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CONSOLIDAÇÃO SUBSTANCIAL E OS LIMITES DO STAY PERIOD NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

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05 de dezembro de 2025

Alexandre Borges Leite[1]

Frederico Antonio Oliveira de Rezende[2]

Heloisa de Oliveira Pedroso[3]

 

1. INTRODUÇÃO

1.1. Contexto e Apresentação do Problema

O instituto da recuperação judicial, disciplinado pela Lei nº 11.101/2005, representa um marco na evolução do direito concursal brasileiro ao estabelecer mecanismos destinados a viabilizar a superação da crise econômico-financeira enfrentada pelas sociedades empresárias. Dentre os instrumentos processuais previstos, destaca-se o stay period, período de suspensão de ações e execuções que confere ao devedor a oportunidade de negociar com seus credores e elaborar um plano de recuperação exequível, gerando um ambiente saudável de negociação, sem comprometer os ativos livres e o fluxo de caixa disponível do empresário em crise.

O objetivo central do presente estudo é a análise da possibilidade do reinício da contagem do prazo do stay period em casos de inclusão posterior de novas empresas no polo ativo de recuperação judicial já em andamento, especialmente quando tal inclusão decorre do reconhecimento de consolidação substancial. Trata-se de questão que envolve o delicado equilíbrio entre a proteção da empresa em crise e a preservação dos direitos dos credores, exigindo análise criteriosa dos princípios que norteiam o sistema recuperacional.

A reflexão proposta neste artigo tem origem em recente decisão proferida pela juíza Aline Mendes Godoy, titular da Vara Regional de Falências e Recuperações Judiciais e Extrajudiciais da Comarca de Concórdia/SC, no âmbito do processo de recuperação judicial nº 5009149-92.2024.8.24.0019.

Na caso acima, no momento do deferimento do seu processamento, a recuperação judicial abrangia cinco sociedades empresárias no polo ativo, ocasião em que foi determinada a suspensão das ações e execuções ajuizadas em face das devedoras originárias pelo prazo de 180 dias, correspondente ao stay period, nos termos do art. 6º, § 4º, da Lei nº 11.101/2005.

Posteriormente, houve pedido de inclusão de duas novas empresas no polo ativo da recuperação judicial, mediante reconhecimento da ocorrência das hipóteses de consolidação substancial. Diante da solicitação expressa de reinício da contagem do stay period em favor das empresas recém-incluídas, a Nobre Magistrada posicionou-se de forma criteriosa e categórica pela impossibilidade da medida.

A fundamentação da decisão assentou-se em argumentos sólidos:

  • primeiro, que a consolidação substancial não decorreria de fato novo e autônomo, mas de medida que já deveria ter sido adotada pelas próprias requerentes desde o início do procedimento;
  • segundo, que a consolidação substancial então reconhecida resulta da constatação técnica da existência de confusão operacional, contábil e patrimonial entre as empresas desde o início da demanda; terceiro, que permitir o reinício da contagem configuraria indevida extensão da blindagem judicial;
  • e, finalmente, que tal medida violaria a segurança jurídica e a isonomia entre credores, princípios fundamentais que orientam o regime.

A decisão em análise assume caráter paradigmático, na medida em que enfrenta diretamente a questão da possibilidade de manipulação do prazo do stay period, matéria de notável relevância teórica e prática no direito recuperacional brasileiro, haja vista o risco de comprometimento da estabilidade e da previsibilidade do sistema, com potencial para fomentar práticas abusivas e fraudulentas.

2. O INSTITUTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL E O STAY PERIOD

2.1. A Importância do Stay Period para a Recuperação

O stay period representa um dos institutos mais importantes e sensíveis da legislação recuperacional brasileira. Como explicita João Pedro Scalzilli,[4]

entre os efeitos do despacho que defere o processamento da recuperação judicial está a suspensão, ordenada pelo juiz, de todas as ações ou execuções contra o devedor – inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, na forma do art. 6º da LREF (art.52,III). É o que se convencionou chamar stay period, expressão utilizada nos Estados Unidos, em cujo ordenamento se buscou inspiração para a regra do sistema concursal brasileiro.[5]

A inspiração histórica do instituto encontra-se no direito norte-americano, onde, nas palavras de Douglas G. Baird:[6] "The world we live in, however, is not so simple. Even a straight sale of the firm for cash takes time. There needs to be some mechanism to preserve the status quo while we sort out the affairs of the debtor.”[7]

A função protetiva do stay period é fundamental para o sucesso do processo recuperacional. Como observa Scalzilli,[8]

a partir daí, é como se houvesse um 'escudo' para proteger a empresa em recuperação. A suspensão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias (prorrogável por igual período) busca dar fôlego ao devedor para negociar com seus credores e elaborar o plano de recuperação, sem que seu patrimônio seja agredido pelas ações e execuções em curso contra ele.

