No evento realizado pela TMA Brasil em 16 de junho de 2021, os palestrantes compartilharam suas opiniões sobre alguns dos principais mecanismos implementados por empresas em recuperação judicial a fim de viabilizar a readequação de seu passivo e a superação da crise financeira, com especial destaque para as diferenças entre meios de recuperação considerados “paliativos”, como parcelamentos e descontos, e as chamadas medidas “estruturantes”, dentre as quais merecem destaque (i) a conversão de dívida em capital e (ii) a emissão de instrumentos de dívida que conferem direitos de participação nos lucros da empresa.
Após apresentar e cumprimentar os demais participantes do debate, o Professor Eduardo Munhoz deu início aos trabalhos destacando a relevância e atualidade do tema para o direito das empresas em crise, em razão da frequência com que empresas em recuperação judicial obtêm permissão do juiz para apresentarem aditamentos a planos de recuperação judicial previamente aprovados pelos credores e homologados pelo juiz, em virtude da impossibilidade de seu cumprimento, e como alternativa à convolação da recuperação judicial em falência. Nesse cenário, em muitos casos, os planos de reorganização funcionam como uma espécie de solução paliativa, enquanto o ideal seria que as medidas de reestruturação neles previstas ensejassem soluções definitivas, ou ao menos mais duradouras.
O Doutor Giuliano Colombo ressaltou a existência de diversos fatores, de natureza cultural e regulatória, que contribuem para essa realidade. Pelo ponto de vista do devedor, alguns empresários optam por propor medidas de reestruturação provisórias, pois têm “esperança” de que as coisas estarão melhores em um futuro próximo. Por outro lado, sob a ótica do credor, o receio de sanções administrativas e responsabilização pessoal, no caso do reconhecimento imediato de perdas, induz representantes e administradores de bancos – especialmente os públicos – à preferência por soluções que apenas posterguem os problemas para o futuro.
Esse cenário justifica a prevalência de soluções simplistas e temporárias, em detrimento de alterações estruturais destinadas a combater as reais causas da crise financeira. Processos de reorganização financeira envolvendo credores estrangeiros costumam gerar choques de cultura com credores locais, tendo em vista que aqueles estão mais acostumados a aceitar o prejuízo como um fato da vida e a buscar soluções estruturantes, com a possibilidade de capturar parte dos benefícios decorrentes das reestruturações bem sucedidas.
O Exmo. Doutor Paulo Furtado destacou que a admissão de planos aditivos e modificativos foi o caminho construído pela jurisprudência para evitar a decretação de falências em razão do inadimplemento do plano original durante os dois anos posteriores à concessão da recuperação judicial, como determinam os Artigos 61, § 1º e 73, IV da Lei 11.101/2005 (Lei de Recuperação de Empresas – LRE). Partindo da premissa de que a falência, na maioria dos casos, não gera consequências positivas para nenhuma das partes envolvidas, a aprovação de ajustes ao plano original iria ao encontro do princípio da preservação da empresa, além de não violar o Artigo 48, II da LRE, que proíbe as empresas de obterem a concessão de uma nova recuperação judicial em um período inferior a 5 anos.
O magistrado também falou sobre a forma como a jurisprudência lidou com a situação em um primeiro momento, ao limitar a eficácia das obrigações estabelecidas em planos aditivos ou modificativos apenas aos credores que votaram por sua aprovação. Esse posicionamento também foi revisto com o passar do tempo pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) com a finalidade de se ajustar ao modelo da lei, que se baseia em uma negociação coletiva cujo resultado deve vincular a minoria dissidente às propostas aprovadas pela maioria. Por outro lado, a prática de apresentação de novos planos tende a alongar indefinidamente os processos de recuperação judicial, uma consequência negativa para o sistema de insolvência como um todo.
Para a Professora Sheila Cerezetti, a solução para o problema dos planos paliativos passa por mudanças culturais, que são mais difíceis de serem implementadas, mas também tendem a ser mais duradouras. A despeito de a LRE representar um avanço em relação à legislação anterior, no sentido de prever diversas alternativas de reestruturação e ferramentas para o tratamento de crises financeiras, as principais medidas de reorganização propostas nos planos ainda se limitam a parcelamentos e descontos. Essas medidas são de fácil assimilação tanto por credores quanto por juízes, mas não são estruturantes pois não atacam os problemas que levaram a empresa à crise.
Em contrapartida, a doutrina internacional sobre o tema equipara o direito concursal a uma espécie de governança corporativa em caso de crise financeira, cuja solução requer medidas de reorganização societária e por vezes alterações na estrutura empresarial, muito mais profundas do que o mero reescalonamento do passivo no curto prazo. Com essas mudanças, a necessidade de planos modificativos não deixaria de existir, mas certamente ocorreria com menor frequência no Brasil.
A painelista ressaltou, contudo, que a mudança cultural proposta é de difícil aceitação por todas as partes envolvidas. Devedores podem ter seus direitos alterados em virtude de uma reorganização profunda da estrutura societária da empresa, como a diminuição de sua participação acionária ou até mesmo a perda do controle da atividade empresarial. Já os credores terão menos previsibilidade acerca de quando e quanto receberão por seus créditos originais, pois essas informações podem não estar disponíveis no momento de deliberar sobre o plano, visto que dependerão do desempenho da empresa após a reestruturação; e os magistrados, por fim, precisarão analisar propostas de pagamento muito mais complexas, ao realizarem o exame de legalidade que antecede a homologação de planos aprovados por credores.
Dando prosseguimento aos trabalhos, os debatedores discutiram o chamado deságio (haircut) implícito, que consiste em alongar o vencimento da dívida por um longo período, mediante a cobrança de encargos financeiros menores do que os praticados pelo mercado. Isso faz com que o valor presente das dívidas da empresa diminua em relação ao seu valor original, embora o valor nominal integral permaneça inalterado.
De acordo com o Doutor Giuliano Colombo, embora se trate de uma medida paliativa e não estruturante, determinados representantes de instituições financeiras brasileiras têm preferência por esse tipo de proposta porque ela não enseja o reconhecimento imediato de uma perda, embora a longo prazo ela se revele como algo mais arriscado para o credor, eis que ele permanecerá sujeito a um novo inadimplemento durante todo o período em que a dívida foi alongada. Esse cenário gera um círculo vicioso que não é bom para as empresas, tampouco para os credores.
Uma razão adicional apontada para justificar a preferência de credores por deságios implícitos, em detrimento do reconhecimento imediato de perdas, é o receio de que a empresa saia da reestruturação com uma estrutura de capital extremamente saudável e volte a gerar resultado positivo em curto prazo, trazendo a sensação de que sua situação financeira não era tão ruim quanto aparentava e de que o credor deveria ter negociado um deságio menor para o valor original de seu crédito. Todavia, a solução para mitigar esses receios e fundamentar a adoção de soluções estruturantes reside na divisão equilibrada dos benefícios de uma reestruturação exitosa.
Na mesma linha, o Professor Eduardo Munhoz acrescentou que os credores tendem a concordar com o reconhecimento imediato de uma perda definitiva, desde que vislumbrem a possibilidade de também se beneficiarem da riqueza futura gerada a partir daquela reestruturação, e possam obter vantagens econômicas como contrapartida. Esse compartilhamento dos benefícios decorrentes da reestruturação pode se materializar, dentre outras formas, por meio da conversão de dívida em capital, ou mediante a emissão de instrumentos de dívida híbridos, como as debêntures de participação nos lucros.
Entretanto, em alguns casos a implementação dessas medidas encontrou certa resistência por parte da jurisprudência. No caso Eucatex, citado pelo Professor Eduardo Munhoz, o Tribunal de Justiça de São Paulo vedou a aplicação da conversão de dívida em capital para os credores dissidentes, sob o fundamento de que a referida medida violaria o princípio constitucional da liberdade de se associar e de permanecer associado, previsto no artigo 5º, XX da Constituição Federal.
Por outro lado, a Professora Sheila Cerezetti mencionou alguns outros precedentes sobre o mesmo tema, nos quais a implementação de medidas estruturais foi autorizada pelo Poder Judiciário. No caso da WS Indústria e Comércio Ltda., de outubro de 2009 (AI n.º 0333243-47.2009.8.26.0000 / n.º antigo 657.733-4/6-00), a conversão de dívida em capital foi permitida pelo Tribunal, inclusive para a reestruturação dos créditos pertencentes a credores dissidentes. Isso porque a implementação do plano resultaria na criação de uma companhia aberta e, dessa forma, o credor teria liquidez para se desfazer da participação societária se assim desejasse.
A mesma fundamentação foi utilizada pelo Tribunal nos casos Inepar (AI n.º 2133842-23.2015.8.26.0000) e Viver (AI n.º 2026273-55.2018.8.26.0000), no sentido de que não haveria qualquer afronta às regras constitucionais na conversão de dívida em ações, pois nenhum credor seria obrigado a manter essa participação societária contra a sua vontade, e alguns planos inclusive já trazem modelos dos instrumentos de liquidação das ações dadas em pagamento aos credores. São exemplos nos quais as alegações de conflito com o princípio da liberdade de associação foram rejeitadas em razão da existência de mecanismos de saída dos credores dissidentes.
No caso Eternit (AI n.º 2140739-28.2019.8.26.0000), o Tribunal vedou a proposta de conversão de dívida em participação societária, mas o fundamento não foi o potencial conflito com a constituição, e sim a alegada ausência de isonomia nas propostas de pagamento aos credores trabalhistas, tendo em vista que apenas uma pequena quantidade de credores dessa classe era elegível para a conversão de dívida em capital, nos termos do plano aprovado por aquela empresa.
Citando o caso da Gyotoku (AI n.º 0136362-29.2011.8.26.0000), que desde 2012 se tornou um precedente muito utilizado pelos Tribunais de Justiça de São Paulo e de outros Estados, a Professora discorreu sobre a formação da jurisprudência relativa ao controle de legalidade e análise de planos, que vai além das discussões sobre a possibilidade de capitalização de dívidas. Ela ressaltou que a maneira como os planos que preveem medidas estruturantes são analisados pelo Poder Judiciário tende a gerar insegurança jurídica, tanto em razão da dificuldade de compreensão do teor e alcance das medidas estruturantes, quanto em relação aos limites da intervenção do Poder Judiciário ao exercer o controle de legalidade sobre planos aprovados pela maioria dos credores.
A Professora Sheila Cerezetti também revelou suas preocupações quanto a recentes discussões jurisprudenciais relacionadas ao equilíbrio contratual, destacando a necessidade de cautela na aplicação de determinadas figuras de direito civil ao exame de situações próprias do direito das empresas em crise, pois estas podem envolver o compartilhamento das consequências positivas decorrentes de uma reestruturação bem sucedida, conforme indicado acima. A solução da crise empresarial vai muito além da perspectiva de apenas dois polos, eis que seus efeitos se irradiam para a esfera jurídica de diversos outros stakeholders além do devedor e seus credores. Daí a dificuldade em se apropriar dos conceitos bilaterais como o do equilíbrio contratual.
O controle de legalidade do Poder Judiciário deve se restringir à tutela do procedimento, especialmente quanto à análise de soluções profundas, detalhadas e delicadas como as mudanças estruturantes e de longo prazo. O controle de legalidade voltado para o procedimento diz respeito à análise da negociação coletiva com olhos voltados para o futuro, que deve ser feita pelo Poder Judiciário para promover a segurança jurídica por meio da simetria de informações, igualdade de tratamento entre credores, exercício adequado de manifestações de vontade e outras garantias que não existiriam em uma negociação privada.
A recente reforma da LRE trouxe mais segurança jurídica para a conversão de dívida em capital, tanto na recuperação judicial quanto na falência, como destacou o Exmo. Doutor Paulo Furtado. Nas recuperações judiciais, o inciso XVII do Artigo 50 traz autorização expressa para tal possibilidade; da mesma forma, nos processos de falência, a nova redação do Artigo 145 simplificou as regras mais claras acerca da constituição da sociedade entre credores mediante a conversão de dívida em capital, e o § 4º do referido Artigo proibiu qualquer tipo de restrição à venda de participações societárias.
O juiz expressou sua opinião contrária às declarações de iliquidez de planos que preveem a conversão de dívida em capital, especialmente quando há disposições claras sobre os procedimentos a serem adotados por aqueles que desejarem alienar a sua participação. Furtado também manifestou sua discordância quanto às declarações de potestatividade ou abusividade de soluções estruturantes, destacando que, no caso das companhias abertas, o valor de mercado das ações é a referência para a definição da taxa de conversão; e no caso de companhias fechadas, o plano deverá trazer o método para definição do valor patrimonial líquido de cada ação, que norteará o cálculo da participação acionária a que cada credor fará jus, conforme o montante de seu crédito. Nesse cenário, não há espaço para definição unilateral por parte do credor quanto ao valor patrimonial da participação societária dada em pagamento da dívida.
Da mesma forma, a emissão de instrumentos híbridos, como as debêntures que dão direito à participação nas receitas da empresa, permite ao credor receber uma determinada quantia do capital aliada ao direito de capturar um benefício no futuro, a depender do desempenho da empresa após a reestruturação. Essa estrutura evita o risco de que credores reconheçam perdas imediatas mediante a aprovação de um plano pautado em deságios e parcelamentos, e vejam o devedor colher sozinho os frutos da reorganização financeira que deixou a empresa com uma estrutura de capital saudável. Trata-se de uma comunhão de sacrifícios que também possibilita o compartilhamento de eventuais benefícios futuros.
O Professor Eduardo Munhoz destacou que os instrumentos de dívida com direito a participação nos lucros, receitas líquidas ou qualquer outro item de geração de caixa da empresa apresenta-se como uma medida estruturante viável e eficiente, pois confere ao credor direitos econômicos análogos ao dos sócios, mas sem os riscos de responsabilização do credor pelo passivo da empresa mediante a desconsideração da personalidade jurídica.
Encerrando os trabalhos, os debatedores comentaram o posicionamento adotado em determinados julgados no sentido de que as medidas estruturantes ora mencionadas esbarrariam em impedimentos relativos à potestatividade, já que em princípio apenas o devedor teria controle sobre a administração das contas da empresa. De acordo com os palestrantes, existem diversas formas de possibilitar a participação dos credores nessa administração com vistas a torná-la mais transparente, como a criação de comitês de fiscalização e ingerência das atividades da empresa, ou a instituição de watchdogs e covenants, ou ainda mediante a atribuição aos credores do poder de veto sobre matérias específicas, como preconiza o artigo 50, V da LRE.
Autor(a)
Arthur Almeida, Senior Legal Analyst na Debtwire