação desse entendimento para casos de empresas em recuperação judicial ou em cenário de falência[3].
b) Capacidade processual e disposição sobre bens
Sobrevindo a decretação da falência de uma das contratantes, os acionistas e administradores da falida perdem o poder de disposição e administração sobre os bens da empresa, que passarão a integrar o ativo da massa falida a ser administrada e representada em procedimentos judiciais e/ou arbitrais por seu administrador judicial.
Assim, a decretação da falência de empresa signatária de cláusula compromissória não gera impedimento para a instauração ou prosseguimento de arbitragem. Ocorrerá apenas uma alteração da representação da devedora no procedimento arbitral, passando o administrador judicial a representar a massa falida[4]. A indisponibilidade de bens, portanto, ocorre em relação aos antigos sócios e administradores da falida, mas não em relação ao administrador judicial, que passa a ter legitimidade para administrar o ativo da massa e a representá-la em ações judiciais ou em procedimentos arbitrais.
Portanto, não há razão para obstar o prosseguimento de arbitragem em curso ou impedir a instauração de procedimento fundado em convenção de arbitragem firmada anteriormente à decretação de falência, desde que seu objeto verse sobre direitos patrimoniais disponíveis, diante da existência de cláusula compromissória que afasta a competência do Poder Judiciário e atribui ao tribunal arbitral competência exclusiva para a apreciação do tema[5].
No entanto, em sentido contrário, foi proferido recente acórdão pela 6ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo, que sustentou a impossibilidade de instauração de arbitragem tendo como parte sociedade falida, a despeito da convenção de arbitragem ter sido celebrada antes da decretação da falência, por entender que a capacidade processual “deve ser aferida quando suscitado o cabimento da arbitragem e não ao tempo da contratação”[6].
Com o devido acatamento, não concordamos com tal entendimento, pois (i) quando da contratação da cláusula compromissória não existia qualquer óbice ou restrição à capacidade de contratar das partes signatárias; e (ii) como acima sustentado, a indisponibilidade decorrente do evento quebra aplica-se aos acionistas e administradores da empresa falida sendo certo, contudo, que a massa falida passará a ser representada pelo administrador judicial, contando, portanto, com plena capacidade processual.
- Juízo universal da falência e suspensão da arbitragem
Outra questão prática a ser abordada refere-se à eventual incidência do artigo 76 da Lei n.º 11.101/05 que prevê ter o juízo falimentar competência privativa para “conhecer todas as ações sobre bens, interesses e negócios do falido”. No entanto, referido artigo de lei traz exceções que excluem a competência originária do juízo da falência, quais sejam as causas trabalhistas, fiscais e as não reguladas pela lei falimentar.
A questão controvertida, portanto, diz respeito à possibilidade de prosseguimento ou instauração de arbitragem que tem por objeto questão contratual (direitos patrimoniais disponíveis) que se enquadra na exceção prevista em lei (qual seja, matéria regulada pela Lei de Arbitragem e não pela Lei de Falências e Recuperações).
Donaldo Armelin sustenta que a própria Lei de Falência e recuperações afastou da vis attractiva do juízo falimentar ações versando sobre questões trabalhistas e fiscais, “com maior razão a diversidade entre a jurisdição estatal e arbitral será bastante para esse fim[7]”.
A esse respeito, no precedente citado no item III (a), acima, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que o princípio do juízo universal da falência não se aplica à hipótese em comento, uma vez que “aludido princípio não abarca a arbitragem, que não se encarta entre ações judiciais”. Acrescenta, ainda, o referido julgado que, versando a arbitragem sobre quantia ilíquida, este procedimento não deverá ser suspenso com a decretação da falência de uma das partes, pois “incide no caso o artigo 6o, §1o, da Lei no 11.101/2005, que afasta a suspensão das ações movidas contra o devedor, prevista no ‘caput’ do referido dispositivo legal, ao determinar que terá prosseguimento no juízo no qual estiver se processando a ação que demandar quantia ilíquida”[8].
No mesmo sentido, a opinião de Donaldo Armelin: “Com maior razão, portanto, injustificável será a suspensão de uma arbitragem em curso ou a se iniciar com lastro em convenção de arbitragem celebrada antes da falência e do período por ela elencado. Assim, relativamente às arbitragens em curso, não há porque as sobrestar, na dependência do desenvolvimento da falência. Nelas se discute a existência de uma determinada obrigação relativa a direitos patrimoniais e disponíveis.”[9]
E nem poderia ser diferente, na medida em que a previsão legal de suspensão das ações não abrange as demandas por quantias ilíquidas. O procedimento arbitral, portanto, se prestará justamente para liquidar ou quantificar a pretensão da parte, que, ato contínuo, habilitará seu crédito no processo falimentar tendo como título justamente a sentença arbitral.
d) Desnecessidade de intervenção do Ministério Público
Um argumento que poderia inviabilizar o prosseguimento ou instauração de arbitragem quando da superveniente decretação de falência de uma das partes contratantes refere-se à eventual necessidade de intervenção do Ministério Público em ações em que é parte a massa falida, em observência ao interesse público envolvido em tais processos.
Ocorre, contudo, que o artigo 4º da Lei n.º 11.101/05 que regularia a atuação do Ministério Público nas ações em que é parte a massa falida foi objeto de veto presidencial. Tendo em vista que o procedimento arbitral “só pode envolver interesses disponíveis de pessoas capazes”[10], conclui-se ser dispensada a atuação do Ministério Público, não existindo qualquer óbice ao desenrolar de arbitragem que envolva a massa falida.
Ao Ministério Público é outorgada função fiscalizadora no processo de falência, tendo, inclusive, a prerrogativa de nele intervir e promover ações judiciais na defesa dos interesses da massa falida.
Todavia, por se tratar a arbitragem de procedimento autônomo equiparado a uma ação judicial em que a massa falida seja parte, a atuação do Ministério Público é dispensada, por expressa ausência de legitimação legal para tanto.
III. Conclusões
Da exposição das questões práticas relativas aos dois temas abordados, verifica-se a existência de opiniões divergentes tanto no campo da doutrina quanto na interpretação que vem sendo dada pelo Poder Judiciário sobre as formas de conciliação entre o instituto da insolvência e a arbitragem.
Contudo, como acima sustentado, entendemos que a utilização da arbitragem é perfeitamente compatível com as situações de insolvência analisadas.
Isso porque, em nossa visão, a despeito do interesse coletivo que envolve os processos de recuperação judicial e de falência, as situações examinadas referem-se à questões contratuais que versam sobre direitos disponíveis e, portanto, passíveis de serem submetidas, por livre consentimento das partes, à jurisdição arbitral.
Todavia, é certo que a doutrina especializada e a jurisprudência deverão continuar a enfrentar os inquietantes temas, cabendo ao operador do direito explorar as melhores alternativas disponíveis aos seus clientes para a resolução de conflitos oriundos de questões contratuais complexas que, em nossa visão, cada vez mais podem e devem ser relegadas à jurisdição arbitral.
[1] TJSP. Agravo de Instrumento n.º 531.020-4/3-00. Rel. Pereira Calças. Julg. em 25/06/2008.
[2] STJ. Medida Cautelar n.º 14.295-SP. Rel. Min. Nancy Andrighi. Decisão monocrática proferida em 09/06/2008.
[3] Nesse sentido, TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Obra citada, p. 47.
[4] Conforme Donaldo Armelin: “... com a celebração, na forma da lei de regência, de convenção de arbitragem, consumou-se o direito de opção pela jurisdição arbitral, emergindo direito adquirido à sua instauração, prosseguimento e conclusão com a prolação da sentença arbitral. Não há, considerando-se a emergência do direito à jurisdição, como, a teor dos fatos jurídicos supervenientes, extinguir-se a arbitragem em razão da perda da disponibilidade do direito nela questionado, que se encontrava livre de qualquer restrição quando da celebração da convenção de arbitragem, estando, da mesma forma, a parte signatária desse documento com capacidade plena na ocasião.” (obra citada, p. 19/20).
[5] Os dois importantes e recentes precedentes de nossos Tribunais acima citados reconhecem a competência do tribunal arbitral para apreciar questões relativas à existência,validade e eficácia da cláusula compromissória (TJSP. Agravo de Instrumento n.º 531.020-4/3-00. Rel. Pereira Calças. Julg. em 25/06/2008 e STJ. Medida Cautelar n.º 14.295-SP. Rel. Min. Nancy Andrighi. Decisão monocrática proferida em 09/06/2008).
[6] TJSP. Agravo de Instrumento n.º 658.014-4/2-00. Rel. Roberto Solimene. Julg. 10/12/09.
[7] Obra citada, p. 21.
[8] TJSP. Agravo de Instrumento n.º 531.020-4/3-00. Rel. Pereira Calças. Julg. em 25/06/2008.
[9] ARMELIN, Donaldo. Obra citada, p. 20.
[10] TJSP. Agravo de Instrumento n.º 531.020-4/3-00. Rel. Pereira Calças. Julg. em 25/06/2008.