Marcelo Barbosa Sacramone[9] complementa essa visão ao explicitar que

referida suspensão é motivada pela tentativa da lei de criar, com a recuperação judicial, um ambiente institucional para a negociação entre credores e devedor. A suspensão das ações e execuções impede que credores individuais retirem bens imprescindíveis à reestruturação da atividade, o que assegura ao devedor a possibilidade de estabelecer no plano de recuperação meios para sanar a crise econômico-financeira pela qual passa. Outrossim, a suspensão das ações individuais incentiva os credores a ingressarem no procedimento concursal para negociar coletivamente com o devedor a melhor alternativa para a satisfação de seus créditos.

2.2. Princípios de observância necessária

A Lei nº 11.101/2005 encontra fundamento não apenas em princípios específicos do direito empresarial, mas também em princípios constitucionais que orientam todo o ordenamento jurídico. Dentre estes, destacam-se a segurança jurídica, que assegura estabilidade e previsibilidade às relações econômicas e negociais, e a isonomia entre credores, que garante tratamento equilibrado e proporcional a todos os sujeitos do processo recuperacional.

O princípio constitucional da segurança jurídica tem por finalidade garantir estabilidade e previsibilidade às relações jurídicas, assegurando confiança na aplicação das normas e decisões judiciais. Tal princípio visa a evitar mudanças abruptas ou contraditórias no ordenamento jurídico, preservando a coerência e a confiança nas instituições.

Nos termos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal[10] o princípio da segurança jurídica apresenta dois aspectos fundamentais: o objetivo, relacionado à estabilidade das relações jurídicas, e o subjetivo, concernente à proteção da confiança legítima:

DIREITO ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. SERVIDOR PÚBLICO. PROVIMENTO DERIVADO . SUBSISTÊNCIA DO ATO ADMINISTRATIVO. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA PROTEÇÃO DA CONFIANÇA. (…) 2. O princípio da segurança jurídica, em um enfoque objetivo, veda a retroação da lei, tutelando o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada . Em sua perspectiva subjetiva, a segurança jurídica protege a confiança legítima, procurando preservar fatos pretéritos de eventuais modificações na interpretação jurídica, bem como resguardando efeitos jurídicos de atos considerados inválidos por qualquer razão. Em última análise, o princípio da confiança legítima destina-se precipuamente a proteger expectativas legitimamente criadas em indivíduos por atos estatais. 3. Inaplicável o art . 85, § 11, do CPC/2015, uma vez que não é cabível, na hipótese, condenação em honorários advocatícios (art. 25 da Lei nº 12.016/2009 e Súmula 512/STF) 4. Agravo interno a que se nega provimento.

Nesse contexto, referido princípio, em sua dupla dimensão, determina a preservação das situações jurídicas consolidadas e assegura aos indivíduos a confiança na estabilidade e previsibilidade das normas que regem suas relações.

No caso paradigma, os credores tinham a legítima expectativa de que o prazo do stay period, já em curso desde o deferimento do processamento da recuperação judicial dos cinco devedores originários, não seria reiniciado pela inclusão posterior de outras empresas. Essa expectativa fundamenta-se na compreensão de que a consolidação substancial, quando decorrente de situação preexistente de confusão patrimonial, não constitui fato novo apto a alterar prazos já estabelecidos.

Permitir o reinício da contagem violaria frontalmente o princípio da segurança jurídica, criando precedente perigoso e capaz de incentivar práticas manipulatórias, como o indesejado planejamento de devedores que, de forma paulatina, incluiriam empresas de seu grupo econômico no polo ativo das recuperações judiciais, com o propósito de obter a biônica dilatação do prazo legal. Tal conduta acarretaria evidente prejuízo aos credores, que já haviam ajustado suas estratégias e expectativas ao prazo originalmente fixado pela legislação.

