O modelo brasileiro de recuperação judicial estabelece que apenas os elencados no artigo 1.º da Lei n.º 11.101/2005 (“LRF”) detêm legitimidade para ajuizamento do pedido, de modo que somente podem se valer dos benefícios da LRF o “empresário” e a “sociedade empresária”.
Nos primeiros anos da LRF, os tribunais pátrios revelavam uma tendência de interpretar o dispositivo de uma forma restritiva e literal, entendendo que apenas aqueles que exercem atividade classificada como empresária, na acepção do artigo 966 do Código Civil[1], poderiam se socorrer da recuperação judicial e extrajudicial em um momento de crise econômico-financeira.
No entanto, esse posicionamento parece estar mudando, e a discussão sobre a ampliação do rol de legitimado já foi até travada durante a tramitação do Projeto de Lei n.º 6.229/2005, que se converteu na Lei n.º 14.112/2020, a qual alterou diversos dispositivos da LRF.
Durante os trâmites no Congresso Nacional, o deputado federal Mário Heringer sugeriu a alteração do artigo 1.º da LRF para incluir as sociedades cooperativas e entidades beneficentes de assistência social no rol de legitimados. A deputada federal Alê Silva também propôs emenda nesse sentido, mas para permitir a recuperação judicial, extrajudicial e falência das Santas Casas de Misericórdia. As propostas, porém, acabaram sendo vetadas.
Não obstante os vetos, recentemente os magistrados estão apresentando uma maior inclinação para uma interpretação principiológica da lei, de modo a ampliar o rol de legitimados da LRF para compreender qualquer agente que desempenhe uma atividade econômica, ainda que sem fins lucrativos.
A questão, porém, ainda é controvertida nos nossos tribunais e aguarda uniformização pelo Superior Tribunal de Justiça (“STJ”).
No âmbito do julgamento da TP n.º 3654/RS, na qual se discutia a possibilidade de entidades de ensino do Grupo Metodista – i.e., associações civis sem fins lucrativos – apresentarem pedido de recuperação judicial, a Quarta Turma do STJ, seguindo a posição do relator, Ministro Luis Felipe Salomão, entendeu pela legitimidade dessas associações, uma vez que elas exercem atividade econômica. De acordo com o voto do relator, “as associações civis sem fins lucrativos acabam se estruturando como verdadeiras empresas do ponto de vista econômico”, já que em muitos casos elas exercem “atividade econômica organizada para a produção e/ou a circulação de bens ou serviços”.
Restou vencido o voto do Ministro Raul Araújo, a quem o pedido não encontraria amparo na LRF, pelo argumento de que, ao utilizarem o modelo de entidades filantrópicas, as associações civis sem fins lucrativos obtêm “inúmeros benefícios não estendidos às sociedades empresárias”, sem, contudo, correrem os mesmos riscos empresariais a que se sujeitam os demais agentes econômicos. Na visão do Ministro, as associações civis estariam tentando aproveitar “o melhor de dois mundos”.
O voto divergente do Ministro Raul Araújo está em consonância com o seu entendimento exarado nos autos do AgInt no AREsp n.º 658531/RJ em março de 2021, do qual foi relator. O caso tratava da Associação do Hospital Evangélico do Rio de Janeiro, e o magistrado entendeu que por ter natureza de associação, não preencheria os requisitos legalmente exigidos para pleitear a recuperação judicial. O voto foi acompanhado pelos demais integrantes da turma julgadora, incluindo o Ministro Luis Felipe Salomão, que não proferiu voto divergente.
Assim, até que se tenha uma posição definitiva e consolidada dos tribunais superiores ou uma alteração legislativa que estenda o rol de legitimados da LRF, permanecerá a dúvida sobre o ponto.
Por outro ângulo, conforme já mencionado acima, existe um movimento não só legislativo como também da própria jurisprudência[2] para endereçar as crises econômico-financeiras que os diversos agentes econômicos venham a passar.
É o que ocorreu no caso do Figueirense Futebol Clube, que teve sua recuperação extrajudicial autorizada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina[3], mesmo antes da edição da Lei n.º 14.193/2021 (“Lei das SAFs”), que instituiu as Sociedades Anônimas de Futebol (SAFs) e dispôs sobre o tratamento diferenciado dos passivos das entidades desportivas.
Conforme previsão do artigo 13, inciso II, da Lei das SAFs, essas entidades agora são legitimadas para se valerem da recuperação judicial ou extrajudicial para recompor-se de crises econômico-financeiras ou do Regime Centralizado de Execuções, conforme artigo 14 da Lei das SAFs.
Transcorrido menos de 1 ano desde a entrada em vigor da Lei das SAFs, outros clubes de futebol nacionais já recorreram aos benefícios por ela concedidos para reestruturação dos seus passivos, como o Vasco da Gama e do Sport Club Corinthians Paulista, que ajuizaram medidas judiciais para a obtenção do Regime Centralizado de Execuções (RCE). Chapecoense, Coritiba, Santa Cruz e Paraná Clube também se socorreram a partir das previsões da LRF para reestruturar o seu passivo[4].
Vale também mencionar a iniciativa da Lei do Superendividamento (Lei n.º 14.181/2021) que alterou o Código de Defesa do Consumidor. Ainda que não se trate de recuperação judicial efetivamente, a Lei do Superendividamento incluiu um procedimento que permite aos consumidores pessoas físicas que se encontrem em situação de superendividamento um mecanismo similar àquele previsto na LRF, em que possam apresentar aos seus credores propostas de plano de pagamento.
Atentos a este movimento, tramitam na Câmara dos Deputados os Projetos de Lei n.º 1262/2021 e 3626/2021, ambos propostos pelo deputado federal Carlos Bezerra (MDB).
O primeiro pretende alterar o artigo 1.º da LRF para incluir no rol de legitimadas as “pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, empresárias ou não” e incluir o capítulo VI-B à LRF, que trata especificamente da “recuperação judicial, da recuperação extrajudicial e da falência dos não-empresários”.
O segundo, por sua vez, visa permitir que cooperativas possam se socorrer do regime da LRF, sob o argumento de que grandes cooperativas “apresentam estrutura organizacional e funcionamento que as sujeitam às mesmas situações de fragilidade de qualquer empresa de grande porte”, de modo que seria “conveniente que [...] possam se utilizar dos instrumentos jurídicos apropriados para restaurar sua viabilidade econômica, instituídos pela Lei nº 11.101”.
Os dois projetos de lei ainda estão em fases prematuras, mas acreditamos que vale acompanhar o desenvolvimento, que poderão trazer novos e relevantes contornos à legislação falimentar e à economia brasileira.
[1] “Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.”
[2] Nos moldes da TP n.º 3654/RS mencionada acima e neste mesmo espírito de ampliação do rol dos legitimados, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro autorizou, em 02.09.2020, o processamento da recuperação judicial da associação mantenedora da Faculdade Cândido Mendes.
[3] Processo n. 5024222-97.2021.8.24.0023, em trâmite perante a Vara Regional de Recuperações Judiciais, Falências e Concordatas da Comarca de Florianópolis/SC.
[4]O Coritiba e a Chapecoense ajuizaram pedidos de recuperação judicial, cujo processamento foi deferido pelo Poder Judiciário em vista das previsões da Lei das SAFs (processos n. 0001540-26.2022.8.16.0185 e 5001625-18.2022.8.24.0018 e, em trâmite perante a 2ª Vara de Falências e Recuperação Judicial de Curitiba/PR e 1ª Vara Cível da Comarca de Chapecó/SC, respectivamente). O Santa Cruz ajuizou pedido antecipatório à recuperação judicial para realização de mediação com seus credores sujeitos à recuperação judicial e suspensão das execuções movidas contra si (processo n. 0014524-96.2022.8.17.2001, em trâmite perante a 9ª Vara Cível da Comarca de Recife/PE). Já o Paraná Club ajuizou pedido de recuperação judicial em caráter de urgência – o qual foi distribuído para a 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da Comarca de Curitiba/PR e autuado sob o nº 0006994-84.2022.8.16.0185- , informando no pedido inicial que tomou todas as medidas legais e necessárias para se enquadrar como Sociedade Anônima de Futebol.