A recuperação judicial é uma ferramenta que, com o objetivo viabilizar a superação de crise econômico-financeira da empresa, entidade cujo próprio Direito brasileiro lhe reconhece uma relevante função social, procura, ao mesmo tempo, preservar a fonte produtora, manter os empregos e proteger os interesses dos credores.
Desde o início da vigência da Lei nº. 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 (“LFRE”), até os dias de hoje, o Direito brasileiro, impulsionado por crises econômicas mundiais que assombram o mundo desde 2008, tem presenciado relevantes processos de recuperação de empresas.
Sob o ponto de vista eminentemente prático, nota-se, na grande maioria dos casos, o apoio dos credores na aprovação dos planos de recuperação judicial, ainda que estes sejam comumente entabulados sob efetivos descontos dos créditos detidos perante a empresa recuperanda, concessão de parcelamentos, e daí por diante.
Isso se deve, principalmente, ao fato de que, ainda que em posição desconfortável, os credores preferem privilegiar as empresas recuperandas com uma “segunda chance” de reatar a sua atividade empresarial a enfrentar um longo e burocrático processo falimentar, com risco de recuperar valores ainda menores.
O grande momento do processo de recuperação judicial é a Assembleia Geral de Credores (“AGC”). É na AGC que os credores manifestam a sua vontade de apoiar a empresa recuperanda em seu plano de reestruturação e equalização de suas dívidas.
Nos termos da LFRE, após o deferimento do processamento da recuperação judicial, e apresentação do Plano de Recuperação Judicial (“Plano”) pelo devedor, qualquer credor poderá manifestar sua objeção. Havendo objeção de qualquer credor, o juiz convocará a AGC para deliberar sobre o Plano. Apenas após a sua aprovação o Juízo competente poderá deferir a recuperação judicial.
Em regra, existem 2 (duas) possíveis formas de aprovação do Plano:
- a compulsória1, quando o Plano é aprovado em AGC, cumulativamente:
(i.a) pelo voto favorável da maioria simples dos credores da classe trabalhista presentes na AGC, independentemente do valor dos seus créditos; e
(i.b) pelo voto favorável de credores de detentores de garantia real, quirografários, privilegiados ou subordinados, presentes na AGC, que representem, cumulativamente, a maioria simples de credores (em número de cabeças) e sejam titulares de mais da metade do valor dos créditos existentes contra a recuperanda.
- condicionada à decisão judicial2, emanada pelo Juízo que processa a recuperação judicial, quando atendidas, cumulativamente, as seguintes condições:
(ii.a) voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes na AGC, independentemente de classes;
(ii.b) a aprovação de 2 (duas) das classes de credores ou, caso haja somente 2 (duas) classes com credores votantes, a aprovação por pelo menos 1 (uma) delas; e
(iii.c) na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores, computados na mesma forma dos itens (i.a.) e (i.b.) acima.
Apesar de o processo de aprovação do Plano parecer cartesiano, o deferimento da recuperação judicial, mesmo nos casos em que haja a aprovação do Plano em AGC na forma compulsória (descrita no item (i) acima), tem gerado intensa discussão no Judiciário Brasileiro.
A discussão versa sobre a interpretação do artigo 58 da LFRE, que ao utilizar o imperativo “concederá”, autoriza o entendimento de que não cabe ao Juízo a discricionariedade de decidir ou não pela concessão da recuperação judicial ao devedor, uma vez aprovado o Plano de recuperação na AGC e atendidos os demais requisitos da LFRE.
Nesse sentido, parece a AGC ser ente soberano para decidir pela aprovação do Plano, obviamente, desde que respeitadas às demais condições legais previstas na LFRE.
Não obstante esse entendimento seja pregado por grande parte dos advogados, doutrinadores, e até mesmo pelo Judiciário Brasileiro, a soberania da AGC não parece ser cláusula pétrea como defendem.
Para ilustrar essa discussão, apresentamos 2 (dois) interessantes casos da recente história das recuperações judiciais brasileiras: (i) o da Cerâmicas Gyotoku Ltda.3 (“Caso Gyotoku”); e (ii) o da Varig Logística S.A. (“Caso Varig Log”)4.
Caso Gyotoku:
No Caso Gyotoku, a AGC aprovou, de forma compulsória, o Plano proposto pela Gyotoku, que, consequentemente, causou o deferimento da recuperação judicial da empresa pelo Juízo competente.
A despeito da aprovação pela AGC, credores inconformados apresentaram recursos contra o deferimento da recuperação judicial. Subsequentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo declarou nula a AGC que aprovou a recuperação judicial do devedor, por entender que o Plano atentava contra a LFRE.
No entender da Câmara Reservada à Falência e Recuperação do Tribunal de Justiça de São Paulo, o Plano apresentado pelo devedor continha condições ilegais e outras polêmicas, dentre as quais:
- Não previsão no Plano de parcelas certas, claras, inequívocas e com data exata de pagamento do valor de cada crédito habilitado, cumulada ao perdão de dívida a ser concedido após o 18º ano;
- A estipulação de um pagamento per capita, por credor, que acarreta em pagamento antecipado aos credores minoritários, com estabelecimento de conflito de interesses entre os credores, em latente desrespeito ao principio da igualdade dos credores de classe;
- Incidência de correção monetária a partir do 3o ano da recuperação, em flagrante supressão do direito à correção; e
- Não contemplação no Plano de incidência de juros moratórios.
O caso parece ter duas vertentes.
A primeira, que nos parece evidente, é que nos termos da LFRE, a recuperação judicial será deferida quando a AGC aprovar o Plano e o Juízo competente averiguar o cumprimento dos demais requisitos legais para a concessão da recuperação judicial. Assim, se há condições ilegais, a recuperação judicial não deverá prosperar.
A segunda, e talvez objeto da grande discussão em tela, é que a Câmara Reservada à Falência e Recuperação do Tribunal de Justiça de São Paulo estendeu sua análise às condições que - na visão da comunidade jurídica - têm natureza comercial (por exemplo: correção monetária e juros moratórios), desconsiderando a opinião dos credores reunidos na AGC, que a aprovaram.
Por fim, e de forma inédita, a decisão determina que seja apresentado novo Plano para que seja submetido à nova AGC no prazo de 90 dias, sob pena da decretação de falência do devedor.
Caso Varig Log:
No caso Varig Log, o plano de recuperação judicial não foi aprovado, em AGC, pelo quórum necessário para a aprovação compulsória (conforme opção (i) acima) e também não cumpriu todas as condições cumulativas necessárias à aprovação condicionada, conforme descrito na opção (ii) acima (obteve somente a aprovação de detentores de 40,04% dos créditos, em valores, presentes em AGC).
Apesar de não ter cumprido as condições cumulativas para a aprovação condicionada do Plano, o Juízo, por entender que existiam “interesses concorrenciais diversos daqueles relacionados à recuperação de seus créditos e da companhia em recuperação judicial” e consubstanciado no princípio da manutenção da empresa (preservação de empregos e do interesse social), supriu o não cumprimento das condições cumulativas obrigatórias à aprovação condicionada do Plano em AGC, e concedeu a recuperação judicial à companhia.
Nesse caso, também de forma inédita, a decisão judicial se sobrepôs à decisão da AGC e, a despeito da suposta soberania desse órgão, concedeu a recuperação judicial da empresa.
Conclusão:
Considerando que a LFRE é muito recente e a jurisprudência ainda escassa, principalmente nos Tribunais Superiores, não há como indicar, neste momento, por qual das duas vertentes seguirá o Poder Judiciário no que se refere à soberania da AGC.
Não obstante, é notório que a economia mundial tem passado por momentos turbulentos, o que certamente tornará o instituto da recuperação judicial e as discussões sobre ele ainda mais corriqueiros.
Assim, além de acompanhar o modo como a doutrina responderá a assuntos como esse, é igualmente ou mais importante não perder de vista como o Poder Judiciário seguirá enfrentando tais questões, na medida em que é dele, por essência constitucional, o dever de, ao dizer o Direito, garantir segurança jurídica às partes envolvidas em processos dessa natureza5.
1Caput do Artigo 58 da LFRE (atendimento dos requisitos descritos no Artigo 45 da LFRE).
2Parágrafo Primeiro, do Artigo 58 da LFRE.
3Processo nº 606.01.2010.008561-2, em trâmite perante a 4ª Vara Cível da Comarca de Suzano, Estado de São Paulo.
4Processo nº. 100.09.121755-9, em trâmite perante a 1ª Vara de Falência e Recuperações Judiciais da Comarca da Capital do Estado de São Paulo.
5Além de Eros Grau, enquanto Ministro do Supremo Tribunal Federal, Teori Albino Zavascki, no Superior Tribunal de Justiça, teve a oportunidade e nos lembrou a todos sobre o papel e a importância do Poder Judiciário no tocante à preservação da segurança jurídica. Embora não o tenha feito expressamente, não temos dúvida de que Teori Albino Zavascki, e com seu entendimento compartilhamamos, atribuiu ao Poder Judiciário o mister de assegurar segurança jurídica aos seus jurisdicionados ao dizer, na Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, Corte Especial, no julgamento da Arguição de Inconstitucionalidade nos Embargos de Divergência no Recurso Especial de número 644.736/PE, que “(...) mais especificamente, podemos dizer, como se diz dos enunciados constitucionais (= Constituição é aquilo que o STF, seu intérprete e guardião diz), que as leis federais são aquilo que o STJ, seu guardião e intérprete constitucional, diz que são”.