O princípio da isonomia entre credores (par conditio creditorum), por sua vez, impõe que aqueles que se encontrem em idêntica posição jurídica recebam tratamento equânime. Como observa Marcelo Sacramone, [11] na recuperação judicial:

Ao contrário da falência, o princípio da par conditio creditorum na recuperação judicial não é uma limitação legal. Decorre, entretanto, de uma construção doutrinária e jurisprudencial que se baseia nos interesses supostamente homogêneos de cada classe de credores, a ponto de não ser permitido tratamento diverso entre credores com características semelhantes de créditos.

A relevância principiológica do par conditio creditorum é tamanha que no prefácio da obra acima citada, o Desembargador Cesar Ciampolini Neto[12] ressalta que, diante de situações inusitadas do cotidiano forense, cabe ao Judiciário adotar medidas que assegurem, em qualquer hipótese, o tratamento igualitário entre os credores:

E, enfim, para questões inusitadas e para o dia a dia da condução dos processos de insolvência, existe a norma principiológica do art. 126, naturalmente mantida pelo legislador reformador, traduzindo em direito positivo velhos conceitos de Direito Falimentar. Frente a relações patrimoniais não reguladas expressamente, deve o juiz, na busca da preservação e da otimização da atividade produtiva dos bens da empresa, decidir atento à unidade e à universalidade do concurso, considerando sempre a igualdade de tratamento dos credores (par conditio creditorum)

No contexto em análise, não se verifica qualquer fundamento jurídico que autorize tratamento diferenciado entre os credores das empresas originalmente incluídas no processo recuperacional e aqueles das sociedades posteriormente integradas por meio de consolidação substancial. Todos se encontram em idêntica posição jurídica perante o stay period, não sendo legítimo conferir proteção adicional a uns em detrimento de outros.

A extensão do prazo protetivo criaria duas classes artificiais de credores: aqueles submetidos ao prazo original e aqueles beneficiados pelo prazo reiniciado, gerando inaceitável desigualdade dentro do próprio sistema recuperacional. Tal situação violaria o comando legal de que deve haver "tratamento equânime aos credores que compõem a mesma classe".

A finalidade precípua da Lei nº 11.101/2005 é possibilitar a recuperação da atividade empresarial de maneira lícita, proporcionando ao devedor em crise mecanismos para superar suas dificuldades econômico-financeiras sem comprometer indevidamente os direitos dos credores.

Essa finalidade deve ser perseguida dentro de parâmetros legais e principiológicos claros, evitando-se interpretações que possam desvirtuar o sistema ou ensejar práticas abusivas.

2.3. A Duração e a Possibilidade de Prorrogação do stay period

A legislação recuperacional estabelece com precisão a duração do stay period, demonstrando a preocupação do legislador em equilibrar a proteção do devedor com os direitos dos credores. O art. 6º, § 4º, da Lei nº 11.101/2005 é categórico ao estabelecer que na recuperação judicial, as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não tenha concorrido com a superação do lapso temporal".

A reforma promovida pela Lei nº 14.112/2020 foi expressa na "proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência". Essa ampliação demonstra o reconhecimento pelo legislador da importância da proteção patrimonial durante o período de reorganização e reestruturação financeira.

Contudo, é fundamental compreender que essa proteção não é ilimitada. Como enfatiza Scalzilli,[13]

em síntese, o período de proteção determinado pela LREF preserva a unidade produtiva, o que beneficia o devedor e os credores como um todo. Não por outra razão o legislador concatenou o período de suspensão de 180 (cento e oitenta) dias com os demais prazos e procedimentos previstos no trâmite do próprio pedido de recuperação.

O autor prossegue explicando que[14]

em um cenário ideal, o credor estaria protegido pelo stay period até a realização da assembleia geral de credores (se for o caso). É então que o destino da empresa é definido. Aprovado o plano de recuperação judicial, as ações e execuções individuais cujos créditos estão sujeito ao regime recuperatório (e, portanto, por ele abrangidos) não são retomadas em decorrência da novação. Rejeitado o plano, a recuperação é convolada em falência.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem sido enfática quanto aos limites temporais da proteção. Em decisão referência, a Corte estabeleceu que[15]

a avaliação realizada pelo Juízo da recuperação judicial acerca da essencialidade de determinado bem ao desenvolvimento da atividade da empresa recuperanda, constrito no bojo de execução de crédito extraconcursal, somente pode recair sobre bem de capital e apenas durante o período de blindagem (stay period). 4 . Após o término do prazo de blindagem, é necessário que o credor extraconcursal tenha seu crédito equalizado na execução individual, não sendo possível obstar a satisfação do crédito com base na preservação da empresa.

