PARTICIPANTES: LUIZ GUSTAVO BACELAR (Moderador e sócio Bacelar | Advogados); DANIELLA PIHA (Debatedora e sócia Deloitte); FILIPE GUIMARÃES (Debatedor e sócio Galdino & Coelho – Pimenta, Takemi, Ayoub Advogados); MARCELO SACRAMONE (Debatedor e sócio SOB Advogados); e FELIPE SCAVAZZINI (Relator e sócio Compasso Administração Judicial).
PALAVRAS-CHAVE: CND – Recuperação Judicial – Lei nº 11.101/2005 – Lei nº 14.112/2020.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Contextualização da edição do Enunciado XIX do TJSP – 3. Prós e contras da análise casuística da exigência de CND e o papel do administrador judicial nesse desafio – 4. Considerações finais.
O painel “SOLUÇÃO EM FOCO – A CND NA RECUPERAÇÃO JUDICIAL E O ENUNCIADO XIX DO TJSP”, aberto pelo moderador Luiz Gustavo Bacelar, trata do tema objeto do Enunciado XIX do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), segundo o qual, “após a vigência da Lei n. 14.112/2020, constitui requisito para a homologação do plano de recuperação judicial, ou de eventual aditivo, a prévia apresentação das certidões negativas de débitos tributários, facultada a concessão de prazo para cumprimento da exigência”.
Com efeito, o equacionamento da dívida tributária sempre foi tratado, pela legislação recuperacional, como requisito para homologação do plano de recuperação judicial. Nada obstante, ante a falta de instrumentos eficazes para o parcelamento da dívida tributária, a exigência foi mitigada ao longo do tempo pela jurisprudência.
A discussão ganhou novos contornos, todavia, com a vigência da Lei nº 14.112/2020, que trouxe ferramentas para a negociação do passivo fiscal, o que culminou na orientação do TJSP para que magistrados exijam a remediação da dívida tributária pela empresa recuperanda como condição para a homologação do plano de recuperação judicial.
Contudo, apesar da orientação interpretativa do referido tribunal, a temática ainda suscita controvérsias, que, na maioria dos casos, vêm sendo solucionadas de acordo com as particularidades de cada caso concreto.
2. CONTEXTUALIZAÇÃO DA EDIÇÃO DO ENUNCIADO XIX DO TJSP
Para compreender como o TJSP caminhou na fixação do Enunciado XIX, convém consignar que a exigência de apresentação de CND como requisito para homologação do plano de recuperação judicial, historicamente, sempre foi negligenciada pela jurisprudência como um todo, muito em razão, é verdade, da própria legislação brasileira, que dava azo para distorções interpretativas.
Conforme pontuado pelo debatedor Marcelo Sacramone, isso se iniciou, em um primeiro momento, com o advento da própria Lei nº 11.101/2005, na qual o legislador assentou a incumbência de o devedor apresentar certidões negativas de débitos tributários após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembleia-geral de credores ou decorrido o prazo para sua objeção pelos credores (art. 57).
Já naquela época o referido dispositivo suscitava questionamentos, posto tratar-se de privilégio ao crédito tributário que somente poderia ser contornado caso o devedor se socorresse aos parcelamentos tributários, estes, nos termos daquela mesma lei, objeto de legislações específicas.
Sucede que, entre o período de 2005 a 2014, não havia lei específica regulamentando parcelamentos de débitos tributários para empresas em recuperação judicial. Outra solução, então, não restou ao Superior Tribunal de Justiça senão a de consagrar posição no sentido de que a referida exigência não poderia ser imputada ao devedor.
A situação começou a se modificar, todavia, com o advento da Lei nº 13.043/2013, que tratou do parcelamento dos débitos tributários na esfera federal para empresas em recuperação judicial. Disso, contudo, não decorreu uma mudança radical na jurisprudência, vez que, se adequando ao novo contexto, os tribunais continuavam a refutar a exigência, relativizando a obrigatoriedade imposta pelo legislador. E isso se dava porque as modificações introduzidas pela Lei nº 13.043/201, não raras vezes, ensejavam uma série de injustiças à empresa recuperanda, tais como a existência de parcelamentos sem qualquer desconto do principal das dívidas e, ainda, condicionamento da adesão à renúncia ao direito de discutir o débito.
De todo modo, nessa ocasião, não havia como se negar que a situação caminhava para uma mudança no panorama da matéria. Pelo menos essa era a intenção do legislador.
Definitivamente, a situação se modificou com o advento da Lei nº 14.112/2020, que, se por um lado fortaleceu o papel do débito tributário na recuperação judicial, outorgando, por exemplo, maior rigor à exigência de apresentação de CND, por outro, criou incentivos para o equacionamento do débito tributário via parcelamentos e transações.
Nem por isso, porém, a matéria ficou pacificada no âmbito da doutrina e jurisprudência, sobretudo porque o novo posicionamento exigido dos tribunais ia de encontro com o entendimento estabelecido por anos pelo Superior Tribunal de Justiça, o que, decerto, favorece, até hoje, a análise casuística da problemática pelos tribunais brasileiros.
3. PRÓS E CONTRAS DA ANÁLISE CASUÍSTICA DA EXIGÊNCIA
Dando início aos debates, Filipe Guimarães expôs opinião no sentido de que o Enunciado XIX do TJSP vai na contramão do que há anos o Superior Tribunal de Justiça estabelece. E tal entendimento, no seu entender, encontra guarida no próprio artigo 57 da Lei nº 11.101/2005, dado que o dispositivo, na sua literalidade, não condiciona a concessão da recuperação judicial, ou homologação do plano, à apresentação de CND do devedor.
