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A RETIRADA DE BENS ESSENCIAIS DO DEVEDOR APÓS O TÉRMINO DO STAY PERIOD

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Ananda Vicentini[1]

O art. 49, §3º da Lei 11.101/2005 (LREF) exclui dos efeitos da recuperação judicial os créditos dos titulares de propriedade fiduciária em garantia. Estes, por sua vez, podem decorrer de duas modalidades: alienação ou cessão fiduciária.

Este artigo abordará - não exaustivamente - o período durante o qual o credor fiduciário está impedido de exercer os direitos associados à posição de proprietário fiduciário sobre o bem dado em garantia.

A alienação fiduciária em garantia consiste na transmissão da propriedade resolúvel de um bem ao credor. Uma vez satisfeita a dívida pelo devedor, o bem retornará à sua propriedade plena. No entanto, havendo o inadimplemento do crédito garantido por alienação fiduciária, o credor fiduciário pode iniciar os atos de excussão da dívida.

A redação da LREF é clara ao estabelecer que, sendo o objeto da garantia essencial para a manutenção das atividades do devedor em recuperação judicial, não poderá ser retirado da  posse deste[2], enquanto perdurar o stay period (180 dias, prorrogáveis, excepcionalmente[3], por igual período).

A ideia é que os recuperandos utilizem o período de suspensão para negociarem com seus credores, inclusive os extraconcursais.

Todavia, os devedores têm se valido dos bens objeto de garantia fiduciária, cuja propriedade resolúvel pertence aos credores fiduciários, para se restabelecerem. Inclusive, muitas vezes, o devedor prevê, no plano de recuperação judicial, que os bens dados em garantia serão mantidos em sua posse até o fim do período de fiscalização judicial[4].

A prevalecerem as disposições nesse sentido, os credores extraconcursais, que sequer deliberam sobre o plano de recuperação judicial, poderiam ser por ele diretamente impactados, o que não faz sentido.

Justamente por tal razão e, principalmente após a entrada em vigor da Lei nº 14.112/2020[5], o STJ vem combatendo essa postura e consolidando[6] o entendimento no sentido de que “uma vez exaurido o período de blindagem, é absolutamente necessário que o credor extraconcursal tenha seu crédito devidamente equalizado no âmbito da execução individual[7], muito embora ainda existam pontuais decisões em sentido diverso[8].

Por meio de tais decisões procura-se impedir a distorção da própria lógica do processo recuperacional (que não se limita à preservação da atividade dos recuperandos, mas também à satisfação dos créditos), e o esvaziamento do privilégio conferido aos credores titulares desse tipo de garantia.

Em recentíssima decisão, a 18ª Câmara Cível do TJPR[9] reconheceu que a “manutenção na posse dos bens não pode ocorrer de forma indiscriminada, por prazo indeterminado, sob pena de ferir exercício de direito legalmente previsto em favor do credor (Decreto-Lei nº 911/69).” Neste Tribunal, no entanto, a questão ainda é dividida[10].

Nas Câmaras Empresariais do TJSP, a questão é praticamente pacífica[11] e já objeto do Enunciado III[12], segundo o qual, escoado o stay period, o credor fiduciário poderá retomar medidas de expropriação, ainda que de bens essenciais ao devedor em recuperação.

No TJMT, o entendimento majoritário é também pela impossibilidade de se utilizar do rótulo da essencialidade como um escudo para tornar intocáveis os bens objeto de alienação fiduciária[13]. Contudo, também na referida corte, há pontuais decisões divergentes[14].

Verifica-se que, apesar do entendimento  adotado pelo STJ, a questão ainda está sendo balizada pelos Tribunais Estaduais e decisões que ignoram o limite temporal previsto em lei, sob o pretexto da preservação da empresa, continuam sendo proferidas.

À título de exemplo, a 2ª Câmara Cível do TJGO proferiu decisão, por ocasião do  julgamento do AI nº 5659802-60.2023.8.09.0000[15], por meio do qual estabeleceu que o decurso do stay period, por si só, não autorizaria a retirada, pelo credor fiduciário, de veículos utilizados pelos recuperandos para o desenvolvimento da sua atividade de produção e distribuição de produtos alimentícios.

Ainda que não esteja em linha com o entendimento predominante deste Tribunal Estadual[16] (que é o mesmo que vem sendo consolidado no STJ), decisões como essa são problemáticas pois, ao mesmo tempo que impedem a satisfação da dívida pela consolidação da propriedade do bem objeto da garantia, não trazem uma alternativa ao credor fiduciário para recuperação de seu crédito[17], levando, apenas, ao enriquecimento ilícito dos recuperandos.

Essa diversidade de interpretações e necessidade de levar todas as discussões até o STJ para padronização de entendimentos sobre as garantias fiduciárias na recuperação judicial pode gerar efeitos prejudiciais, comprometendo a eficiência e a duração razoável do processo.

Além disso, a falta de clareza na aplicação da lei, mesmo quando é absolutamente expressa, dificulta a avaliação de riscos por investidores e instituições financeiras, afetando a segurança jurídica necessária ao mercado. Trata-se, portanto, de mais uma matéria que merece ser pacificada perante os Tribunais Estaduais, de modo a assegurar a necessária segurança jurídica e previsibilidade.

 


[1] Ananda Vicentini é advogada integrante do escritório RGSH Advogados, formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduada em Falências e Recuperações Judiciais pela PUC-PR. Integrou grupos de prática da área de reestruturação, como Insol Future Leaders e NextGen (TMA).

 

[2] Chama-se atenção ao fato de que, o que proíbe a lei, durante o stay period, é a retirada do bem da posse dos recuperandos. Nada se fala (ou veda) sobre o trâmite do procedimento de intimação para purga da mora e consolidação da propriedade (art. 26 da Lei 9.514/1997) pelos credores fiduciários durante esse período.

 

[3] Tal excepcionalidade é verificada quando, apesar dos esforços da recuperanda, não são concluídos os atos processuais dentro do prazo de 180 dias originalmente previsto para tanto (a dizer, por exemplo, deliberação do plano pela assembleia geral de credores).

[4] 2 (dois) anos da concessão da recuperação judicial.

 

[5] Que reformou a LREF.

 

[6] REsp: 2057372, j. 11/04/2023; AgInt no REsp: 2086939, j. 23/10/2023; REsp: 1991103, j. 11/04/2023; AgInt no REsp: 2072285, j. 23/10/2023; REsp: 1991103, j. 11/04/2023; REsp: 2117384, j. 22/03/2024; AREsp: 2730490, j. 13/11/2024; AgInt nos EDcl no REsp: 2078998, j. 18/09/2024; CC n. 191.533/MT, j. 18/04/2024.

 

[7] REsp 2057372, j. 11/04/2023.

 

[8] AgInt no AREsp 2474619, j. 24/06/2024; AgRg no AREsp nº 750.870, j. 26/6/2023.

 

[9] AI nº 00492089220248160000, j. 12/02/2025.

 

[10] Recentemente, também foram proferidas decisões nos TJPR (AI 00678649720248160000, j. 02/12/2024; AI 0090335-44.2023.8.16.0000, j. 12/08/2024) apontando que o fato de o “prazo de 360 dias ter sido superado não implica automaticamente na retomada dos bens essenciais à atividade da devedora”.

 

[11] AI 21866546120238260000, j. 27/06/2024; AI 2199317-13.2021.8.26.0000, j. 31/01/2022; AI 2272968-78.2021.8.26.0000, j.  27/01/2023; AC 1001047-06.2019.8.26.0073, j. 30/05/2022; AI 2090657-22.2021.8.26.0000, j.  19/11/2021; AI 2178333-71.2022.8.26.0000, j. 10/10/2022.

[12] Enunciado III do Grupo Reservado de Direito Empresarial do TJSP: “Escoado o prazo de suspensão de que trata o § 4º, do art. 6º da Lei nº 11.101/05 (stay period), as medidas de expropriação pelo credor titular de propriedade fiduciária de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor, poderão ser retomadas, ainda que os bens a serem excutidos sejam essenciais à atividade empresarial.” Acesso em: https://www.tjsp.jus.br/Download/Rodape/GrupoCamarasEmpresariaisEnunciados.pdf

 

[13] AI 1018446-51.2023.8.11.0000, j. 13/12/2023; AI 10151891820238110000, j. 04/10/2023; AI 10187508420228110000, j. 15/02/2023; AI 10195293920228110000, j. 15/02/2023; AI 10120786020228110000, j. 30/11/2022; AI 0139600-97.2016.8.11.0000, j. 28/11/2018; AI 1018322-73.2020.8.11.0000, j. 28/10/2020.

[14] À título de exemplo: AI 10082770520238110000, j. 14/08/2024.

 

[15] Rel. Desembargador José de Oliveira. j. 19.02.2024. 2ª Câmara Cível.

 

[16] Como se verifica dos precedentes: AI 56741048920248090152, 3ª Câmara Cível, DJe 09/10/2024; AI 56524712220248090152, 3ª Câmara Cível, DJe 21/08/2024; o entendimento majoritário do TJ/GO é no sentido de que, decorrido o período de blindagem, autoriza-se a tomada de bens, ainda que essenciais, pelos credores fiduciários.

 

[17] A Lei 9.514/1997 prevê, em seu art. 37-A, a possibilidade de cobrança de taxa de ocupação do devedor, desde a data da consolidação da propriedade fiduciária do bem no patrimônio do credor fiduciário. Como mencionado na nota de rodapé acima (nº 2), os tramites para consolidação da propriedade – quando se tratando de bens imóveis – não deveriam ser obstados durante o stay period, considerando que a vedação prevista na lei é apenas de retirada da posse. Portanto, uma alternativa interessante para esses casos seria a fixação, pelo próprio juízo recuperacional, da taxa de ocupação, pelo tempo em que o credor fiduciário for impedido de exercer seus direitos plenos de propriedade sobre os bens.

 

Autor(a)
Ananda Vicentini
Informações do autor
Advogada integrante do escritório RGSH Advogados, formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e pós-graduada em Falências e Recuperações Judiciais pela PUC-PR. Integrou grupos de prática da área de reestruturação, como Insol Future Leaders e NextGen (TMA).
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