Nada obstante a evolução no entendimento da Lei 11.101/05, mesmo já no seu décimo aniversário de vigência, trazemos à tona a discussão de uma questão onde os julgadores ainda não firmaram um posicionamento uniforme. Estamos falando da votação nas assembleias gerais de credores para a aprovação do plano de recuperação judicial, especificamente quando ocorre o empate nas classes de credores de números II e III do art. 41, o que não é previsto pela Lei.
Ora, temos, segundo a Lei 11.101/05, em seu artigo 41, quatro classes de credores compondo a assembeia geral de credores, sendo elas: I – titulares de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho; II – titulares de créditos com garantia real; III – titulares de créditos quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados; e, IV - titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte.
Por seu turno, as respectivas votações dessas classes se realiza da seguinte forma: nas de números I e IV, o voto é por cabeça (maioria simples), enquanto que na de número II os credores (garantia real) votam até o limite do valor do bem gravado; se o seu crédito ultrapassar o valor do bem gravado, votará com a classe de número III pelo valor desse crédito excedente (aqui – nas classes II e III -, a aprovação da proposta deverá ser por credores que representem mais da metade do valor total dos créditos presentes à assembléia e, cumulativamente, pela maioria simples dos credores presentes). Nunca se esquecendo das disposições imperativas do art. 45, que determinam que “nas deliberações sobre o plano de recuperação judicial, todas as classes de credores referidas no art. 41 desta Lei deverão aprovar a proposta”.
Todavia, nem em todas as assembleias gerais de credores teremos a presença das quatro classes de credores acima referidas. Mas, as que existirem, e para que a proposta seja aprovada, deverão votar favoravelmente. Há, por outro lado, uma possibilidade de se aprovar o plano de recuperação judicial apresentado sem se verificar a aprovação de todas as classes presentes, onde o juiz pode, em conformidade com as exigências da Lei, conceder a recuperação judicial, com base naquilo que a jurisprudência, copiando do direito norte-americano, denomina de cram dow. Isso, porém, é matéria para outra discussão.
Vamos aos exemplos de casos concretos da existência de empates em votações quando a AGC vai aprovar o plano de recuperação Judicial. O primeiro é de relatoria do eminente Desembargador do TJSP, Dr. Francisco Loureiro (Ag. Inst. 0106661-86.2012.8.26.0000/Recuperação Judicial e Falência, julgado na data de 03.07.2014 pela Primeira Cãmara Reservada de Direito Empresarial, cuja Ementa é:
“RECUPERAÇÃO JUDICIAL. Pedido de convolação em falência, em virtude da rejeição do plano de recuperação pela maioria qualitativa dos credores quirografários, única classe de credores quirografários a deliberar. Cinco credores financeiros que se opuseram ao plano, em detrimento de outros quinze credores que o aprovaram. Descumprimento do quórum supletivo (cram down) previsto no art. 58, §1º, da Lei nº 11.101/2005. Moderno entendimento dos tribunais no sentido de que cabe ao juiz intervir em situações excepcionais, quer para anular, quer para deferir planos de recuperação judicial. Ausente qualquer justificativa objetiva para rejeição do plano de recuperação, com a ressalva de que os créditos financeiros são dotados de garantias pessoais dos sócios, que se encontram executados em vias próprias. Concordância do Administrador Judicial e dos representantes do Ministério Público em ambas as instancias com a homologação do plano. Constatação de que os credores que rejeitaram o plano agiram em abuso de direito, na forma do artigo 187 do Código Civil. Rejeição de caráter ilícito, devendo prevalecer o princípio da preservação da empresa. Decisão mantida. Recurso não provido”.
Em outra parte de seu voto, neste mesmo julgado, o digno Desembargador Francisco Loureiro, bem anotou que:
“Da mesma forma que o Juiz não somente pode, como deve, intervir no processo de aprovação de um plano de recuperação judicial por abuso de direito de determinado grupo de credores que referendaram um plano que lhe é benéfico, em detrimento dos minoritários, entendo que o inverso é também possível. Dizendo de outro modo, o abuso de direito e a violação a princípios contratuais de ordem pública podem também ocorrer entendo, a contrario sensu, que a mesma intervenção pode ocorrer quando um credor, ou um grupo de credores, votam contra um plano de recuperação viável, em manifesto abuso de direito”.
Aliás, hipóteses como esta estavam previstas no revogado Decreto-Lei 7.661/45, que até 08.06.2005 regulava a falência nos seus moldes antigos e a extinta concordata. Ao tratar da Liquidação (realização do ativo), no § 3o do art. 122, diz com esta clareza: “as deliberações serão tomadas por maioria calculada sobre a importância dos créditos dos credores presentes. NO CASO DE EMPATE, PREVALECERÁ A DECISÃO DO GRUPO QUE REUNIR MAIOR NÚMERO DE CREDORES”.
O grande jurista, professor e doutrinador Jorge Lobo, em sua monumental obra Comentários à Lei de Falências e Recuperação de Empresas, coordenada por Paulo F. C. Salles de Toledo e Carlos Henrique Abrão, 4a Edição, Editora Saraiva, 2010, ao tratar da questão do empate nas votações das AGC, diz o seguinte, às páginas 165:
“3. Empate nas votações.
Ocorrendo empate, deve prevalecer a decisão tomada pelo maior número de credores, tal qual assentava o art. 122, § 3o da revogada Lei de Falências, só se recorrendo ao Poder Judiciário no caso de persistir o empate”. (grifamos).
É assente o pensamento da Doutrina quanto à questão do empate nas respectivas votações, devendo prevalecer a vontade da maioria.
A questão também foi enfrentada pelo nobre Desembargador Kisleu Dias Maciel Filho, do Egrégio TJGO, no AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 20300-06.2013.8.09.0000 (201390203000), Comarca de Rio Verde, tendo como Agravante Scania Banco S/A e Agravado Mandacari e Villar Ltda, onde o mesmo assim se posicionou:
“Por outro giro, da decisão impugnada infere-se que o presidente do feito homologou o plano de recuperação judicial com base no quórum alcançado em Assembleia Geral de Credores, registrando que “(...) houve aprovação do plano de recuperação por 100% dos credores trabalhistas; por 50% quantitativo e 50,78% qualitativo dos credores como garantia real; 88,46% quantitativo e 76,09% qualitativo dos credores quirografários” (fl. 96 – vol. 01). Logo, constato que apenas na classe dos credores com garantia real (na qual se inclui o recorrente) não se obteve a maioria simples dos presentes (por cabeça), para aprovação do plano, segundo exige o § 1º do art. 45 da LRF, terminando em empate (50% sim x 50% não). Entrementes, mesmo diante desse resultado, não censuro a decisão agravada, por homologar o plano, na medida em que, nessa situação, o julgador deve-se guiar pelo princípio da preservação da empresa, permitindo a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores, consoante prevê o art. 47 da LRF. A adoção de tal tese não é novidade, convém mencionar, já que, sob o voto condutor do ilustre Des. Carlos Alberto França, esta Corte validou aprovação de plano de recuperação pela Assembleia Geral de Credores, mesmo diante de empate no resultado da deliberação (2ª C. Cível, Agr. Instr. nº 201190842254, Dje 1182 de 09/11/2012).
Diga-se, a propósito, nas palavras de Luis Felipe Salomão, Ministro do Superior Tribunal de Justiça, “a lei precisa ser interpretada sempre com vistas à preservação da atividade econômica da empresa e não com a mesquinhada visão de que o instituto visa a proteger os interesses do empresário”(REsp nº 1187404/MT, 4ª Turma, julgado em 19/06/2013). Por isso que, na linha da jurisprudência do STJ, assentou-se que qualquer “interpretação que inviabilize ou não fomente a superação da crise da empresa em recuperação judicial contraria a lei” (Notícia de 26/06/2013, extraída do site: http://www.stj.jus.br). A preservação da atividade empresarial foi, inclusive, o fundamento adotado pelo juiz a quo, ao proferir o decisum açoitado, segundo denota-se das informações prestadas à fl. 555 – vol. 03”.
Demonstrando esta mesma uniformidade de pensamentos, e conforme abaixo, utilizaremos parte do voto do eminente Desembargador Luiz Fernando Boller, Relator de um caso análogo aos acima citados, do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, que, no Agravo de Instrumento - 2010.031090-2/0000-00 –Fraiburgo, adentrou com profundidade na questão, trazendo à lume a verdadeira intenção do legislador ao procurar equilibrar os votos dentro da classe III do art. 45 da LRE, colocando de um lado os poderosos detentores do dinheiro, mas protegendo, de outro, os interesses dos credores menos afortunados, mas que somadas as respectivas cabeças votantes, fizessem frente àqueles.
“(...)
À questão do tratamento jurídico da hipótese de empate:
Ainda que se compreendesse, em hipótese das mais benevolentes, que seria possível desconsiderar completamente o rigoroso prazo estabelecido no art. 37 da Lei nº 11.101/2005 e acolher no seio de um ato jurídico válido e de grande importância (a assembléia geral) um grave componente defeituoso (ato praticado por pessoa sem mandato), ainda assim surgiria um fenômeno sui generis, cuja previsão escapou de um específico tratamento legislativo direto, e cuja compreensão de seus efeitos demanda análise principiológica e teleológica da Lei de Recuperação de Empresas: o empate na votação de uma das classes.
O empate parece, à primeira vista, um falso problema, pois a lei seria clara ao demandar, no art. 45, “maioria simples dos credores presentes” para aprovação do plano, cumulativamente a outros requisitos legais. Ora, alguém poderia objetar qualquer dificuldade dizendo apenas que maioria simples é qualquer maioria, e que empate não é maioria e, portanto, que o requisito não restou atendido.
A questão não é tão simples assim.
Se a lei reclama maioria simples entre os credores presentes, em momento algum o faz de modo absoluto e independentemente de outros fatores. Utiliza a lei tal exigência como critério de controle do poder econômico do crédito concentrado. A maioria simples é exigida como segundo critério, cumulado ao critério primordial: a aprovação do plano, em cada classe, por “credores que representem mais da metade do valor total dos créditos presentes”. Ora, o objetivo da lei é de fácil percepção: evitar que a vontade de uma maioria de credores com créditos de valor menor seja esmagada, seja controlada e determinada pela vontade do capital concentrado na mão de poucos. O requisito do voto “por cabeça”, adicional aos votos “por valor do crédito” é evidente instrumento de prevenção do controle de uma minoria fortalecida pelos montantes em jogo sobre uma maioria desprotegida em função de menor força individual.
O escopo do § 1º do art. 45 da Lei nº 11.101/2005 não é o de proteger grupos de expressão numérica similar uns contra os outros, mas sim de, conforme acima expliquei, evitar situações claras de supremacia do poder do crédito concentrado sobre a normal dificuldade que o crédito diluído enfrenta. Como, diante disso, interpretar que um empate numérico por cabeça, que é uma das mais perfeitas formas de demonstração de que não há nenhuma clara concentração de vontades, deva ser considerado como elemento capaz de provocar a conclusão de que o plano de recuperação foi rejeitado?
Não se pode esquecer que o empate, se erroneamente entendido no caso concreto como falta de alcance da maioria simples capaz de, por si só, fundamentar a equivocada percepção de que a assembléia-geral rejeitou o plano, afrontaria os princípios gerais da recuperação judicial, tão bem apresentados pelo legislador, como parâmetros não apenas substanciais mas também instrumentais, verdadeiramente hermenêuticos, no art. 47 da Lei de Recuperação Judicial: “A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”. Por tais razões, entendo que a hipótese de empate, caso houvesse mesmo ocorrido no caso concreto, em atendimento ao escopo da lei e aos princípios hermenêuticos por ela e pelo ordenamento em geral instituídos, não poderia ser interpretada como falta de maioria simples capaz de gerar, por si, reprovação do plano, porque (ressalto, no caso concreto) não houve qualquer forma de dupla concentração de poder de voto (capital e número de votantes), mas sim expressiva divisão de forças, pendendo para o lado que bem realiza os objetivos legais de viabilização da situação de crise, com preservação de empregos e de interesses de credores em significativa parcela.
Finalmente, registro que não é a primeira vez que a Justiça é chamada a examinar o dilema do empate na votação, dentro de uma classe de credores, de um plano de recuperação judicial. Em 24 de agosto de 2006, o MM. Juiz de Direito Alexandre Alves Lazzarini, titular da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais do Poder Judiciário de São Paulo, enfrentou a questão, mutatis mutandis sob o prisma das abstenções que ocorreram em célebre votação do plano de recuperação judicial da VASP, homologando o plano e concedendo a recuperação judicial mesmo diante de empate numa das classes de credores, não sem deixar de dedicar especial atenção aos princípios do art. 47 da Lei nº 11.101/2005, em especial o da preservação da empresa, anotando ainda que “o art. 47, reforçado pelo art. 58, § 1º, além de princípios, importa em regras de interpretação”. E é assim mesmo”.
Concluindo, fica patente que o Judiciário deve guiar-se, em sendo a Recuperanda recuperável, no sentido de decidir-se favoravelmente à aprovação do Plano de Recuperação Judicial objeto da AGC, em conformidade com o maior número de credores votantes ou mesmo nos casos de empates (especificamente das classes de credores previstas nos Incisos II e III do Art. 41), visando, dessa forma, a preservação da atividade, a manutenção dos empregos, a geração de impostos, entre outros benefícios, conforme os princípios insculpidos no Art. 47 da Lei 11.101/05.
Renaldo Limiro da Silva é advogado associado da TMA Brasil e sócio-fundador do escritório especializado em Recupeação Judicial Limiro Advogados Associados S/S, com sede em Goiânia-GO, e autor das obras jurídicas A Recuperação Judcial de Empresas, AB Editora; Manual do Supersimples, com Alexandre Limiro, Juruá Editora, e A Recuperaçõ Judicial Comentada Artigo por Artigo, Editora DelRey, 2015.