No dia 29 de setembro de 2021, o TMA Brasil promoveu debate virtual moderado pela Dra. Luciana Celidônio, sócia do escritório Tauil e Chequer Advogados, sob a relatoria do Dr. Cleverson Marcel Colombo, sócio da Administradora Judicial Valor Consultores Associados, com a participação dos debatedores Dr. Gabriel de Orleans e Bragança, sócio do escritório Sacramone & Orleans e Bragança Advogados, e do Dr. Tiago Lopes, sócio do escritório Lollato Lopes Rangel Ribeiro Advogados, para discussão do tema “alienação fiduciária e a posição do credor” na Recuperação Judicial.
Introduzindo o painel, o Dr. Cleverson Colombo citou a importância do debate que envolve a garantia de bem de terceiro e sua intersecção ao processo recuperacional, sendo após sucedido pela Dra. Luciana Celidônio para discussão primária acerca da cessão fiduciária de bens futuros.
Passando a palavra para o Dr. Gabriel de Orleans, foi contextualizado que a cessão fiduciária de garantia, de acordo com o Código Civil, é uma espécie de direito real que transfere a propriedade resolúvel de um bem intangível ou recebíveis do credor, representado pela figura do cessionário, para o devedor, esse representado pelo cedente, onde objetiva-se o recebimento do crédito representativo do título que está sendo transigido para efeitos de garantia.
Quando se fala em garantia futura, portanto, segundo o Debatedor, a polêmica começa desde a normativa presente no inciso IV, do artigo 18, da Lei 9514/1997, segundo a qual, um dos elementos necessários para o contrato de cessão fiduciária em garantia consiste justamente na identificação dos direitos creditórios objetos da operação, para que o contrato não esteja sujeito aos efeitos da recuperação judicial.
Pelo entendimento do Advogado, em que pese a normativa citada, a garantia futura sempre foi possível, especialmente por meio da clara redação dada nesse sentido pelo artigo 31 da Lei da Cédula de Crédito Bancário (Lei n. 10.931/2004), bastando para a perfectibilização desta espécie de contrato, a mera identificação do crédito, e não necessariamente da garantia, conforme entendeu a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial n. 1.797.196/SP, e questão já pacificada pela 1ª Câmara de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
A jurisprudência hodierna, ressalvou o Dr. Gabriel de Orleans, por mais que tenha evoluído e tenha caminhado nesse sentido, ainda possui divergências, especialmente no âmbito nos demais Tribunais Estaduais da Federação, citando como exemplo, a recente decisão monocrática proferida pelo Desembargador da 2ª Câmara de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, Dr. Grava Brazil, no Agravo de Instrumento n. 2193469-45.2021.8.26.0000, onde se entendeu pela necessidade de especificação da garantia.
Contrapondo à posição adotada pelo Debatedor, lembrou o Dr. Tiago Lopes que o princípio da especificidade sempre esteve presente no ordenamento jurídico, sendo que o inciso IV, do artigo 1.424 do Código Civil ratifica a normativa presente no artigo 18 da Lei 9514/1997, o que pode gerar dúvidas principalmente no cenário dos processos de recuperação judicial, uma vez que os créditos sequer estariam performados e as garantias não poderiam ser constituídas após o pedido recuperacional sem autorização judicial.
Consequentemente, salientando que a criação de uma regra máxima sobre o tema não seria razoável, na medida em que os precedentes jurisprudenciais não podem servir de aval cego para a adoção de estratégias, destacou o Dr. Tiago Lopes que seria necessária uma análise profunda sobre cada relação contratual que envolva cessão fiduciária com garantia futura dentro do contexto da crise empresarial, como teria ocorrido no acórdão do Recurso Especial n. 1.797.196/SP, citado pelo Dr. Gabriel de Orleans, tendo em vista que na hipótese, embora tal situação não tenha refletido no contrato, o devedor tinha plena ciência dos créditos cedidos, motivo predominante para que os Ministros tenham entendido pela desnecessidade da especificação das garantias.
A Dra. Luciana Celidonio, concluindo sobre os apontamentos apresentados, assinalou que deve haver uma distinção entre a indicação pormenorizada de cada título e a identificação mais genérica, porém suficiente deles, para fins de análise da sujeição na recuperação judicial, citando como exemplo a Recuperação Judicial da Saraiva, como outra decisão monocrática proferida em 19 de agosto de 2021, pelo Desembargador Dr. Grava Brazil, que reconheceu a sujeição dos créditos garantidos por cessão fiduciária de recebíveis não performados na recuperação judicial.
Passando novamente a palavra para o Dr. Gabriel de Orleans, por ele foi salientado que a disposição presente no Código Civil acerca do princípio da especificidade diz respeito somente a garantias infungíveis, e não às fungíveis, assim considerados pela Lei de Mercado de Capitais. E, em sendo fungível a garantia, ou seja, passível de substituição, não seria razoável que o credor fosse prejudicado na sua excussão com a não especificação, sobretudo, pois, quem possui o controle sobre a garantia futura é o próprio devedor, que inclusive tem a taxa de juros mitigada nesta modalidade de operação de crédito, pontuando, por fim, que a sujeição destes créditos aos efeitos da recuperação judicial não seria salutar para o mercado.
Sob a inegável constatação de divergência jurisprudencial sobre a matéria, que nos passa certa insegurança jurídica, a Dra. Luciana Celidonio passou para o próximo tema abarcado pelo painel: “A renúncia da garantia fiduciária”.
Para iniciar o debate, repisou o Dr. Tiago Lopes que existe similitude entre o tópico da renúncia com a necessidade de especificação das garantias na cessão fiduciária, no sentido de que existem inúmeras situações particulares que impactam nos precedentes jurisprudenciais, atraindo a necessidade de análise caso a caso.
Neste aspecto, pontou que o Superior Tribunal de Justiça, no tocante à alienação fiduciária, já proferiu entendimentos tanto reconhecendo a possibilidade de excussão da garantia pelo credor, quanto pela execução da dívida pela via judicial, porém, nunca foi muito bem aprofundada a consequência disso na recuperação judicial.
O julgamento do Recurso Especial n. 1338784, sob a relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, seria um dos únicos precedentes que adentrou a temática da desnecessidade da renúncia da garantia de cessão fiduciária de crédito fungível, entendendo pelo excepcional cabimento da presunção de abdicação de tal direito, assim como discorre o parágrafo primeiro do artigo 1.436 do Código Civil, que é bastante claro quanto à presunção da renúncia quando o credor, em estrita boa-fé, anui à sua substituição por outra garantia, classificando-se, enfim, como credor quirografário para efeitos da recuperação judicial.
O Dr. Gabriel de Orleans, rebatendo o que foi defendido pelo Dr. Tiago Lopes, salientou que, embora a situação narrada não seja simples de se resolver, deve-se partir da premissa positivada pelo artigo 114 do Código Civil, no sentido de que a renúncia, em regra, precisa ser interpretada estritamente, sendo a normativa do parágrafo primeiro do artigo 1.436, também do Código Civil, uma exceção, devendo ser tratada como tal.
Questionado, em seguida, pela Dra. Luciana Celidonio acerca do comportamento do devedor e sua influência no resultado da garantia, pontou o Debatedor que a eventual execução judicial da dívida só tem lugar quando o devedor não cumpre com sua obrigação de pagar, pelo que não haveria prejuízo a excussão da garantia ou a execução de outros bens contando que assim ele venha a satisfazer o seu crédito, mormente considerando a falta de previsibilidade de pagamento.
A Dra. Luciana Celidonio, em face de tais apontamentos, ponderou que de fato existe uma grande diferença entre garantias de bens fungíveis e infungíveis, questionando, então, ao Dr. Gabriel de Orleans, o comportamento do devedor e sua influência no resultado da garantia, sendo por ele ressaltado que, em se tratando de defraudação ocorrida durante o processo de recuperação judicial de garanta de bem de natureza infungível, há consequências tanto criminais, quanto na insolvência, entendendo o Advogado que ao credor remanesceria a possibilidade de executar seu crédito de forma privilegiada, ainda não se sujeitando aos efeitos do procedimento recuperacional.
Por outro lado, ponderou que se tal defraudação de esvaziamento da garantia ocorre antes do pedido de recuperação judicial, não há na legislação aplicável soluções práticas ao credor, subsistindo a interpretação de que ele seria enquadrado como quirografário.
Exemplificando o caso, a moderadora Dra. Luciana Celidonio citou a seguinte frase “Na garantia constituída antes da recuperação judicial apenas o crédito que é futuro e performado após o pedido, sendo que tal crédito já pertencia ao credor por estar cedido fiduciariamente.”, indicando a incidência da norma do parágrafo terceiro do artigo 1.361 do Código Civil, no sentido de que a resolução da propriedade de um bem infungível retroagiria a data do arquivamento do seu registro para efeitos de a garantia ser considerada como existente ao tempo do pedido de recuperação judicial.
Sobre o tema, o Dr. Tiago Lopes ressalvou que a jurisprudência é clara no tocante aos créditos não performados, isto é, ainda não constituídos quando do pedido de recuperação judicial, não podendo a eles subsistir garantias pretéritas.
O Dr. Cleverson Colombo, como administrador Judicial, salientou que nos casos de esvaziamento de garantias é de suma importância também analisar a fundo a boa-fé do devedor em cada caso concreto, ainda que a garantia esteja sob a custódia do credor, uma vez que tal hipótese pode ocorrer por diversas razões, não necessariamente de forma dolosa.
Passando para o próximo tópico, novamente a Dra. Luciana Celidonio chamou o Dr. Tiago Lopes para discorrer acerca da temática do voto do credor fiduciário aderente, sendo já de início por ele destacado que tal tema ainda não possui fortes precedentes jurisprudenciais, costumando ser algo tratado mais na prática durante a formação de estratégias de condução dos processos de recuperação judicial, principalmente quando da análise de viabilidade de aprovação do plano.
Segundo indicado pelo Debatedor, discute-se bastante a renúncia da garantia fiduciária em razão da renúncia do credor motivada ou pela vantajosa aderência aos termos do plano de recuperação judicial, ainda que como credor quirografário, parcial ou totalmente, ou pelo interesse do credor de acompanhar o procedimento recuperacional, nem que seja para auxiliar no soerguimento da empresa.
Em concordância com a exposição do tema, o Dr. Gabriel de Orleans ratificou que de fato a jurisprudência não se aprofunda muito sobre a controvérsia, subsistindo ao credor e ao devedor, sob uma negociação estritamente bilateral, discutir sobre o formato de pagamento preferível.
Em seguida, citando o artigo “A alienação fiduciária de cotas e a posição jurídica do credor”, de autoria de Marcelo Vieira von Adamek, pontou a Moderadora que o credor fiduciário que possui como garantia cotas e ações da empresa devedora, em tese, é proibido de votar na assembleia geral, por força do que discorre o art. 43 da Lei 11.101/2005, já que ele seria equiparado a um sócio.
Contudo, baseando-se na Lei das Sociedades Anônimas, expôs que o autor do artigo acima citado, defende que o credor sequer pode votar nas assembleias gerais da companhia na posição de sócio, uma vez que a propriedade fiduciária é limitada, motivo pelo qual, ele não estaria impedido de votar nas assembleias gerais de credores no âmbito das recuperações judiciais.
Levantou-se, em continuidade, a questão da essencialidade dos bens objeto de garantia fiduciária, já sendo contextualizado pelo Dr. Gabriel de Orleans o esclarecimento introduzido pela Lei 14.112/2020 nesse sentido, sobretudo ao adicionar o parágrafo 7º-A no artigo 6º da Lei 11.101/2005, ressalvando apenas que, em se tratando de uma empresa em crise, o conceito de bens de capital essencial acaba sendo aplicado de forma generalizada a todos os bens da empresa, ainda que o Superior Tribunal de Justiça já tenha classificado como essenciais os bens considerados como insumos para fomento da atividade empresarial.
Questionando, assim, a abrangência do stay period, para além da impossibilidade de retirada dos bens essenciais do estabelecimento comercial, citou a obrigação do devedor de pagar ao credor fiduciário a taxa de ocupação pelo exercício da posse destes bens tidos como essenciais, tal qual está positivado pelo artigo 37-A da Lei 9.514/1997, de modo que, em sendo impossível o pagamento desta taxa, questionável e onerosa seria a recuperação judicial para os credores em face de uma inevitável falência, além do possível enriquecimento sem causa pela devedora.
A intenção do legislador ao positivar o stay period, conforme pontuado pelo Dr. Tiago Lopes, consiste em justamente oportunizar à devedora uma ampla negociação com seus credores em prol da preservação da empresa de maneira equilibrada, muitas vezes dando ênfase inclusive aqueles que não estão sujeitos à recuperação judicial, já que na prática esta taxa de ocupação de fato poderia ser onerosa.
Encerrando o painel, assinalou a Dra. Luciana Celidonio que o conceito de essencialidade é realmente muito variável, inclusive divergindo bastante na jurisprudência, motivo pelo qual a análise do caso concreto tem que ser cada vez mais aprofundada, entendimento esse ratificado pelos Debatedores.
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