Na Antiguidade, uma pessoa que deixava de pagar as suas dívidas se tornava escravo, assim como seus ascendentes e descendentes. A Lei das XII Tábuas, por exemplo, permitia que o devedor fosse vendido como escravo ou morto e seus bens transferidos para o credor; se houvesse vários credores, o devedor poderia ser esquartejado e seus bens, divididos entre todos. À medida que as civilizações antigas evoluíram, elas foram abolindo a escravidão por dívidas e se firmou o princípio de que só o patrimônio do devedor por elas responderia.
Cada um deve ser responsável pelas próprias dívidas, o que ocorre em todas as nações ditas civilizadas. Não é o que ocorre no Brasil, onde esse saudável conceito foi substituído pelo de "Quem tem deve pagar" - não importando se o atingido é ou não responsável por aquilo que se pretende cobrar.
A lei define essa involução ora como "sucessão", ora como "responsabilidade solidária", ora como "desconsideração da personalidade jurídica". Exemplifico: alguém que adquire uma empresa passa, juntamente com todas as empresas do seu grupo econômico, a ser responsável pelo pagamento de todo o seu passivo trabalhista, ainda que muito superior ao valor da empresa adquirida, por força da Consolidação das Leis do Trabalho. Em outras palavras, ninguém dotado de alguma sanidade mental adquire uma empresa que detenha um passivo trabalhista importante, pois a dívida se transfere automaticamente da empresa devedora para o comprador e para todas as empresas na qual detenha qualquer participação, ainda que minoritária ou simbólica.
A consequência dessa estrutura "solidária" é que essa empresa não poderá ser alienada, e enquanto ela sobreviver não estará cumprindo suas obrigações sociais, inclusive a de pagar impostos, e estará concorrendo deslealmente no mercado. Quando ela for desativada, os empregados perderão os seus empregos, e os produtos por ela manufaturados serão importados da China, pois todos os seus concorrentes brasileiros estarão enfraquecidos. Outro dia ouvi um pai advertir o seu filho: "Não invista em nenhuma hipótese, pois, se o fizer, serás desconsiderado."
Em 1602, seguindo a concessão pelo Estado de um monopólio de ai anos para desenvolver atividades de colonização na Ásia, foi criada a Companhia Holandesa das Índias Orientais, a primeira grande sociedade de responsabilidade limitada de que se tem notícia: uma sociedade anônima. A grande novidade era a separação do seu patrimônio enquanto pessoa jurídica do patrimônio das pessoas físicas que a detinham, inclusive de seus sócios-administradores. Essa inovação permitiu o desenvolvimento do conceito de capital de risco, de forma que o investidor pudesse se envolver em negócios arriscados sem pôr a perder todo o seu patrimônio, mas apenas o montante do capital investido, recebendo, em contrapartida, os lucros do empreendimento.
Foi a responsabilidade limitada que permitiu o extraordinário desenvolvimento econômico e tecnológico a partir do Renascimento comercial. E foi justamente a limitação da responsabilidade que passou a ser uma lembrança do passado entre nós, de forma que ninguém que pretenda se resguardar minimamente pode contemplar investir um centavo que seja em uma empresa. Talvez o faça em empresa da qual detenha o controle, por falta de alternativa, pois corno diria Fernando Pessoa, "navegar é preciso, viver não é preciso".
A única área relativamente preservada nesse contexto é a área de mercado de capitais, embora faltem regras claras delimitando a responsabilidade de acionistas e de investidores em fundos. Hoje existem casos de acionistas que foram atacados pelas regras de "sucessão", "responsabilidade solidária" e "desconsideração", embora tivessem investido em veículos próprios do mercado de capitais. Assim, se não forem editadas regras claras em um futuro próximo, nem essa área ficará a salvo da nossa cultura de outorga exagerada de benesses.
Como resultado, do ponto de vista macroeconômico, o Brasil é um dos países emergentes que menos investem. O Brasil investe aproximadamente o porcentual do PIB que a China arrecada de impostos (20%) e a China investe o porcentual do PIB que nós arrecadamos de impostos (40%). Nesse ritmo, não conseguiremos competir com os demais países, pois, sem investimentos, não há desenvolvimento sustentável.
Diante dessas circunstâncias, exceto os pródigos, poucos são os que se aproximam de uma empresa em dificuldades econômicas para delas adquirir o que quer que seja. Uma empresa em crise precisa, muitas vezes, se desfazer de ativos e de atividades e empenhar os seus recursos nas áreas que apresentam melhor desempenho. No Brasil, o marco institucional dificulta esse ajustamento, embora ele seja necessário para viabilizar a sobrevivência das empresas e expansão da economia.
Essa situação deve ser alterada, e a forma de fazê-lo é resgatar os dois conceitos básicos acima referidos: é preciso parar de cobrar de quem não é responsável e é preciso efetivamente limitar a responsabilidade do investidor sobre o valor investido. A adoção efetiva desses princípios poderá ser uma poderosa alavanca na difícil jornada de aumentar os investimentos produtivos no Brasil.