Essa orientação jurisprudencial consolida o entendimento de que a proteção patrimonial tem limites temporais claros e que não se pode "obstar a satisfação do crédito com base na preservação da empresa" indefinidamente. A "blindagem patrimonial" – termo utilizado pelo próprio STJ – possui prazo determinado e não pode ser estendida além dos limites legais.

2.4. O Caráter Excepcional do Prazo: Interpretação Restritiva do Art. 6º, § 4º, da LRF

O stay period constitui norma de caráter excepcional no ordenamento jurídico brasileiro, na medida em que suspende direitos dos credores em benefício da proteção temporária do devedor em recuperação. Como toda norma excepcional, deve ser interpretado de forma restritiva, em conformidade com a orientação consolidada da jurisprudência superior.

O Superior Tribunal de Justiça tem entendimento pacífico de que "em se tratando de norma de exceção, a jurisprudência desta Corte Superior tem consagrado entendimento que sua interpretação deve se dar de forma restritiva"[16]. Esse princípio hermenêutico fundamenta-se no aforismo clássico segundo o qual

as normas positivas que estabelecem pena restringem o livre exercício dos direitos, ou contêm exceção a lei, submetem-se à interpretação estrita – Leges quoe poenam statuunt, aut liberum jurium exercitium coarctant, aut exceptionem a lege continent, strictae subsunt interpretationi.

O art. 6º, § 4º, da Lei nº 11.101/2005 estabelece com precisão as hipóteses de suspensão e suas limitações temporais. Não há, na legislação, qualquer previsão para reinício da contagem do prazo em caso de inclusão posterior de devedores por consolidação substancial.

A prorrogação do prazo, já prevista como possibilidade excepcional, constitui a única extensão temporal autorizada pela lei. Admitir o reinício da contagem configuraria criação pretoriana de nova hipótese de extensão, extrapolando os limites da interpretação e adentrando o campo da criação legislativa, vedada ao Poder Judiciário.

A interpretação restritiva impõe-se também pela consideração de que o stay period suspende direitos garantidos aos credores, como, por exemplo, o direito à execução de seus créditos e tais suspensões devem ser interpretadas com máxima cautela, evitando-se extensões não expressamente autorizadas pelo legislador.

O próprio legislador, ao estabelecer prazo determinado e possibilidade única de prorrogação, demonstrou sua preocupação em equilibrar a proteção do devedor com os direitos dos credores. Esse equilíbrio seria rompido caso se admitisse o reinício arbitrário da contagem por circunstâncias não previstas na legislação.

3. CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSOLIDAÇÃO SUBSTANCIAL NOS TERMOS DA LEI Nº 11.101/2005

A consolidação substancial configura mecanismo que permite o tratamento unificado de empresas de um grupo econômico quando presentes determinados requisitos legais específicos.

Segundo a doutrina especializada, "em termos procedimentais, a consolidação substancial pode ser requerida pelo devedor, seus credores ou pelo administrador judicial, além de poder ser decretada ex officio. Seu principal efeito consiste no tratamento de ativos e passivos dos devedores como se pertencessem a um único devedor (art. 69-K, caput), acarretando, logicamente, a extinção imediata de garantias fidejussórias e de créditos detidos por um devedor em face de outro (LREF, art. 69-K, § 1º)".[17]

Trata-se, portanto, de medida de efeitos imediatos e profundos sobre a estrutura do processo recuperacional. Cumpre ressaltar, contudo, que a consolidação substancial não extingue as garantias fidejussórias prestadas por terceiros, nem afeta as garantias reais constituídas pelas sociedades do grupo (ou por terceiros), salvo mediante aprovação expressa do respectivo titular (LREF, art. 69-K, § 2º).

