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Sub-rogação de créditos trabalhistas na recuperação judicial: uma análise da (equivocada) aplicação do instituto civil ao procedimento recuperacional pela jurisprudência paulista

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A promulgação da Lei 11.101/05 ("LFRE”) inovou o instituto da Insolvência, até então regulado pelo ineficiente Decreto-Lei n. 7661/45. Ao longo dos anos, diante dos casos concretos, inúmeros debates sobre temas relevantes moldaram a prática jurídica, tendo a jurisprudência se consolidado sobre determinados temas controversos, mas se dividido com relação a outros, a exemplo da natureza do crédito concursal sub-rogado em decorrência do pagamento por terceiro, que será objeto do presente artigo.

Foi neste contexto que a Lei 14.112/20, sancionada em 24 de dezembro de 2020, buscou atualizar a LFRE, de modo a ajustar a sua redação e disciplinar algumas das questões até então sedimentadas pelos tribunais, trazendo maior segurança jurídica  ao sistema.

Nada obstante a atualização da lei, alguns temas permanecem controversos, com destaque para a sub-rogação de créditos trabalhistas e seus efeitos. 

Por incrível que pareça, existe ainda divergência jurisprudencial alarmante com relação a este tema entre as Câmaras Especializadas de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, o que traz diversas inseguranças aos militantes na área. Vejamos. 

Como se sabe, a sub-rogação, prevista entre os artigos 346 e 351 do Código Civil, ocorre quando há a substituição da posição de credor originário na relação creditícia, em decorrência do pagamento do crédito por terceiro, que passa a ter, em relação à parte devedora, os mesmos direitos, ações, privilégios e garantias do credor primitivo . Ocorre quando há o pagamento de determinado crédito e a consequente transferência do direito creditório ao novo credor que quitou a dívida, no limite da importância dispendida.

Embora muito semelhante à sub-rogação, porque também se caracteriza como uma hipótese de alteração (substituição) da parte credora, a cessão de crédito é instituto diverso previsto entre os artigos 286 e 298 do Código Civil no qual também há a alteração do titular do crédito, mas não em decorrência legal, mas sim em razão de uma negociação entre as partes para compra e venda do direito creditório por um preço fixado pelo detentor da posição creditícia, possuindo, assim, nítida feição contratual .

Não bastasse, também não se pode confundir a sub-rogação com a novação de um crédito. 

Isso porque na sub-rogação ocorre uma alteração subjetiva na relação creditícia, ou seja, há uma mudança apenas na parte credora por um terceiro, em decorrência do pagamento que fez da dívida original. Mantém-se, portanto, as mesmas condições e os privilégios previamente estabelecidos na relação jurídica original. Já na novação do crédito, a alteração é objetiva, posto que as partes do negócio jurídico são mantidas, havendo, entretanto, a extinção do crédito original e a constituição de um novo crédito com novo valor ou condições de pagamento (com exceção das hipóteses de novação subjetiva previstas no artigo 360, incisos II e III do Código Civil) .

Dito isso, a controvérsia envolvendo o instituto da sub-rogação, créditos trabalhistas e recuperação judicial surge a partir do momento em que um terceiro, seja uma seguradora contratada para prestação de seguro garantia em uma reclamação trabalhista, ou um tomador de serviço ou sócio ou administrador da empresa devedora seja condenado solidariamente na ação laboral, é compelido a adimplir uma débito trabalhista concursal da empresa em recuperação judicial que figura no polo passivo da relação de trabalho.

O questionamento se dá a partir do seguinte exemplo: realizado o pagamento de crédito concursal (com fato gerado anterior ao ajuizamento da recuperação judicial ) após o ajuizamento da recuperação judicial detido por um ex-empregado da empresa em recuperação judicial, o terceiro pagador passa a ter um crédito concursal (pois apenas substituiria a posição de credor do ex-empregado) ou extraconcursal (pois o pagamento teria sido realizado após a data do ajuizamento da recuperação judicial)?

Para responder a este questionamento, a jurisprudência do tribunal paulista dividiu-se em dois entendimentos antagônicos. O primeiro, no sentido de que o crédito do terceiro pagador seria concursal e, portanto, sujeito aos efeitos do plano de recuperação judicial, uma vez que operada de pleno direito a sub-rogação legal nos moldes do art. 349 do Código Civil. Dessa forma, ao pagar a dívida, o terceiro se sub-roga no crédito detido pelo credor laboral originário com os mesmos direitos, ações, privilégios e garantias, mantida, portanto, a natureza trabalhista  do crédito. 

O segundo entendimento - que é o que motiva este artigo – é no sentido de que o crédito do terceiro pagador seria extraconcursal, pois embora o artigo 349 do Código Civil preveja que a sub-rogação legal transmite ao novo credor os mesmos direitos, ações, privilégios e garantias do credor original, o pagamento do crédito havido após o ajuizamento da recuperação judicial consiste em novo fato gerador do crédito. De acordo com o Tema Repetitivo nº 1.051 do Superior Tribunal de Justiça, “para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador” .

Analisando ambos os entendimentos sob a ótica do instituto da sub-rogação previsto no Código Civil e dos princípios que regem o processo recuperacional, deve-se refutar com veemência o segundo entendimento, por diversas razões.

De início, tal entendimento viola a disposição do já citado art. 349 do Código Civil. Independentemente do momento em que o terceiro é compelido a realizar o pagamento de uma dívida detida pela recuperanda, o crédito do qual ele se torna titular deve obrigatoriamente possuir as mesmas condições e natureza do crédito detido pelo credor original. Em outras palavras, a sub-rogação implica apenas a alteração do sujeito da relação creditícia, e não de seu objeto. Não há, portanto, novação do crédito.

Ao confundir os institutos da sub-rogação e da novação previstas no Código Civil, este entendimento acaba por deturpar o Tema Repetitivo nº 1.051 do Superior Tribunal de Justiça, pois equivocadamente considera o pagamento do crédito original pelo terceiro como o fato gerador do crédito sub-rogado. 

Diferentemente do que se verifica na novação, na sub-rogação não há a extinção do crédito primitivo e a constituição de um novo em decorrência do adimplemento pelo terceiro, mas sim a mera transferência da posição de credor frente à empresa devedora. Consequentemente, o fato gerador do crédito sub-rogado não é alterado em razão do pagamento realizado pelo terceiro, de tal modo que, no exemplo do crédito trabalhista concursal pago por um terceiro, o fato gerador continua sendo o período em que houve a efetiva prestação de serviços pelo ex-funcionário (previamente ao procedimento recuperacional).

Além disso, outro fator que deve ser levado em consideração para afastar este entendimento é o de que até mesmo o crédito oriundo de uma cessão de crédito, com seu caráter naturalmente negocial e especulativo, mantém suas características originais quando cedido nos expressos termos do art. 83, §5º da Lei 11.101/2005. Assim, se um crédito cuja titularidade foi alterada em decorrência de uma negociação entre as partes tem sua natureza original assegurada para fins de recuperação judicial, aquele que sofre mera alteração subjetiva legalmente prevista em decorrência do pagamento realizado por terceiro deve igualmente manter suas características primárias. 

Neste sentido, há inclusive a expectativa de que a Lei 11.101/2005 passe a expressamente dispor que os créditos decorrentes de sub-rogação também mantém sua natureza original, tendo em vista que uma das alterações da lei recuperacional propostas no Projeto de Lei nº 3/2024 é de inclusão de um §3º no art. 41 no sentido de que “Os créditos objeto de cessão, de sub-rogação ou de sucessão de qualquer espécie preservam sua natureza e classificação”.

Enquanto isso não ocorre, a aplicação equivocada do instituto da sub-rogação possui o condão de causar sérios prejuízos ao processo recuperacional e impossibilitar o soerguimento de uma empresa plenamente viável. Isso porque, ao aplicar tal entendimento às situações fáticas, os tribunais estão permitindo que um crédito concursal que seria pago nos termos do plano de recuperação seja “transformado” em extraconcursal a depender do momento em que ele foi pago por terceiro, que poderá ainda se valer das vias ordinárias para buscar a satisfação de um crédito indiscutivelmente sujeito aos efeitos recuperacionais - o que pode parecer inofensivo, mas se ocorrido em recuperações judiciais com altíssimo número de credores laborais tem o condão de literalmente esvaziar a Classe Trabalhista e levar a empresa à falência.


Dessa forma, não há dúvidas de que o entendimento no sentido de que os créditos sub-rogados, para fins recuperacionais, se originam no momento em que são pagos por terceiros deve ser combatido, na medida em que além de contrariar institutos expressamente previstos na LFRE e no Código Civil, ele dá brecha para que o princípio do par conditio creditorum seja “burlado”.

 

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[1] Advogado da equipe de Reestruturação e Insolvência do Felsberg Advogados. Formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui pós-graduação em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

[2] A título de exemplificação, a Lei 14.112/20 passou a tratar de forma mais clara e específica sobre a consolidação processual e substancial, a insolvência transacional e o tratamento conferido a contratos de derivativos.

[3] Sá, Renato Montans D. Manual de Direito Processual Civil. Disponível em: Minha Biblioteca, (8th edição). Editora Saraiva, 2023. p. 281

[4] Venosa, Sílvio de S. Direito Civil: Obrigações e Responsabilidade Civil. v.2. Disponível em: Minha Biblioteca, (23rd edição). Grupo GEN, 2023. p. 143

[5]A novação pode referir-se ao objeto da prestação, como nos exemplos citados. Trata-se da novação objetiva. Vem ela descrita no art. 360, I, do Código Civil: “dá-se a novação quando o devedor contrai com o credor nova dívida, para extinguir e substituir a anterior”. Os incisos II e III desse artigo tratam da novação subjetiva, quando se substituem o devedor (exonerando-se o devedor primitivo) ou o credor (liberando-se o devedor em face do antigo credor) (...) A novação subjetiva pode ocorrer por mudança do credor ou do devedor. A novação subjetiva passiva pode ocorrer de dois modos. O devedor pode ser substituído pela delegação e pela expromissão” (Venosa, Sílvio de S. Direito Civil: Obrigações e Responsabilidade Civil. v.2. Disponível em: Minha Biblioteca, (23rd edição). Grupo GEN, 2023. p. 270)

[6] Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.

[7] TJSP, 1018002-15.2021.8.26.0309; TJSP, 2270449-96.2022.8.26.0000; TJSP, 2255493-12.2021.8.26.0000; TJSP, 2131286-09.2019.8.26.0000; TJSP, 1041181-06.2020.8.26.0602; STJ, 2.010.612/RJ

[8] TJSP, 1046923-92.2022.8.26.0100; TJSP, 1021863-77.2019.8.26.0309; TJSP, 1015297-72.2020.8.26.0602

Autor(a)
Cesar Gabriel Nezzi
Informações do autor
Advogado da equipe de Reestruturação e Insolvência do Felsberg Advogados. Formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui pós-graduação em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
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