Tanto é assim que hoje, mesmo com a vigência da Lei nº 14.112/2020, o Superior Tribunal de Justiça, em suas duas Turmas, mantém a orientação no sentido de que não deve-se negar às empresas em crise o direito de concessão e homologação da recuperação judicial somente em decorrência da não apresentação de CND. Nesse sentido, há fundamentação predominantemente principiológica de tal posicionamento, destacando o referido tribunal que o princípio da preservação da empresa deve-se sobrepor ao interesse público, inerente ao crédito tributário.
Nessa perspectiva, Filipe Guimarães defende que a análise da exigência de CND deve ser feita caso a caso, consoante as suas particularidades, dentre elas o volume da dívida tributária, condições de seu equacionamento e a boa-fé demonstrada pelo devedor na resolução da questão. Até porque a adesão do parcelamento tributário antes da concessão da recuperação judicial, ou mesmo homologação do plano, não é, por si só, certificação de viabilidade de soerguimento da empresa, podendo muito bem ocorrer, como revela a experiência, de o devedor deixar de pagar o parcelamento logo após deferidas as medidas.
Independentemente disso, o debatedor defende que a solução é problemática, já que a prática revela situações e detalhes que merecem tratamentos particulares, exigindo-se, desse modo, empenho do juízo, das partes, do administrador judicial e, até mesmo, das fazendas públicas a fim de se chegar um acordo justo e viável para as empresas devedoras.
Seguindo essa linha de raciocínio também entenderam Luiz Gustavo Bacelar e Daniella Piha, com destaque na importância do administrador judicial na tarefa de trazer aos autos elementos para convicção do juiz sobre a questão.
Infelizmente, todavia, essa não é prática tão usual nos processos de recuperação judicial, segundo Daniela Piha, dado que, por vezes, vê-se laudos de viabilidade, e até mesmo planos de recuperação, que sequer contemplam os fluxos de pagamento para o equacionamento do passivo tributário.
Tal entendimento foi seguido pelo relator Felipe Scavazzini, que, muito embora tenha destacado a complexidade do assunto, entendeu que o enunciado fixado pelo TJSP simboliza, efetivamente, um “freio de arrumação” na problemática, dado que possui o objetivo de regularizar a situação e reconhecer a essencialidade de o crédito tributário coexistir com os créditos concursais.
Nesse sentido, assim como os Luiz Gustavo Bacelar, Daniella Piha e Filipe Guimarães, o relator concordou que um entendimento justo da situação passa por uma análise casuística das particularidades de cada caso, já que, somente assim, é possível sopesar os interesses da empresa, da coletividade e, também, mas não de modo menos relevante, do próprio mercado, já que a não apresentação de CND para homologação do plano de recuperação judicial pode, em determinadas hipóteses, afetar a concorrência entre os participantes do mercado.
No entender de Felipe Scavazzini e Daniella Piha, o administrador judicial pode e deve contribuir na solução da problemática, posto que ele auxilia o juízo na compreensão do endividamento da empresa e os meios pelos quais se tornam viável não só o soerguimento da empresa como um todo, mas também o próprio pagamento da dívida tributária, em benefício de toda a coletividade.
Nesse ponto, vale destacar o entendimento diametralmente oposto manifestado por Marcelo Sacramone, o qual critica a análise casuística nessas hipóteses, vez que, segundo ele, trata-se de interferência indevida do Poder Judiciário em assunto já regulamentado pelo legislador, trazendo-se insegurança às recuperações judiciais, à medida que os devedores, e até mesmo os credores daqueles, antes de se submeterem ao instituto da recuperação judicial, não conseguem prever como que os juízes analisarão a matéria, o que, no seu entendimento, prejudica o mercado de crédito.
A causa desse problema, segundo o debatedor, se encontra na ausência de incentivos da legislação, que trata de forma diferente o crédito tributário na recuperação judicial e na falência, o que, decerto, favorece conflitos entre os credores concursais e os credores tributários e, consequentemente, a ausência de cooperação entre ambos.
Por derradeiro, sob um viés prático, pondera Marcelo Sacramone, que o crédito tributário não pode ser ignorado, sobretudo porque a legislação que instituiu os parcelamentos tributários são, no seu entender, favoráveis às empresas em recuperação judicial, não podendo-se arguir que as condições são abusivas.
Complementando o debate, Filipe Guimarães concorda que a relativização do Enunciado XIX do TJSP favorece para a insegurança jurídica no país. Porém, no seu entender, isso decorre porque a lei não é clara o suficiente, de sorte que o assentamento de um entendimento intransponível, como fixado pelo referido tribunal, pode gerar injustiças em determinados casos concretos.
O mesmo entendimento é compartilhado por Felipe Scavazzini e Daniella Piha, os quais destacaram a necessidade de que essa discussão faça parte do processo de recuperação judicial, posto que o equacionamento da dívida tributária interessa a todos os credores, dado que influencia na viabilidade da empresa em crise.
De todo modo, ainda que possam existir entendimentos advogando pela essencialidade ou não da apresentação da CND, os tribunais não estão uniformizados quanto à matéria e, até mesmo o próprio TJSP admite situações em que a apresentação de CND pelo devedor, já na vigência da Lei nº 14.112/2020, é relativizada.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concordando ou não com o condicionamento da apresentação da CND para homologação do plano de recuperação judicial, fato é que a insegurança jurídica sobre a matéria enseja relevantes debates, todavia há um consenso sobre um aspecto: a necessidade de que o crédito tributário não seja negligenciado nos processos de recuperação judicial. É nesse contexto que a jurisprudência e os operadores do direito são desafiados na interpretação e adaptação da problemática.