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RECUPERAÇÃO JUDICIAL, DIP FINANCING E ARBITRAGEM: A POSIÇÃO FINAL DO STJ NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA No 203.888/SP

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Renata Martins de Oliveira Amado[1]

Anna Carolina S. Abrantes[2]

1. INTRODUÇÃO

            O presente artigo apresenta e tece pequenos comentários a respeito do posicionamento sobre o conflito de competência Conflito de Competência no 203.888/SP, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, em que se discutiu a possibilidade de submeter à arbitragem disputas decorrentes de contrato de financiamento celebrado durante a recuperação judicial (financiamento DIP).

A análise se dá à luz da legislação vigente, da reforma da Lei nº 11.101/2005 pela Lei nº 14.112/2020 e da jurisprudência consolidada sobre arbitragem e recuperação judicial.

2. FINANCIAMENTO DIP NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

A recuperação judicial constitui instrumento jurídico destinado à superação de crise econômico-financeira[3]  de empresários[4][5], que viabiliza a negociação estruturada entre credores e devedor com vistas à solução das dificuldades enfrentadas, sob a supervisão do Poder Judiciário.

A Lei nº 11.101/2005 (LREF) apresenta um rol exemplificativo de medidas que podem compor o plano de recuperação, conforme previsto no art. 50. Após a reforma promovida pela Lei nº 14.112/2020, foi introduzida a Seção IV-A na LREF, que regula os contratos de financiamento celebrados durante a recuperação judicial para levantamento de capital pela recuperanda, conhecidos como financiamentos DIP (Debtor-in-Possession Financing).

Nos termos do art. 69-A da LREF, autoriza-se “a celebração de contratos de financiamento com o devedor, garantidos pela oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos, seus ou de terceiros, pertencentes ao ativo não circulante, para financiar as suas atividades e as despesas de reestruturação ou de preservação do valor de ativos”.

Ainda, garante-se que “a modificação em grau de recurso da decisão autorizativa da contratação do financiamento não pode alterar sua natureza extraconcursal, nos termos do art. 84 desta Lei, nem as garantias outorgadas pelo devedor em favor do financiador de boa-fé, caso o desembolso dos recursos já tenha sido efetivado”.

O legislador pretendeu, com essa inclusão, garantir segurança jurídica àqueles dispostos a emprestar recursos para o(s) devedor(es) em recuperação judicial. A medida reduziria os custos de transações dessa natureza, fomentando o acesso ao crédito e promovendo a liquidez de que costumeiramente necessitam as recuperandas.

Apesar das especificidades do financiamento DIP, sua contratação permanece submetida aos princípios gerais de direito privado, inclusive quanto à autonomia da vontade (CC, art. 421). A forma jurídica do contrato pode variar –pode tratar-se mútuo ou emissão de debêntures, por exemplo –, mas, em essência, envolverá sempre a liberação de recursos à recuperanda mediante condições previamente acordadas.

Uma vez autorizado pelo juízo da recuperação e tratando-se de contrato relativo a direitos disponíveis, é legítima a pactuação de cláusula compromissória, submetendo à arbitragem eventuais litígios decorrentes daquela relação jurídica.

3. ENTRE O TRIBUNAL ARBITRAL E O JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL

Na recuperação judicial não se pode falar em juízo universal como na falência. Ao juízo competente para o processamento e acompanhamento da recuperação judicial se estende também a competência para julgar determinadas ações e matérias de interesse direto da recuperação judicial, conforme previsão da LREF. Essa competência, no entanto, é delimitada a hipóteses especificamente tratadas na lei.

Ao juízo da recuperação judicial, por exemplo, cabe (i) decidir a respeito de habilitações e impugnações de crédito (art. 8º), (ii) determinar a suspensão de atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial durante o stay period (art. 7º-A), (iii) julgar as contas prestadas pelo administrador judicial, (iv) analisar a legalidade da convocação da assembleia geral de credores, da votação ocorrida no conclave e do plano de recuperação judicial, homologando-o, se o caso (art. 58), (v) autorizar a oneração e/ou alienação de ativos imobilizados da recuperanda (art. 66);(vi) homologar a venda de unidades produtivas isoladas, sem sucessão (art. 141, II, §1º e 142); e (vii) autorizar a celebração de contratos de financiamento DIP, conforme acima mencionado (art. 69-A).

A distribuição de competências internas está relacionada ao exercício da jurisdição estatal e encontra seus fundamentos na Constituição Federal. Desse modo, o exercício do poder judicante do juízo da recuperação judicial está limitado pelas regras de competência dispostas na LREF, que não derroga as regras gerais do CPC e de outras leis esparsas.

Não é por outro motivo que a LREF determina, dentre outras normas, que (i) “terá prosseguimento no juízo no qual estiver se processando a ação que demandar quantia ilíquida” (art. 6º, § 1º); (ii) “as ações que venham a ser propostas contra o devedor deverão ser comunicadas ao juízo da falência ou da recuperação judicial: (...) pelo juiz competente, quando do recebimento da petição inicial” (art. 6º, §  6º, I); e, especialmente, para este trabalho, (iii) “o processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não autoriza o administrador judicial a recusar a eficácia da convenção de arbitragem, não impedindo ou suspendendo a instauração de procedimento arbitral” (art. 6º, § 9º).

O referido dispositivo está em harmonia com a previsão do art. 8º, parágrafo único, da Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/96), segundo o qual “caberá ao árbitro decidir, de ofício ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória”.

O parágrafo 9º do artigo 6º da LRF, que trata sobre a eficácia das cláusulas compromissórias de arbitragem foi adicionado ao texto normativo na reforma implementada pela Lei no 14.112/2020. Mas, antes mesmo de tal inclusão, doutrina[6] e jurisprudência[7], considerando o princípio da competência-competência previsto na Lei de Arbitragem já vinham se posicionando no sentido de valorização da arbitragem.

4. A POSIÇÃO DO STJ NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA No 203.888/SP

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) se deparou com um conflito de competência que visava decidir questão ligeiramente diversa da já submetida a extensivos debates no passado: em instrumento de financiamento DIP celebrado pela recuperanda, com cláusula compromissória de arbitragem, a quem compete decidir sobre a validade da resolução de tal contrato de financiamento? Ao juízo da recuperação judicial ou ao tribunal arbitral?

Na recuperação judicial do Frigorífico Tavares da Silva Ltda. (FTS), em trâmite perante a 1ª Vara Cível de Campina Grande/PE, o juízo da recuperação judicial determinou a resolução do contrato de financiamento DIP, por entender que seria prejudicial à coletividade dos credores.

A financiadora, então, questionou a competência do Juízo da Recuperação Judicial devido ao acordo prévio quanto à submissão de disputas a um tribunal arbitral instituído de acordo com as regras da Câmara de Arbitragem de São Paulo/SP, com eleição do foro da capital de São Paulo como competente para decisões pré-arbitrais, cautelares e executivas.

Em decisão monocrática inicial, o Ministro Raul Araújo declarou competente o juízo da recuperação judicial, considerando que a celebração do contrato dependeria de sua autorização, e que, por consequência, as controvérsias dele decorrentes também estariam sob sua jurisdição.

Entretanto, em julgamento colegiado, prevaleceu o entendimento de que a existência de convenção de arbitragem válida deve ser respeitada, inclusive no contexto da recuperação judicial. O STJ reafirmou o princípio da competência-competência, reconhecendo que cabe ao tribunal arbitral decidir sobre sua própria jurisdição, inclusive quanto à validade da cláusula compromissória inserida em contratos celebrados com empresas em recuperação judicial.

No acórdão respectivo, ficou consignado que “ainda que se trate de contrato firmado com sociedade empresária em recuperação judicial, prevê a resolução de conflitos mediante procedimento arbitral, segundo o princípio da kompetenz-kompetenz, com prioridade sobre o juiz togado, devendo os próprios árbitros decidirem a respeito de sua competência, inclusive, como no caso dos autos, para examinar as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e de outras acerca do contrato contendo cláusula compromissória”.

5. CONCLUSÃO

Desde a promulgação da Lei de Arbitragem em 1996, a arbitragem tem se consolidado como instrumento relevante para a resolução de disputas contratuais no Brasil, contribuindo para a desoneração do Poder Judiciário e assegurando decisões tecnicamente qualificadas, em um procedimento pautado pela autonomia da vontade das partes e, em regra, mais célere.

No contexto dos financiamentos DIP, assegurar que disputas decorrentes de contratos que contenham cláusula compromissória sejam efetivamente dirimidas pela via arbitral representa importante garantia para os investidores. Trata-se de um fator que contribui para a atratividade desse tipo de operação, cujos riscos são naturalmente mais elevados, dada a condição de crise da empresa financiada.

Uma eventual ruptura do entendimento já consolidado do STJ, que reconhece a convivência entre a jurisdição do juízo da recuperação e a jurisdição arbitral, traria insegurança jurídica significativa. Isso impactaria negativamente o mercado de crédito, que reagiria ao aumento do risco com a elevação do custo de financiamento, em prejuízo direto às recuperandas e, indiretamente, à coletividade de credores.

Dessa forma, revela-se acertada a decisão proferida pela Segunda Seção do STJ no julgamento do Conflito de Competência no 203.888/SP, ao reafirmar a validade da convenção arbitral e a competência do tribunal arbitral para apreciar controvérsias decorrentes de contratos de financiamento celebrados no curso da recuperação judicial.


[1] Sócia do Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados. Responsável pela prática de reestruturação e insolvência

[2] Advogada. Especialista em Direito Empresarial (INSPER). Mestranda em Direito Comercial (USP).

[3] Além da recuperação judicial, no Brasil, a crise empresarial também pode ser enfrentada por mecanismos extrajudiciais de solução, como a negociação direta e/ou mediação (inclusive, eventualmente, viabilizada graças à possibilidade de se determinar a temporária antecipação dos efeitos do stay period, em ação cautelar antecedente, tal como previsto no art. 20-B da Lei 11.101/05), bem como pela recuperação extrajudicial, de homologação obrigatória ou facultativa, conforme o caso.

[4] Conforme o art. 966 do Código Civil, “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”. Essa nomenclatura, portanto, abarca tanto o empresário individual, quanto as sociedades empresárias, tal qual as sociedades anônimas e as sociedades de responsabilidade limitada.

[5] A Lei nº 11.101/2005 exclui determinados empresários do seu âmbito de incidência, como é o caso do empresário irregular (isto é, que exerce atividade sem registro na Junta Comercial) ou com menos de 2 anos de registro, as instituições bancárias, concessionárias de energia elétrica, dentre outras. Os entes não empresários (como é o caso das associações civis) estariam também impedidas de pedir recuperação judicial, pela literalidade da Lei nº 11.101/2005. No entanto, a jurisprudência tem flexibilizado tal entendimento para permitir a recuperação judicial de entes não-empresários que atuam como agentes econômicos. Sobre o tema, vide texto já publicado pelas autoras: O Brasil está caminhando para a admissão de um amplo rol de legitimados para a proposição de recuperação judicial e extrajudicial?”. Disponível em: https://www.tmabrasil.org/blog-tma-brasil/artigos/o-brasil-esta-caminha…. Acesso em: 30 jun. 2025.

[6] Efeitos da Recuperação Judicial em Arbitragens em Curso. In: Arbitragem, Mediação, Falência e Recuperação Resolução de Disputas na Empresa em Crise. FONSECA, Geraldo; MONTEIRO, André Luis; VERÇOSA, Fabiane (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 155-176.

[7] Vide, por exemplo: “CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO ARBITRAL E JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DISCUSSÃO ACERCA DA LEGALIDADE DE DISPOSIÇÕES INTEGRANTES DO PLANO DE SOERGUIMENTO. AUMENTO DE CAPITAL. ASSEMBLEIA DE ACIONISTAS. NÃO REALIZAÇÃO. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA PREVISTA NO ESTATUTO SOCIAL. QUESTÕES SOCIETÁRIAS. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ARBITRAL. 1. A existência de provimentos jurisdicionais conflitantes entre si autoriza o conhecimento do conflito positivo de competência. 2. O juiz está autorizado a realizar controle de legalidade de disposições que integram o plano de soerguimento, muito embora não possa adentrar em questões concernentes à viabilidade econômica da recuperanda. Precedentes. 3. As jurisdições estatal e arbitral não se excluem mutuamente, sendo absolutamente possível sua convivência harmônica, exigindo-se, para tanto, que sejam respeitadas suas esferas de competência, que ostentam natureza absoluta. Precedentes. 4. Em procedimento arbitral, são os próprios árbitros que decidem, com prioridade ao juiz togado, a respeito de sua competência para examinar as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha cláusula compromissória - princípio da kompetenz-kompetenz. Precedentes. 5. A instauração da arbitragem, no particular, foi decorrência direta de previsão estatutária que obriga a adoção dessa via para a solução de litígios societários. 6. Ainda que a jurisprudência do STJ venha entendendo, consistentemente, que a competência para decidir acerca do destino do acervo patrimonial de sociedades em recuperação judicial é do juízo do soerguimento, a presente hipótese versa sobre situação diversa. 7. A questão submetida ao juízo arbitral diz respeito à análise da higidez da formação da vontade da devedora quanto a disposições expressas no plano de soerguimento. As deliberações da assembleia de credores - apesar de sua soberania - estão sujeitas aos requisitos de validade dos atos jurídicos em geral. Precedente. 8. O art. 50, caput, da Lei 11.101/05, ao elencar os meios de recuperação judicial passíveis de integrar o plano de soerguimento, dispõe expressamente que tais meios devem observar a legislação pertinente a cada caso. Seu inciso II é ainda mais enfático ao prever que, em operações societárias, devem ser "respeitados os direitos dos sócios, nos termos da legislação vigente". E, no particular, o objetivo da instauração do procedimento arbitral é justamente garantir o direito dos acionistas de deliberar em assembleia geral sobre questões que, supostamente, competem privativamente a eles, mas que passaram a integrar o plano de recuperação judicial sem sua anuência. CONFLITO CONHECIDO. DECLARADA A COMPETÊNCIA DO JUÍZO ARBITRAL” (STJ, 2ª Seção, Conflito de Competência nº 157099/RJ. Suscitante: Oi S.A. em recuperação judicial. Suscitado: Juízo da 7ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro; TJ-RJ; Juízo Arbitral da Câmara de Arbitragem do Mercado de São Paulo. Brasília: Superior Tribunal de Justiça, 10/10/2018. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201800513906&dt_publicacao=30/10/2018. Acesso em: 02 jun. 2025.

Informações do autor
Renata Martins de Oliveira Amado
Sócia do Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados. Responsável pela prática de reestruturação e insolvência

Anna Carolina S. Abrantes
Advogada. Especialista em Direito Empresarial (INSPER). Mestranda em Direito Comercial (USP).

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