Importa observar que embora o artigo 69-J da LRF valha-se do vocábulo “autorizar” para se referir à possibilidade de deferimento do processamento em consolidação substancial, a doutrina sedimentou-se no sentido de reconhecer que o instituto pode ser aplicado de forma impositiva, ou seja, à revelia do interesse subjetivo dos devedores. É o que leciona Sheila C. Neder Cerezetti, ao dispor que a modalidade obrigatória “é determinada judicialmente após a apuração de dados que indiquem disfunção societária na condução dos negócios das sociedades grupadas, normalmente identificada em período anterior ao pedido de recuperação judicial”.[18]

Tal situação é absolutamente lógica, na medida que em específicos casos de indissociável amálgama societária e patrimonial, a unificação de ativos e passivos pode ser a única forma de garantir o soerguimento empresarial ou mesmo o acesso dos credores aos bens dos devedores, impedindo potencial movimentação de dívidas e direitos com objetivos fraudulentos ou, ainda, ferindo o princípio da paridade de tratamento entre os credores.

O Superior Tribunal de Justiça tem contemplado esse entendimento, conforme excertos extraídos do Recuso Especial nº 2001535/SP,[19] ao consignar que,

segundo entendimento doutrinário, a consolidação substancial poderá ser obrigatória sempre que for constatada disfunção societária, apurada a partir de quando for verificada confusão patrimonial entre sociedades integrantes do grupo de fato ou de direito” e, ainda, que “a Lei nº 11.101/2005, em seu art. 69-J, somente anteviu a possibilidade de o Juiz autorizar a consolidação substancial na hipótese de as sociedades já figurarem no polo ativo da ação, em consolidação processual, silenciando a respeito de hipóteses em que se verificar a adoção de comportamento abusivo das recuperandas (...).

Dessa forma, a consolidação substancial se apresenta como instrumento de grande relevância no âmbito da recuperação judicial, permitindo o tratamento coordenado de empresas de um mesmo grupo econômico. Seus efeitos sobre a estrutura processual reforçam a necessidade de análise criteriosa e fundamentada, garantindo equilíbrio entre a preservação da empresa em crise e a proteção dos interesses dos credores e terceiros envolvidos.

3.1. O risco de fraude e a "blindagem judicial indevida"

O caráter excepcional da consolidação substancial justifica-se pela necessidade de evitar fraudes e manipulações do sistema recuperacional. Quando a consolidação decorre de situação preexistente, não se justifica tratá-la como fato novo apto a ensejar o reinício de prazos protetivos. Exatamente por isso, ainda que se trate de consolidação substancial obrigatória eventualmente indesejada pelos devedores, é a hipótese de referir-se a situações pretéritas (que deveriam direcionar a devedora à correta integração do litisconsórcio ativo) que afasta qualquer pretensa alegação de prejuízos ou ilegalidade.

 No caso analisado, permitir o reinício da contagem do stay period em tais situações representaria "indevida extensão da blindagem judicial", criando ambiente propício para práticas abusivas. A "blindagem judicial" – expressão utilizada tanto pela doutrina quanto pela jurisprudência – refere-se precisamente ao período de proteção patrimonial conferido pelo stay period.

O risco de fraude emerge quando se permite que situações preexistentes sejam utilizadas para estender artificialmente prazos protetivos, violando os direitos dos credores e comprometendo a integridade do sistema recuperacional. A proteção conferida pelo stay period deve ser interpretada restritivamente, evitando-se extensões não previstas expressamente na legislação.

3.2. A proteção do credor e a celeridade processual

O processo recuperacional deve, por essência, buscar o equilíbrio entre a proteção do devedor em crise e a preservação dos direitos dos credores. Tal equilíbrio seria comprometido caso se admitisse a extensão indefinida ou arbitrária dos prazos protetivos previstos em lei.

Com efeito, os credores possuem direito líquido e certo ao cumprimento dos prazos legalmente fixados. Qualquer alteração unilateral desses marcos temporais mediante interpretações extensivas não amparadas pela legislação, configura violação aos seus direitos fundamentais, comprometendo a segurança jurídica do procedimento.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é clara ao estabelecer que "após o término do prazo de blindagem, é necessário que o credor extraconcursal tenha seu crédito equalizado na execução individual, não sendo possível obstar a satisfação do crédito com base na preservação da empresa".[20] Esse entendimento reforça que a proteção patrimonial possui limites temporais claros e que os direitos dos credores devem ser respeitados após o decurso do prazo legal.

Ademais, o princípio da celeridade processual, previsto no art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal, seria comprometido pela admissão de reinício arbitrário de prazos. A possibilidade de extensão indefinida da proteção, por meio de inclusões sucessivas, geraria insegurança e lentidão processual, em contrariedade aos objetivos da legislação recuperacional.

O processo de recuperação judicial deve ser concluído em prazo razoável, permitindo-se a definição clara do destino das empresas e a satisfação dos credores dentro de cronograma previsível. A extensão artificial dos prazos protetivos compromete essa finalidade e pode transformar o processo recuperacional em instrumento de procrastinação.

4. CONCLUSÃO

A análise desenvolvida neste estudo evidencia a acuidade e precisão interpretativa exposta na decisão paradigma prolatada pela Nobre Juíza titular da Vara Regional de Falências e Recuperações Judiciais e Extrajudiciais da Comarca de Concórdia/SC, que concluiu por negar o reinício da contagem do stay period em razão da inclusão posterior de novas requerentes no pedido recuperacional, ao reconhecer a consolidação substancial. Tal decisão demonstra sensibilidade à preservação do equilíbrio entre a proteção do devedor em crise e a salvaguarda dos direitos dos credores.

Os argumentos apresentados convergem para a conclusão de que tal reinício violaria princípios fundamentais do ordenamento jurídico e comprometeria a integridade do sistema recuperacional.

O princípio da segurança jurídica, em suas dimensões objetiva e subjetiva, exige estabilidade nas relações jurídicas e proteção à confiança legítima dos credores. Permitir o reinício arbitrário do prazo protetivo violaria frontalmente esse princípio, criando ambiente de insegurança e imprevisibilidade.

O princípio da isonomia entre credores impõe tratamento equânime àqueles que se encontram na mesma posição jurídica. A extensão do prazo criaria discriminação injustificada entre credores, violando o comando de que deve haver "tratamento equânime aos credores que compõem a mesma classe".

O caráter excepcional do stay period determina sua interpretação restritiva, conforme orientação pacífica do Superior Tribunal de Justiça. Normas que suspendem direitos não podem ser aplicadas de forma extensiva, sob pena de extrapolação dos limites legais e criação pretoriana de hipóteses não previstas pelo legislador.

A consolidação substancial, quando decorrente de situação preexistente de confusão patrimonial, não constitui fato novo apto a justificar o reinício de prazos já em curso. Admitir o contrário seria premiar a negligência dos devedores que deixaram de requerer tempestivamente a consolidação.

A questão analisada transcende o caso específico e projeta implicações importantes para a evolução do direito concursal brasileiro. A admissão do reinício arbitrário do stay period criaria precedente perigoso que poderia ser utilizado de forma abusiva, comprometendo a efetividade do sistema recuperacional.

A possibilidade de manipulação de prazos através de inclusões sucessivas de empresas transformaria o processo de recuperação judicial em instrumento de procrastinação indefinida, frustrando os objetivos da legislação e violando os direitos dos credores. O sistema perderia sua credibilidade e eficácia, desestimulando investimentos e comprometendo a economia como um todo.

É fundamental que os tribunais mantenham postura cautelosa e restritiva na interpretação de normas excepcionais, evitando criar brechas que possam ser exploradas de forma abusiva.

A formação de precedentes sólidos sobre essa matéria contribuirá para a segurança jurídica e previsibilidade do sistema, beneficiando todos os atores envolvidos nos processos recuperacionais. Credores terão maior confiança na estabilidade dos prazos, enquanto devedores serão incentivados a agir com maior diligência e boa-fé na condução de seus processos.

A evolução do direito concursal brasileiro depende do equilíbrio entre inovação e estabilidade, entre proteção empresarial e direitos dos credores. A decisão analisada representa exemplo paradigmático desse equilíbrio, demonstrando que é possível conciliar a eficácia do sistema recuperacional com o respeito aos princípios fundamentais do ordenamento jurídico.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo evidenciou, por meio de análise doutrinária e jurisprudencial detalhada, que a decisão judicial proferida nos autos nº 5009149-92.2024.8.24.0019, pela Juíza Aline Mendes de Godoy, que negou o reinício da contagem do stay period em caso de consolidação substancial posterior, encontra-se em plena consonância com os princípios e finalidades da Lei nº 11.101/2005.

A fundamentação da decisão revela compreensão acurada dos institutos envolvidos e aplicação correta dos princípios da segurança jurídica, isonomia entre credores e interpretação restritiva de normas excepcionais.

A argumentação de que permitir o reinício configuraria "indevida extensão da blindagem judicial" e violaria "a segurança jurídica e a isonomia entre credores" demonstra visão sistêmica e principiológica do direito recuperacional.

Repita-se que o sistema recuperacional brasileiro beneficia-se de decisões como a analisada, que primam pelo equilíbrio entre proteção empresarial e direitos dos credores. A manutenção desse equilíbrio é essencial para a credibilidade e efetividade dos mecanismos de superação de crises empresariais.

Espera-se, assim, que este estudo contribua para o debate acadêmico e jurisprudencial sobre os limites temporais da proteção conferida pelo stay period, fornecendo argumentos sólidos para a consolidação de entendimento.


[1] Alexandre Borges Leite. Advogado e Administrador Judicial. Pós-graduado em Processo Civil, em Direito Empresarial, em Gestão Empresarial, Mestre em Direito Comercial (PUC/SP) e Doutorando em Direito (PUC/SP). Professor substituto de Direito Falimentar e Recuperacional.

[2] Advogado e Administrador Judicial. Professor de Direito Falimentar e Recuperacional dos cursos de Pós-Graduação do INSPER; PUC-SP; PUC-PR e FMU; INSOL International Fellow e Mestre em Direito.

[3] Advogada atuante nas áreas de recuperação judicial e falência. Pós-graduada em Direito e Processo Tributário.

[4] SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei nº 11.101/2005. 4. ed. revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Almedina, 2022.

[5] Idem, ibidem, 2022, p. 690.

[6] BAIRD, Douglas G. The elements of bankruptcy. 6. ed. Nova York: Foundation Press, 2014. p. 187.

[7] “No entanto, o mundo em que vivemos não é assim tão simples. Mesmo uma venda direta da empresa por dinheiro leva tempo. É necessário que exista algum mecanismo para preservar o status quo enquanto resolvemos os assuntos do devedor”. Tradução livre (BAIRD, ibidem, 2014. p. 187).

[8] SCALZILLI; SPINELLI; TELLECHEA, op. cit., 2022.

[9] SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Saraiva, 2024. p. 46.

[10] STF. AgR ARE 861595 MT 0099931-76.2012.8.11.0000, Rel. Min. Roberto Barroso, 1ª T., j. 27/04/2018.

[11] SACRAMONE, op. cit., 2024, p. 351.

[12] CIAMPOLINI NETO, Cesar, prefácio à segunda edição, in SACRAMONE, ibidem, 2024.

[13] SCALZILLI; SPINELLI; TELLECHEA, op. cit., 2022, p. 693.

[14] SCALZILLI, ibidem, 2022, p. 693.

[16] STJ. HC: 374713-RS 2016/0270076-0, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, 6ª T., j. 06/06/2017, j. 13/06/2017.

[17] SCALZILLI, ibidem, 2022, p. 573.

[18] CEREZETTI, Sheila Christina Neder. Grupo de Sociedades e Recuperação Judicial: O indispensável encontro entre direitos societário, processual e concursal. In: PEREIRA, Guilherme Setoguti J.; YARSHELL, Flávio Luiz (Coords.). Processo Societário II. Vol. II. São Paulo: Quartier Latin, 2015. p. 772.

[19] STJ. REsp: 2001535/SP, Rel. Min. Humberto Martins, 3ª T., j. 27/08/2024, DJe 03/09/2024.

[20] STJ. AgInt no AREsp: 2022380 PR 2021/0352534-5, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4ª T., j. 21/10/2024, DJe 29/10/2024.

Informações do autor
Alexandre Borges Leite.
Advogado e Administrador Judicial. Pós-graduado em Processo Civil, em Direito Empresarial, em Gestão Empresarial, Mestre em Direito Comercial (PUC/SP) e Doutorando em Direito (PUC/SP). Professor substituto de Direito Falimentar e Recuperacional.

Frederico Antonio Oliveira de Rezende:
Advogado e Administrador Judicial. Professor de Direito Falimentar e Recuperacional dos cursos de Pós-Graduação do INSPER; PUC-SP; PUC-PR e FMU; INSOL International Fellow e Mestre em Direito.

Heloisa de Oliveira Pedroso
Advogada atuante nas áreas de recuperação judicial e falência. Pós-graduada em Direito e Processo Tributário

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