A prática de emissão de títulos no mercado internacional, ou de papéis representativos de dívida (freqüentemente denominados de notes oubonds), depositados e custodiados por instituições estrangeiras, tem sido uma importante ferramenta de captação de recursos pelas empresas brasileiras.
A prática de emissão de títulos no mercado internacional, ou de papéis representativos de dívida (freqüentemente denominados denotes ou bonds), depositados e custodiados por instituições estrangeiras, tem sido uma importante ferramenta de captação de recursos pelas empresas brasileiras.
Tais títulos são, normalmente, regulados por uma escritura de emissão (indenture), que estabelece os direitos e deveres dos titulares (comumente referidos como bondholders ou noteholders), emissores e garantidores das notas, bem como do agente fiduciário (trustee), que representa o conjunto de detentores de notas.
As escrituras de emissão podem ser mais ou menos detalhadas em relação às conseqüências da insolvência, falência, recuperação judicial ou recuperação extrajudicial da empresa emissora das notas ou da sua garantidora, e são, invariavelmente, regidas por lei estrangeira.
Assim como a crise econômica global e seus desdobramentos no mercado nacional colocaram à prova a Nova Lei de Recuperação e Falência (Lei nº 11.101/2005 – "LRF"), passaram a testar, também, a maneira como esses instrumentos de financiamento impactam a reestruturação da empresa, nos seus aspectos financeiros e jurídicos.
Quando as empresas brasileiras enfrentam situações de crise econômico-financeira, o fato de terem sido emitidos títulos no mercado internacional pode aumentar a complexidade de eventual processo de falência, recuperação judicial ou extrajudicial, além de fazer surgir diversas questões jurisprudenciais inéditas e pioneiras.
O primeiro caso notório em que essa questão foi discutida judicialmente no âmbito de uma recuperação judicial foi no caso da Parmalat.
A empresa recuperanda havia emitido notas, que tinham como agente fiduciário o Deutsche Trustee Company Limited.
Em primeira instância, foi negado ao agente fiduciário o direito de participar da Assembléia Geral de Credores e de votar em nome dos titulares das notas. No entanto, a Câmara Reservada à Falência e Recuperação do Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu o direito do agente fiduciário, como órgão representante dos detentores dos títulos, de participar, com voz e voto, da Assembléia Geral de Credores (Agravos de Instrumento nº 429.622-4/1-00 e 429.579.4/4-00, ambos julgados em 29/03/2006 e sob a relatoria do Des. Pereira Calças).
Nessa ocasião, a Câmara fez referência à semelhança existente entre o agente fiduciário, no caso em tela, e o agente fiduciário dos debenturistas, previsto na Lei das Sociedades Anônimas (que, efetivamente, representa os detentores dos títulos, conforme o seu art. 68), e analisou a escritura de emissão das notas para concluir pela possibilidade de o agente fiduciário participar das Assembléias Gerais de Credores independentemente de prévia autorização de assembléia dos detentores dos títulos.
Na recuperação judicial do Frigorífico Independência, por sua vez, houve decisão, em primeira instância, intimando o agente fiduciário, Bank of New York Mellon, a apresentar "todos os documentos comprobatórios de sua representação", bem como "a relação pormenorizada de todos os efetivos e reais detentores das Notas (que sejam necessariamente os beneficiários finais das Notas), com os documentos que comprovam tal titularidade", sob pena de perda do direito a participar e votar na Assembléia Geral de Credores, com base na alegação de que era necessário verificar se os titulares das notas não possuíam relação com a recuperanda, passível de impossibilitar seu voto na Assembléia, nos termos do art. 43 da LRF.
Por conta dessa decisão, alguns dos detentores de notas requereram a sua participação direta na Assembléia Geral de Credores, mediante apresentação de comprovação da titularidade das notas, bem como de seus documentos societários.
Esse pedido foi deferido pelo mesmo Juízo da recuperação judicial e os bondholders, organizados em grupo (e liderados por um comitê informal), representado por seus advogados constituídos para tanto, puderam, efetivamente, participar das negociações do plano de recuperação judicial e da sua subseqüente aprovação pelas respectivas Assembléias Gerais de Credores.
Ao mesmo tempo, em face da decisão que havia limitado o exercício do seu direito de voz e voto na Assembléia, o próprio agente fiduciário, por meio de seus advogados, interpôs agravo de instrumento, ao qual foi concedida a antecipação dos efeitos da tutela por decisão monocrática do relator Des. Elliot Akel, posteriormente confirmada por decisão da Câmara Reservada à Falência e Recuperação do Tribunal de Justiça de São Paulo (Agravo de Instrumento nº 994.09.291387-6 (antigo 680.571-4/0), julgado em 06/04/2010).
Tendo em vista que, tanto os bondholders, quanto o agente fiduciário, estavam judicialmente autorizados a participar e a votar na Assembléia Geral de Credores, os créditos dos detentores de títulos que haviam requerido sua participação individual foram "desmembrados" do crédito total correspondente à emissão, tendo, tais bondholders, exercido diretamente seu direito de voz e voto, ao tempo que o agente fiduciário veio a exercer tal direito pelo crédito restante, em nome dos bondholders remanescentes(que não haviam desmembrado seu crédito).
Analogamente, na recuperação judicial do Grupo Arantes, houve participação individual e direta de alguns dos detentores de notas na Assembléia Geral de Credores, mediante a comprovação da titularidade das notas e apresentação dos devidos documentos comprobatórios de seus créditos.
No entanto, diferentemente do que ocorreu no caso Independência, o agente fiduciário, o Bank of New York Mellon, não estava autorizado a votar em nome dos titulares das notas na Assembléia Geral de Credores, segundo o entendimento manifestado pelo administrador judicial e pelo Juízo da recuperação judicial, com base em suas interpretações das disposições da escritura de emissão.
Posteriormente, o próprio agente fiduciário informou aosbondholders, por meio de comunicado oficial, a respeito da sua impossibilidade de votar na Assembléia e da formação de um grupo de bondholders com a intenção de se fazerem representar diretamente.
Como ocorreu nas recuperações judiciais de Independência e Arantes, a participação dos bondholders pode trazer diversos benefícios para a reestruturação da empresa, em razão da expertise financeira que possuem, contribuindo para a negociação e viabilização do plano de recuperação.
Ademais, não se pode desprezar a possibilidade de que as instituições detentoras dos títulos se envolvam nas operações de novos financiamentos das empresas recuperandas, essenciais para o sucesso da sua estratégia de reestruturação.
Deve-se notar que a representação direta por parte dos detentores de papéis representativos de dívida emitidos no mercado internacional não é fenômeno exclusivo da recuperação e também ocorreu no processo de falência do Banco Santos: o próprio edital contendo a lista de credores indicava a existência de dívida correspondente ao valor total dos bonds e convocava os adquirentes dos títulos a procederem às suas habilitações, "em razão da massa falida não possuir a identificação dos adquirentes dos títulos".
Assim, mediante apresentação de habilitação de crédito devidamente instruída com os documentos comprobatórios da titularidade das notas, diversos detentores de bonds emitidos pelo Banco Santos fizeram-se representar diretamente no processo de falência do devedor e puderam ser listados como credores no Quadro Geral de Credores do banco.
Como se nota, a utilização de instrumentos de capitalização internacional pode ter conseqüências relevantes para eventuais procedimentos de recuperação judicial ou falência das empresas brasileiras, e suscita novas questões e desafios para o Judiciário e para a advocacia no Brasil, como as hipóteses e requisitos para que titulares de notas ou bonds venham a participar diretamente do processo de recuperação ou falência, como legítimos credores que são, de empresa brasileira, sempre em conformidade com os termos da escritura de emissão.
A impossibilidade de exercício de voto em relação ao crédito decorrente da emissão de títulos no exterior, em muitas recuperações, pode significar a ausência de representação de credores de parte extremamente significativa da dívida, colocando em dúvida se a deliberação final da classe respectiva efetivamente espelha a vontade da maioria dos credores que a compõem.
Em especial, é importante que o estudo e a prática relacionados ao tema cuidem para que, de um lado, a escritura de emissão de títulos no mercado internacional preveja, detalhadamente, as conseqüências de eventos de insolvência, como a recuperação judicial, extrajudicial e a falência, bem como a forma de atuação do agente fiduciário nesses casos, e, de outro lado, seja reconhecida a eventual legitimidade da representação dos créditos decorrentes de bonds estrangeiros.
Gisela Mation, advogada, Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados.
Renata Oliveira, advogada, Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados.