Em épocas de abstinência de crédito, o gerenciamento correto do fluxo de caixa torna-se um imperativo para a reestruturação das empresas.
Pela ótica macroeconômica, o Brasil vem se saindo bem da crise financeira global. Os fundamentos da economia brasileira mantiveram-se com indicadores sólidos. Entretanto, um olhar atento voltado à microeconomia sinaliza as realidades diferentes enfrentadas pelas empresas. Até porque, ainda que algumas organizações não tenham tido negócios afetados diretamente pela crise, é fato que o fim da liquidez dos mercados de crédito obrigou-as a rever seus processos de gestão. Algumas empresas desfrutam de situação relativamente confortável, outras ainda se esforçam para superar dificuldades cruciais, que implicam em revisão financeira e operacional.
Não é uma situação generalizada, mas há organizações com pagamentos em atraso e mesmo em um quadro crítico de distress, sem capital de giro, o que compromete a credibilidade junto a bancos e fornecedores e reduz ainda mais suas possibilidades de recuperação.
O enxugamento do crédito provocado pela crise financeira global é um sério complicador para essas companhias, que tentam renegociar grandes passivos. Elas precisam obter recursos a curto prazo para sobreviver às dificuldades imediatas e, ao mesmo tempo, promover a reconfiguração operacional e do modelo de gestão.
Diante de tal gama de dificuldades, as empresas em stress ou distress buscam caminhos para estabilizar a situação e gerenciar a crise. “O primeiro passo é indiscutível: a companhia precisa gerir seu caixa de maneira a otimizar ao máximo os recursos e fazer frente aos compromissos de curto prazo. Contudo, o esforço deve ser acompanhado de um profundo diagnóstico das causas do problema, que podem exigir um novo planejamento estratégico de médio e longo prazos”, analisa Salvatore Milanese, sócio da KPMG no Brasil na área de Restructuring.
Segundo ele, mesmo em situação crítica, há corporações que mantêm empresas, subsidiárias e unidades com resultados repetidamente abaixo do previsto ou arcam com custos tributários e administrativos desnecessários. Às vezes, a melhor alternativa é promover a reestruturação do negócio, com a venda de ativos considerados dispensáveis e de unidades de negócios excedentes.
Cash management
Em um momento de escassez do crédito, a gestão de caixa torna-se um ponto crítico para as empresas em dificuldades financeiras ou com desempenho deficitário. As organizações precisam usar de forma mais eficiente o capital de giro, para reduzir a dependência de dinheiro externo. “Em períodos de crise como o que vivemos recentemente, a gestão de caixa torna-se a prioridade número um das companhias. Um grande desafio é conscientizar todos os funcionários do que se deve fazer. E, na maioria das vezes, é o básico: antecipar receitas e reduzir saídas de recursos. Não é necessário que a gestão de caixa seja prioridade por um longo tempo. No entanto, isso é essencial em tempos de crise”, avalia Eoin Connaughton, sócio da KPMG em Londres e líder global em Restructuring.
André Schwartzman, diretor da KPMG no Brasil na área de Restructuring, concorda: “Essa tem sido a lição da crise, a gestão de caixa deve ser uma ferramenta auxiliar no processo de decisões das empresas. Um processo eficiente de cash management pode otimizar a liquidez, intensificar as medidas de economia e abrir novas oportunidades de geração de caixa”, diz
Para o diretor da KPMG, estabilizar a situação de uma empresa implica em uma fortíssima gestão de caixa – e a crise mostrou que esse não é um ponto forte da nossa cultura empresarial. A aplicação típica do cash management é evitar que a empresa fique totalmente dependente de linhas externas ou de novos capitais. E isso se consegue a partir do uso mais eficiente do capital de giro, com uma melhor gestão de recebíveis, contas a pagar e estoques, por exemplo.
O desafio para os administradores é transformar a gestão de caixa em mais uma ferramenta de subsídio para a tomada de decisões corporativas. “É raro encontrar uma empresa com meta de disponibilidade de caixa, enquanto que todas trabalham com metas de vendas, de faturamento, de lucratividade”, exemplifica o diretor da KPMG. Outro problema é a falta de análise acurada do fluxo de capital de giro. Isso se deve à complexidade do cash management, que envolve muitas variáveis, como inventário e decisão de compras.
O aprendizado para os executivos está em começar a avaliar o impacto de suas decisões no caixa da empresa. Uma venda que, em condições normais seria feita considerando-se apenas volume e margem, deve ser analisada sob a perspectiva do longo prazo e dentro do contexto de recuperação de investimento e do custo do dinheiro. “Às vezes, a margem é muito pequena e a empresa terá de realizar investimentos imediatos em capacidade adicional ou em giro, estoque, contas a receber. Quando tudo isso é cruzado com o custo do dinheiro adicional necessário para realizar a venda, vê-se que o resultado final será um prejuízo do ponto de vista de caixa”, ensina Schwartzman.
Se, em momentos críticos, o cash management representa uma alternativa para salvar, viabilizar ou dar um grande fôlego para a empresa, em épocas mais amenas a gestão de caixa também traz benefícios às corporações, pela redução do uso do capital de giro. Mais que cortar, a gestão de caixa eficiente pode evitar a imobilização de dinheiro além do necessário em estoques ou contas a pagar, por exemplo.
“O foco é chegar em pontos ideais, sem estrangular o negócio. A correta avaliação do estoque garante um giro bom sem empatar dinheiro em excesso, enquanto na tesouraria se pode negociar taxas de juros”, exemplifica André Schwartzman.
Fatores culturais
O descuido com o fluxo de caixa revela um aspecto negativo da cultura empresarial. São poucas as organizações que adotam o processo de cash management. “Normalmente, é uma área que não tem dono do ponto de vista estratégico da empresa. E não é só no Brasil. A cultura empresarial muitas vezes se reduz a receita e lucro. Raramente se pensa em caixa e gestão do fluxo de entrada e saída de dinheiro”, diz Salvatore Milanese. Eoin Connaughton completa: “Para se ter controle, é preciso entendimento das necessidades de financiamento. E isso requer uma previsão de fluxo. Uma gestão adequada também compreende um sistema correto de relatórios, o que ajuda na identificação dos drivers de valor na gestão de caixa”.
Outra marca cultural que dificulta a correção de rumos, mesmo em situações críticas, é a resistência às mudanças. Não é raro as empresas apresentarem um histórico de dificuldades em colocar em prática planos de melhorias operacionais. “Gerenciar um processo de reestruturação exige profissionais experimentados em situações críticas, com um background bastante complexo e abrangente. Normalmente, as resistências internas são mais facilmente superadas com influências externas e objetivas”, explica Salvatore Milanese.
A influência externa também é importante para conquistar a adesão dos credores e fornecedores ao plano de reestruturação da empresa em distress. Sem o apoio desses parceiros, as corporações dificilmente conseguem se recuperar.
André Schwartzman é diretor da KPMG no Brasil na área de Restructuring e membro do Conselho Fisca da TMA Brasil.
Eoin Connaughton é sócio da KPMG em Londres e líder global em Restructuring.