Em tempos de crise, inúmeras empresas brasileiras vêm enfrentando dificuldades para honrarem seus compromissos, especialmente aqueles de curto prazo, tais como pagamento da folha de seus funcionários, de matéria prima e insumos, financiamentos, tributos e outras essenciais para a manutenção de suas atividades. Diante de tal cenário, a Recuperação Judicial, regulada pela Lei n° 11.101/05, vem sendo o remédio jurídico mais utilizado para a manutenção da atividade produtiva e equalização das diversas obrigações da empresa.
Passada mais de uma década da entrada em vigor da Lei, é possível esboçar um perfil e identificar as principais características daquelas empresas que se utilizaram do referido mecanismo legal e obtiveram êxito na recuperação da sua saúde financeira e, especialmente, sua estrutura operacional, em clara contraposição àquelas que não conseguiram aprovar seus planos de recuperação e, se aprovados, tiveram dificuldades extremas de cumprimento, não conseguindo alcançar os objetivos e princípios delineados na Lei de Recuperações, que são primordialmente a manutenção da fonte produtora e dos empregos por ela gerados.
Logicamente, sabe-se que a tomada de decisão tardia e a própria inviabilidade da empresa, são as principais causas apontadas para o insucesso do procedimento judicial. Todavia, em inúmeros casos, vai além disso.
A recuperação judicial, infelizmente, não tem como seu fim, por si só, a recuperação efetiva do negócio, e sim a criação de condições favoráveis para que a empresa e seus stakeholders consigam identificar os problemas que direcionaram a corporação para a situação de crise e, com isso, estruturar um plano eficiente que ataque os principais sintomas e suas origens. Porém, além de tudo isto, o principal desafio da reestruturação do negócio é a efetiva execução do plano, e para tanto, é primordial um alinhamento entre todas as partes envolvidas no processo. É exatamente nesse momento que a implementação das melhores práticas de governança assume um papel fundamental para o sucesso da recuperação judicial, e de forma mais abrangente do projeto de reestruturação da empresa como um todo, uma vez que tem como finalidade otimizar o desempenho de uma companhia, protegendo investidores, empregados e credores.
Na recuperação judicial, a presença das melhores práticas de governança corporativa é imprescindível, uma vez que o legislador se preocupou em alinhar o interesse de preservação da empresa com o atendimento das expectativas dos stakeholders. Com isso, os objetivos e os princípios básicos das boas práticas se encaixam de forma harmônica para a busca do sucesso da tentativa de soerguimento da sociedade empresária em dificuldades.
Destaca-se, então, os princípios da Transparência, Equidade, Prestação de Contas e da Responsabilidade Corporativa, postulados decorrentes da governança corporativa, que tem importância determinante no encaminhamento de qualquer projeto de reestruturação, notadamente aqueles nos quais utilizado o instrumento jurídico da recuperação judicial, pelo fato deste procedimento não se constituir um fim em si mesmo, para fins recuperacionais, conforme alertado acima.
A Lei n° 11.101/05 impõe aos representantes das sociedades empresárias que se utilizam do mecanismo legal da recuperação a observância destes princípios, uma vez que determina a apresentação de relatório das atividades, informações patrimoniais, apresentação dos balancetes e demais demonstrações contábeis, dentre outros, ou seja, impõe total Disclosure no ambiente de recuperação judicial, com ampla acessibilidade das informações corporativas. Além disso, a Lei determina o tratamento igualitário entre credores da mesma classe e com as mesmas características, bem como o cumprimento de regras claras e objetivas que o plano de recuperação deve observar, importando do direito estrangeiro (notadamente norte americano) os postulados regradores de procedimentos recuperacionais, do fair and equitable (tratamento equânime e justo entre os credores) e da unfair discrimination (proibição de injusta discriminação entre os credores).
No entanto, a análise empírica da imposição legal do Disclosure determinada na legislação indica que vem sendo cumprida de forma estrita, ou seja, exclusivamente para fins de cumprimento das regras do jogo, o que importa dizer que a verificação feita é a de que se não houve a efetiva apresentação de documentos necessários, se ocorreu a omissão de informações no processo, dentre outras situações neste sentido, é possível que a recuperação judicial seja convolada em falência. Com base nessa constatação, percebida pela prática daqueles que atuam na área de recuperações, conclui-se como falsa a ideia de que o Disclosure “meramente formal” que se tem hoje, ou seja, o mero cumprimento legal de apresentação de documentos e informações solicitadas pelo magistrado (ou mesmo pelo administrador judicial), irá acarretar a efetiva atração dos stakeholders para dentro do projeto de reorganização do endividamento e do próprio negócio, com o verdadeiro e genuíno espírito de engajamento e responsabilidade em reverter o quadro de crise, que é o quadro necessário para o sucesso do projeto de reestruturação e mais especificamente do processo recuperacional.
É diante do cenário acima exposto, que de forma muito clara, entende-se que a busca pela reorganização da sociedade empresária em crise divide-se em duas estruturas bem definidas, que devem agir conjunta e harmonicamente, quais sejam:
Gestão do Processo de Recuperação Judicial e;
Gestão da Reestruturação Empresarial.
A gestão do processo de recuperação judicial, conforme abordado acima, deve estar extremamente alinhada com as diversas imposições legais decorrentes da Lei nº 11.101/05, seja no tocante à apresentação de documentos e informações, bem como quanto ao cumprimento dos prazos das diversas medidas a serem empreendidas nos autos judiciais, não somente com o intuito de que o processo tramite regularmente, mas gerindo tais prazos e medidas evitando a eternização do procedimento de recuperação judicial, pois o alongamento no tempo (que se busca evitar) somente aumenta a angústia dos credores, o volume de demanda no judiciário e, inevitavelmente, o descrédito do Instituto da Recuperação Judicial.
A gestão da reestruturação empresarial, por sua vez, é absolutamente esquecida na grande maioria dos processos de recuperação judicial em trâmite no País, nos quais parece se ater demais ao procedimento judicial em si, consagrando-se uma cultura contenciosa ainda vigente entre os operadores do direito no Brasil, e deixando-se de lado os aspectos extra processuais, que são de extrema relevância, conforme crítica exposta acima. Como já comentado, a recuperação judicial, por si só, não tem o condão de reorganizar uma empresa em dificuldades, todavia, aliada a outros instrumentos, haja vista não ser o único, irá criar mecanismos sólidos, eficientes e seguros para a empresa se reorganizar. O procedimento legal tem evidentemente sua importância, fornecendo um dos principais ativos para os gestores da empresa em crise, o Tempo. Este ativo, que somente a recuperação judicial proporciona com efetividade ímpar às empresas em dificuldades, é fundamental para “reorganizar a casa”, visando o equilíbrio do capital de giro e do próprio caixa, para o enxugamento de despesas administrativas incompatíveis com a realidade atual de mercado e, especialmente para reestabelecer a confiança - em muitos casos perdida - junto aos seus colaboradores, fornecedores, clientes, financiadores e perante o mercado como um todo.
É sabido que o termo “confiança” tem grande poder de influência, pois a geração de expectativas positivas, que gerem um verdadeiro clima de confiança, é o que move terceiros a acreditarem em determinado projeto, e até mesmo a investirem neste. A economia é altamente influenciada pela confiança, pelas expectativas positivas, tanto que o Governo dos Países se utiliza de ferramentas básicas de macroeconomia tais como as Políticas Monetária, Fiscal e Cambial, dentre outras razões, exatamente para demonstrar para o mercado em geral as expectativas que se pode esperar do País, no que tange a condução dos rumos dos gastos e investimentos públicos, bem como do financiamento e demanda nacionais, construindo através destes elementos o ambiente de confiança para atrair os investimentos adequados para crescimento ou reestruturação da própria economia.
Na mesma linha exposta acima, as empresas também precisam, ao buscar a reestruturação em cenários de crise, gerar um ambiente de expectativas positivas, ou seja, gerar “confiança” aos terceiros com os quais se relaciona, e para tanto, é fundamental que os princípios das melhores práticas de governança sejam intensamente e constantemente perseguidos pela gestão da reestruturação, visando reconquistar a confiança de todos stakeholders.
O primeiro, e talvez o principal princípio que deve ser incansavelmente perseguido pelos gestores das empresas em dificuldades, é o da Transparência, até mesmo porque não há que se falar em confiança sem um ambiente transparente. Não se trata de mera obrigação legal de informar e sim o efetivo desejo de dividir as informações para aperfeiçoar e aproximar a relação entre empresa e seus stakeholders. O famoso “abrir a cozinha” aqui ganha uma proporção gigantesca de confiança entre as partes envolvidas.
O princípio da Equidade, por sua vez, foca no tratamento igualitário e justo para todos os credores (fair and equitable), trazendo todos os envolvidos no processo para buscar a solução da obrigação assumida entre as partes da forma mais vantajosa e, consequentemente, menos onerosa para as partes, o milenar “ganha ganha”.
No que se refere à Prestação de Contas, não se trata de cumprir a determinação legal prevista na Lei n° 11.101/05, a qual obriga os representantes das recuperandas a apresentarem mensalmente um relatório de suas atividades, é mais que isso, importa no desejo em expor aos credores e investidores a efetiva viabilidade do negócio, bem como a vontade extrema dos proprietários e gestores em reverter o quadro de instabilidade, de falta de confiança e de dificuldades de caixa, e de perseguirem a todo custo a reorganização do negócio, para atingimento efetivo dos fins almejados em projetos de reestruturação, quais sejam, a manutenção da fonte produtora e dos postos de trabalho por ela gerados, com a consagração da própria finalidade social da empresa.
Por fim, mas não menos importante, o princípio da Responsabilidade Corporativa, que está enraizado na Lei de Recuperações. A função social da empresa (já referida acima) talvez seja o principal objetivo a ser alcançado pelas empresas que se utilizam da recuperação judicial na busca pelo equilíbrio do seu caixa e das suas relações com o mercado. A necessidade de zelo na condução das relações desenvolvidas com todos colaboradores e parceiros da empresa, visando a sustentabilidade, perenidade da atividade, e de todo o retorno que a empresa gera para a sociedade, em retorno de distribuição de riqueza na forma de salários e tributos, notadamente.
A gestão da reestruturação impõe uma transformação radical e efetiva, que requer sacrifícios. Para tanto, são impostas medidas para o restabelecimento da confiança da empresa com seus Stakeholders, tais como a substituição de seus principais executivos e diretores, a estabilização da crise através de medidas de austeridade com corte de custos e despesas, as mudanças estruturais, o foco estratégico, dentre muitos outros.
Em suma, como brevemente exposto nos parágrafos acima, a Recuperação Judicial é instrumento jurídico de grande eficácia, notadamente por conceder “tempo” e proteção à empresa afetada por situação de crise, para que possa manter sua atividade empresarial, porém, este instrumento jurídico não pode ser remédio desacompanhado de qualquer outra medida, o tratamento demanda além da gestão do processo da recuperação judicial, a gestão da reestruturação empresarial, na qual se age extrajudicialmente e na correção de rumos em termos de gestão empresarial efetivamente, para que, tal qual na condução da economia de um País, se gere expectativas positivas em torno da empresa, no caso destas pela adoção das melhores práticas governança corporativa, processo este que é coroado com o restabelecimento de confiança com os Stakeholders, restando garantido o efetivo sucesso do plano e do projeto de reestruturação como um todo.