Com a crise internacional de 2008 e diante da falta de capital de giro e de eventual exposição à variação cambial, muitas empresas encontraram-se em sérias dificuldades financeiras e recorreram aos institutos estabelecidos pela nova Lei de Recuperações e Falência – “LRF”, em especial à recuperação judicial, com o objetivo de reerguerem-se econômica e financeiramente e manter, então, a fonte produtora, o emprego dos trabalhadores e os interesses dos credores (valores protegidos pela LRF, em seu art. 47).
Na mesma época, algumas empresas, preventivamente a qualquer uma das modalidades dos processos concursais, optaram por renegociar extrajudicialmente suas dívidas e/ou por dar novos direcionamentos às suas atividades, muitas vezes vendendo, arrendando parte de seus negócios a concorrentes ou deixando de desenvolver, temporária ou definitivamente, determinadas atividades.
Tanto na recuperação judicial, quanto nas medidas extrajudiciais para enfrentar a crise financeira, a reestruturação das empresas brasileiras freqüentemente envolve a transferência dos seus ativos e complexos produtivos, seja pela alienação direta ou por meio de reestruturação societária. Caso as medidas de recuperação não sejam efetivas, a alienação dos bens da empresa, organizados para o desempenho de sua atividade econômica, também pode ocorrer no processo falimentar.
Tais operações podem levar à maior concentração do mercado em determinados setores, com a cessação das atividades pela empresa em crise e a transferência de seus ativos para um concorrente ou um novo agente do mercado.
Assim, a reestruturação de empresas em crise pode envolver, não somente a defesa dos interesses dos credores, trabalhadores e parceiros da empresa, mas, também, a proteção dos princípios da livre concorrência e do bem estar dos consumidores. Tal ponderação se torna ainda mais complexa nos casos envolvendo agentes econômicos de mercados altamente concentrados, como ocorreu em alguns setores brasileiros.
Diante desse cenário, verifica-se que fusões, cisões, incorporações, transformações, aquisições, venda de unidades produtivas isoladas, a empresas do mesmo segmento da recuperanda (modalidades de recuperação previstas no art. 50 da LRF), merecem ser analisadas, não apenas sob a ótica da LRF, como, também, com base no direito concorrencial e, quando aplicável, regulatório.
Nos termos da Lei 8.884/1994, os atos que possam limitar ou, de qualquer forma, prejudicar a livre concorrência, ou resultar na dominação de mercados relevantes de bens ou serviços, deverão ser submetidos à apreciação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“CADE”), que contará com as análises técnicas da Secretaria de Acompanhamento Econômico (“SEAE”) e da Secretaria de Direito Econômico (“SDE”), que elaboraram, por meio de portaria conjunta, o Guia Para Análise Econômica de Atos de Concentração Horizontal.
Entre as diversas questões complexas que surgem nesse contexto, destaca-se que, nos casos em que a operação prevista em plano de recuperação vier a se enquadrar nos critérios do art. 54 da Lei n. 8.884/1994 (que ensejam a análise pelo CADE), há quem entenda[1], tendo em vista a LRF ser silente em relação à necessidade de tal aprovação pelo CADE, que compete ao juiz da recuperação judicial, no momento em que for proferir a decisão sobre a homologação do plano de recuperação, averiguar se haveria alguma matéria que deveria ser apreciada pelo CADE, solicitando, então, parecer desse ente, se necessário.
Segundo tal corrente, “no âmbito do processo de recuperação judicial, caberá ao magistrado - Estado - Juiz-, como guardião da legalidade do plano de recuperação, avaliar se as condições legais, quando envolver fusão ou incorporação, por exemplo, encontram-se atendidas. As condições legais aqui abordadas são tanto aquelas da lei societária para a validade formal e material da operação (Código Civil, artigos 1.116 a 1.120, para as sociedades contratuais, e Lei n. 6.404/76, artigos 223 a 228 para as sociedades por ações), como as que repelem os atos de concentração incriminados por lei (Lei n. 8.884/94, artigo 54)[2]”.
Concluindo tal pensamento, os defensores dessa corrente afirmam que “somente o juízo único da recuperação estará apto a atribuir valores e pesos no exercício da atividade de ponderação dos princípios constitucionais da preservação e função social da empresa, da valoração do trabalho e da dignidade da pessoa humana (informadores da recuperação judicial) face aos princípios da livre concorrência, da repressão ao abuso econômico e de proteção dos consumidores, caso entrem em conflito. Avaliará, pois, a correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos resultantes da conduta tida como indispensável à sua promoção, sempre na perspectiva de dimensionar aquele princípio com peso relativamente maior que deve, destarte, se sobrepor ao outro, sem que, com isso, este perca sua validade”[3].
Em sentido contrário, há quem advogue[4] que, sempre nesse contexto, a não submissão, para apreciação do CADE, de um ato de concentração empresarial que se enquadre nos termos do art. 54 da Lei nº 8.884 pode tornar a operação ineficaz, cabendo apenas à Justiça Federal, competente para controlar os atos oriundos do CADE, proferir decisão acerca da desnecessidade de atuação desse órgão.
Em outras palavras, segundo tal entendimento, o Juízo da Recuperação Judicial não pode decidir a respeito dos efeitos concorrenciais das disposições do plano de recuperação judicial, até por que lhe falta capacidade técnica para proceder a tal análise.
Ademais, seus atos seriam motivados “por uma preocupação relacionada mais diretamente com a reorganização da sociedade empresária em crise e esta análise não pode excluir aquela que precisa ser feita pela autarquia federal e que voltará sua atenção para a efetiva tutela de outros valores também previstos no diploma constitucional”[5], defendendo stakeholders que não participam do processo de recuperação judicial.
Em que pese essa divergência, cumpre ressaltar que diversas operações envolvendo empresa em recuperação judicial sob a vigência da LRF foram submetidas ao CADE, como nos casos VARIG, Parmalat, Agrenco, Supermercado Gimenes e Pantanal, e até mesmo de processos de recuperação judicial conduzidos em países estrangeiros, como nos casos Chrysler e Delphi.
Diante dessa constatação, é importante averiguar se o CADE e os demais órgãos do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência levam em conta a situação de insolvência ao decidir sobre a aprovação ou não de um determinado ato de concentração. Ou seja, resta saber se a sua análise deve considerar que os ativos adquiridos ou incorporados são provenientes de uma empresa insolvente, em recuperação judicial, extrajudicial ou falida.
Respondendo a essa questão, surgiu nos Estados Unidos a teoria da “failing company”, também conhecida como “failing firm defense” ou teoria da empresa insolvente.
Segundo essa teoria, a situação de insolvência da empresa envolvida na fusão ou na alienação de ativos pode constituir uma exceção aos padrões para análise de atos de concentração, para evitar que seus ativos sejam desperdiçados ou perdidos, sendo possível aprovar uma operação que não seria admissível caso se tratasse de empresa solvente.
O assunto é de extrema importância e foi objeto de regulamentação específica pelas autoridades americanas, com a edição dos 1992 Horizontal Merger Guidelines, elaborado pela Federal Trade Commission e pelo Department of Justice.
As Horizontal Merger Guidelines estabelecem critérios para a aplicação da “failing firm defense”, entre eles podendo ser citadas as exigências de que a empresa em crise seja efetivamente incapaz de honrar seus compromissos financeiros; de que não tenha condições se reorganizar com sucesso nos termos do Chapter 11 da lei americana; de que tenha se esforçado, de boa fé e sem sucesso, em viabilizar ofertas alternativas razoáveis para a aquisição de seus ativos; e que os ativos da empresa deixariam o mercado, caso não ocorresse a operação.
O tema também foi objeto de diversos dos trabalhos da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico ou Econômico (OCDE), inclusive no que diz respeito ao Brasil.
No relatório Competiton Law and Policy in Brazil, elaborado pela OCDE em 2005, destaca-se que, diferentemente dos Estados Unidos, o Guia Para Análise Econômica de Atos de Concentração Horizontal brasileiro não estabelece critérios para a avaliação de atos de concentração envolvendo empresas insolventes.
O CADE, apesar de ter analisado diversos atos de concentração envolvendo a venda de ativos de empresas falidas ou em recuperação judicial, não estabeleceu, na sua jurisprudência, um entendimento sistematizado a respeito do tema e dos requisitos específicos necessários à aplicação da teoria da “failing company”.
Cumpre ressaltar que, em muitos casos, a situação de insolvência da empresa envolvida na operação foi sequer mencionada na fundamentação do acórdão. Assim, merecem destaques alguns dos posicionamentos dos órgãos do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência nas ocasiões em que esta questão foi efetivamente analisada.
O Ato de Concentração nº 44/1996 foi um dos primeiros casos em que esta questão foi abordada, envolvendo reestruturação de empresa insolvente do setor siderúrgico.
Nos termos do voto do Conselheiro Renault de Freitas Castro, o argumento da empresa insolvente é reconhecido “nos casos em que as requerentes efetivamente demonstram que uma delas está em situação de insolvência e, ainda, que a outra detém capacidade econômica e financeira para impedir que os ativos da empresa insolvente deixem o mercado”.
Nesse caso, apesar de ter aprovado a operação, o CADE, fazendo referência aos Guidelines da Federal Trade Commission e do Department of Justice americanos, concluiu que o argumento da “failing company” não poderia ser aplicado, uma vez que não foi demonstrado que a operação era a única alternativa razoável para manter o funcionamento das atividades produtivas da empresa.
Por sua vez, no Ato de Concentração nº 08012.014340/2007-75, envolvendo a compra, pela Votorantim, de ativos da massa falida da Mineração Areiense S/A, o parecer elaborado pela SEAE optou por não analisar detalhadamente a operação e nem determinar o mercado relevante, “considerando que os direitos minérios (objeto da operação) pertencem a um agente econômico inoperante”.
O parecer da Procuradoria do CADE, sobre o mesmo caso, faz referência expressa à teoria da “failing company defense”, afirmando que a operação preenche os requisitos estabelecidos nas Horizontal Merger Guidelines americanas, e concluindo pela aprovação da operação. Já no acórdão do CADE, que aprovou a operação, a referência à teoria da empresa insolvente é breve, não sendo explícitos os requisitos que teriam sido preenchidos para a sua aplicação.
Na análise da compra, pela TAM, de ações da Pantanal, o CADE, nos termos do voto do Conselheiro Ricardo Machado Ruiz, fez referência à insolvência da empresa como uma argumento adicional para a decisão pela aprovação da operação, entendendo que “a Pantanal se encontrava num processo de recuperação judicial e com grandes riscos de interromper suas atividades. Sua aquisição pela TAM representa uma possibilidade de manutenção e até de expansão das rotas anteriormente operadas”.
O Conselheiro afirmou, ainda, que não se tratava de uma aquisição convencional, mas, sim, “uma oportunidade de mercado para o qual se teve até mesmo agendado um leilão onde, vale destacar, somente a TAM se credenciou como participante”.
[1] Cita-se Sérgio Campinho, in Atos de Concentração no Plano de Recuperação Judicial: Participação Obrigatória ou Facultativa do CADE, Revista de Direito Empresarial e Recuperacional n. 0, Ano I, Jan./Mar 2010, p. 103/124, Ed. Conceito Editorial, Florianópolis.
[2] Sérgio Campinho, op. cit., p. 113.
[3] Sérgio Campinho, op. cit., p. 120.
[4] Faz-se referência a Valter Shuenquener de Araújo, in O (Indispensável) Papel do CADE nos Atos de Concentração Previstos em Planos de Recuperação, Revista Semestral de Direito Empresarial RSDE 2, janeiro e junho de 2008, pp. 73/92.
[5] Valter Shuenquener de Araújo, op. cit, p. 86.
Tito Amaral de Andrade é advogado do Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados.
Renata Martins de Oliveira é advogada do Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados.
Erica Sumie Yamashita é advogada do Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados.
Gisela Ferreira Mation é advogada do Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados.