Em 01/02/2023 foram iniciados os encontros on-line promovidos pela TMA no ano de 2023, e tivemos a oportunidade de tratar do tema Americanas – Causas e Efeitos da crise sob a ótica financeira. O debate foi mediado por Márcia Yagui, Sócia BY Capital, e compuseram a mesa como debatedores Flávio Málaga, Sócio Málaga Corporate Finance, Guilherme Justi, Sócio Laplace Finanças, Luiz Fabiano Saragiotto, Sócio Journey Capital e Presidente do Conselho Administrativo TMA Brasil e Uinie Caminha, Professora Titular da Universidade de Fortaleza e Professora associada da Universidade Federal do Ceará, tendo a presença da Dra. Giovana Branco de Castro, advogada do Machado Meyer Advogados, na função de relatoria.
Na abertura do debate, a Sra. Marcia Yagui introduziu o tema trazendo que a Americanas é a maior empresa de capital aberto no ramo varejista, desde 1929 faz parte da realidade brasileira, possui acionistas referenciados e são ícones de mercado, e ainda assim, em janeiro de 2023 o mercado foi surpreendido pela notícia de fato relevante apontando inconsistências contábeis no patamar de 20 milhões de reais, cenário este que se agravou em uma medida cautelar promovida para suspensão de cobranças pelos credores, a apresentação de uma lista de credores extensa, com mais de 8.000 componentes, listagem de dívidas superior a 43 bilhões de reais e possibilidade de majoração desses números conforme o desenrolar do processo de reestruturação que a empresa irá passar. Diante desse cenário, era possível constatar a crise antes que o anúncio de fato relevante fosse feio por Sérgio Rial no dia 09 de janeiro?
Conforme trazido pelo Sr. Luiz Fabiano, o anúncio de dívidas em montantes tão altos pegou a todos de surpresa, contudo, para se identificar as causas é necessário que se tenha um olhar holístico diante das demonstrações financeiras como um todo. Em um exercício simples de comparação de números das demonstrações, o Sr. Luiz Fabiano aponta que o índice EBITDA acumulado pelo Grupo Americanas entre os anos de 2015 e o terceiro trimestre de 2022 somou 22.4 bilhões de reais, um acumulo que expressaria resultados entre 2,5 a 3 bilhões de reais por ano. Contudo, no mesmo período, o fluxo de caixa operacional reportado pela companhia foi de apenas 2,9 bilhões de reais, e ao longo do mesmo período, houve investimentos no montante de 10 bilhões de reais.
Diante da constatação, o Sr. Luiz Fabiano trouxe que a dificuldade da geração de caixa do negócio não deveria ser uma surpresa, pois já estava presente nas demonstrações financeiras reportadas, ressaltando assim a necessidade de se observar as demonstrações como um todo, com atenção ao fluxo de caixa, e não se pautando a análise financeira da companhia apenas sobre índices específicos e mais usados, como é o caso do EBITDA.
Acompanhando a discussão, o Sr. Flávio trouxe que se observarmos o histórico da empresa pelo ângulo da geração de lucro, a B2W, que compõe o Grupo Americanas, tinha resultado negativo – em uma janela de 10 anos houve acúmulo de prejuízo de 3 bilhões de reais –, enquanto as Lojas Americanas em si resultavam em lucratividade mediana. Neste panorama, detalhou que o modelo de negócio já possuía uma fragilidade inerente, contudo, em 2020, com a expansão de market places e vendas on-line, a Americanas viu seu valuation escalonar ao patamar de 60 bilhões de reais.
Após o anúncio das inconsistências financeiras o valuation do Grupo Americanas despencou ao patamar de 600 milhões de reais, contudo, o Sr. Flávio ressalta que a fragilidade do grupo não se deu necessariamente por conta das inconsistências financeiras anunciadas, mas pelo próprio modelo de negócio frágil em que uma companhia apresenta prejuízo e as demais tem lucro insuficiente. Apontou ainda que, apesar da fragilidade, a operação da Americanas foi suportada pelo mercado, como uma “dança das cadeiras” até que a música parou e não havia cadeiras para todos. Ressaltou ainda que a reorganização do Grupo será desafiadora, pois se trata de um negócio com fragilidades e parcos recursos.
Aprofundando a discussão acerca da volatilidade do ramo em que a Americanas está inserida, o Sr. Guilherme trouxe que o varejo é um segmento que possui a instabilidade como parte do negócio, sendo necessária uma alavancagem operacional muito grande para que o negócio possa fluir, sendo assim, estava clara ao mercado a necessidade de caixa da Americanas, que se apoiava com frequência em emissão de debêntures e follow on. Complementando a fala, o Sr. Luiz Fabiano trouxe que o ramo varejista é bastante sensível às alterações macro de mercado, pois existe a inerente necessidade de capital de giro, com baixas margens o que deixa o negócio vulnerável em um ambiente de altas taxas de juros e baixo crescimento econômico.
Neste cenário, o Sr. Guilherme ressaltou que houve uma falha do mercado como um todo, independentemente dos motivos que levaram a Americanas à crise em que se encontra. Trouxe ainda que, além do que está incerto na contabilidade – uma vez que os motivos que causaram a inconsistência de 20 bilhões de reais não estão claras – até que se realize uma auditoria completa da operação da Americanas não é possível dizer se a empresa era lucrativa ou não.
Prosseguindo da discussão, a Professora Uinie trouxe reflexão acerca da desconfiança que a crise das Americanas tem causado no mercado. Os contratos de derivativos de crédito eram utilizados pela Americanas em suas operações, e os fornecedores se valiam da confiança e referência de mercado que o grupo tinha tanto em seu segmento quanto na realidade do país como um todo. Contudo, a perspectiva de segurança foi abalada. De acordo, com a Professora, a crise de operação da Americanas tem causado um “efeito em cadeia” em outros players envolvidos, tendo a Professora comentado que já existem pedidos de falência movidos por fornecedores das Americanas diante do cenário de crise instaurado. Assim, concluiu que o modelo de outorga de crédito que se popularizou para a estrutura de contratos gerais de derivativos poderá ser repensada, causando assim dificuldade de acesso ao crédito e possível aumento do custo.
Complementando a questão, o Sr. Luiz Fabiano abordou que com o aumento dos juros – que veio de níveis muito baixos de 2% a.a. em 2020 para o atual patamar de 13,75% – já era esperado aperto na concessão de crédito ao ramo varejista, contudo, a situação é agravada pela magnitude do caso Americanas. Ademais, trouxe ainda que a insegurança da situação da Americanas não afeta apenas sua reputação de mercado, mas também a afeta frente aos consumidores, que poderão passar a não frequentar as lojas e o market place diante da insegurança demonstrada pela companhia. Ressalta ainda que o afastamento dos consumidores impactará ainda mais no modelo de reestruturação que terá que ser adotado, um vez que no varejo o impacto na operação e na redução de vendas é imediato.
Com relação à afetação aos concorrentes, o Sr. Guilherme trouxe que há dois pontos de observação. O primeiro deles, já pontuado pela Professora Uinie, acerca da insegurança de crédito ao mercado varejista. Ressaltou que após a publicação das inconsistências por Sérgio Rial, o mercado de crédito arrefeceu, culminando na restrição do crédito. Contudo, o segundo ponto de observação trazido é com relação à evasão dos clientes das Americanas aos concorrentes. O Sr. Guilherme trouxe que no âmbito do market place, há uma evasão mais rápida do consumidor, ademais, os fornecedores dos market places passaram a majorar os preços dos produtos publicados no site das Lojas Americanas, temendo eventuais problemas na entrega dos produtos e pagamento. Neste sentido, concluiu que apesar da situação ocasionar possível restrição de crédito, haverá a evasão dos consumidores para outros concorrentes, reduzindo o market share das Americanas, o que já é possível se observar, sendo necessária uma solução rápida e eficaz para que seja possível uma reestruturação da companhia que maximize valor para todos.
Acompanhando a discussão, o Sr. Flávio pontuou que, de acordo com seu entendimento, a possibilidade de crise semelhante afetar outras companhias do mesmo segmento seria baixa, pois as inconsistências contábeis das Americanas teriam partido de lançamentos incorretos e possíveis indícios de fraudes, gerando um cenário peculiar e difícil de se replicar em outras companhias.
Voltando a discussão aso aspectos jurídicos, a Professora Uinie abordou as cláusulas de vencimento antecipado e possibilidade de compensação das dívidas com os valores depositados em contas de bancos credores vinculadas a contratos de derivativos. De acordo com a Professora, em casos de falência a jurisprudência não tem aceitado a possibilidade de vencimento antecipado, outorgando ao administrador judicial a decisão de quais contratos serão cumpridos e em que momento. Contudo, o caso Americanas não se trata de falência, e alteração legislativa de 24 de dezembro de 2020, que incluiu o art. 193-A na Lei de Falências e Recuperação Judicial, prevê a possibilidade de compensação e vencimento antecipado das dívidas provenientes de contratos de derivativos, assim como exclui tais contratos dos efeitos da recuperação judicial. Assim, de acordo com a Professora, o vencimento antecipado e a compensação não apenas são possíveis mas são previstos em lei.
Voltando-se ao caso concreto, a Professora comentou sobre a medida cautelar alcançada pelas Americanas, na qual se determinou, entre outras coisas, a suspensão do vencimento antecipado dos contratos de derivativos e compensação dos mesmos. Apesar de entender que o caso é atípico, a Professora entende que o precedente criado por tal decisão é extremamente delicado e perigoso, por se tratar de decisão cautelar posicionada contra a legislação vigente. Segundo ela, se formos pela letra da lei, o que deve ocorrer é o vencimento antecipado e a compensação, não havendo abusividade ou ilegalidade em cláusulas que preveem tal movimentação. Assim, a professora concluiu que qualquer precedente jurisprudencial que envolva a não observância dos contratos de crédito representa um risco para o mercado como um todo, sendo importante observar quais ao próximos passos que serão dados no caso. A Professora adicionou ainda que a reforma legislativa de 2020 teve cuidado em conceder segurança jurídica às operações de crédito, e ao mesmo tempo, tentou promover mecanismos que possibilitassem a real recuperação das empresas em crise, uma vez que o índice de recuperação das empresas em reestruturação no Brasil é baixo.
Acerca da reação imediata do mercado à crise da Americanas, o Sr. Luiz Fabiano trouxe que há muita incerteza, neste processo as ações da Americanas caíram mais de 90%. No mercado internacional, os bonds da Americanas - que já vinham sendo negociados com descontos, precificados a cerca de 60% a 65% do valor de face - sofreram forte queda atingindo níveis entre 10% e 15%. O Sr. Luiz Fabiano pontua que tal movimento é uma fase de “Price Discovery”, em que o mercado se ajusta para tentar encontrar um preço justo para aquele ativo. O Sr. Luiz Fabiano entende ainda que para acalmar os ânimos e possibilitar uma solução a longo prazo, seria necessário o aporte financeiro de um stakeholder, a fim de restaurar a segurança aos fornecedores, bancos credores e consumidores, inclusive com a possibilidade de DIP Finance, modalidade que encontra respaldo na legislação após a alteração legislativa de 2020.
O Sr. Flávio complementou a fala, concordando com a necessidade de se achar o correto valor de tais ativos, uma vez que o valuation da companhia despencou de 60 bilhões de reais para 600 milhões de reais. Ele trouxe que o processo de reestruturação será complexo, pois é necessário obter informações sobre a companhia, e ao que se vê, as informações atuais aparentam estar incompletas ou equivocadas. Seguindo o raciocínio sobre o aporte por stakeholders, o Sr. Flávio complementa, as informações contábeis completas são essenciais para que tal investidor realize o aporte com consciência sobre para que o dinheiro será utilizado e como ele será consumido no processo de reorganização da empresa.
O Sr. Guilherme comenta ainda sobre a relevância do caso, pois será a primeira recuperação judicial de grande relevância na vigência da nova lei, que prevê possibilidades de DIP Finance, plano geral de credores e outras alterações relevantes, que como trazidas pela Professora Uinie. Ressaltou que as medidas promovidas no judiciário podem levar tempo, mas a o Grupo necessita de uma movimentação rápida, pois a deterioração da situação operacional é muito acelerada nesse segmento.
Sobre a necessidade do aporte para a continuidade da empresa, a Professora Uinie comentou que o momento é de espera. Os acionistas estão em evidência, e segundo ela, o questionamento é de como se dará tal aporte, se de forma espontânea ou mediante determinação judicial. De acordo com a Professora, um aporte espontâneo poderia recuperar a confiabilidade da marca e da empresa e gerar efeitos positivos no processo de reorganização? Ou caso contrário, se ocorresse por determinação judicial, o aporte poderia ter o efeito contrário, aumentando mais a insegurança do mercado e dos consumidores na companhia?
Concluindo a exposição, os debatedores expuseram que existe alta complexidade no imbróglio do Grupo Americanas, sendo este um caso de muita relevância que demanda atenção dos players de mercado e do judiciário, pois as decisões tomadas nesta situação poderão servir como precedente a outros casos que venham a surgir diante da vigência da nova lei. É necessário acompanhar o desenrolar da situação, pois a cada dia novas situações vem surgindo, e como dito ao longo do debate, o mercado de varejo possui alta sensibilidade e demanda atuação efetiva e rápida para que a sobrevivência da empresa – que é o real objetivo da recuperação judicial – seja efetivamente alcançada.
Autor(a)
Giovana Branco de Castro, Advogada Machado Meyer Advogados