PAINELISTAS: Luciana Celidonio (Moderadora do painel e sócia do BMA Advogados); Bruno Gomes (Debatedor e sócio da Jive Investmentos); Uinie Caminha (Debatedora, professora titular da Universidade de Fortaleza e professora associada da Universidade Federal do Ceará); e Eduardo Lang (Debatedor e diretor executivo na aréa de special situations do Banco BTG Pactual).
SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. Exposições. - 3. Perguntas e debates. - 4. Considerações finais
PALAVRAS-CHAVE: Lei Complementar 208/2024 – Securitização – Recebíveis - Recuperação de Créditos – Cessão onerosa – Créditos Públicos – Benefícios – Crédito Público – Dívida ativa – Parceria público-privada – Cobrança – Capital de risco – Economia – Administração pública
1. INTRODUÇÃO
Na abertura, a Moderadora, Luciana Celidonio, apresentou os debatedores e contextualizou que a Lei Complementar 208/2004 dispõe sobre a cessão onerosa de créditos públicos. Ainda, mencionou que serão objeto do debate temas como a forma com que essa Lei pode beneficiar o mercado e quais são os aspectos duvidosos (ou ainda não respondidos) com relação à matéria.
2. EXPOSIÇÕES
Passada a palavra para a Uinie, a debatedora apresentou o histórico da securitização de recebíveis de entes federados no Brasil. Apontou que a securitização já existe no país há vários anos, sendo que as primeiras ocorreram na década de 90, no entanto, tratando de entes privados e de uma operação atípica, ou seja, não havia legislação específica (no máximo, à época, existiam resoluções do Conselho Monetário Nacional sobre securitização de exportações). Então, não havia legislação nem regulação para securitizações de uma maneira geral. Mas, mesmo assim, as primeiras operações no Brasil ocorreram ainda na década de 90, e basicamente consistiram na utilização de lastro de recebíveis ou de ativos que gerem renda futura, para que se conseguisse antecipar determinados recursos e utilizá-los como lastro. Explicou, ainda, que uma operação de securitização, de uma maneira muito geral, utiliza um determinado lastro, se agrega em um veículo específico (uma sociedade de propósito específico ou um fundo de investimento), e então, transfere esse lastro para um veículo que vai captar recursos junto aos investidores. Continua pontuando que, agora, com a Lei Complementar, foi positivada a securitização de recebíveis de entes federados. Basicamente, o Estado (no sentido geral, o ente federado), tem direitos de crédito a receber no futuro, sejam eles nas dívidas, sejam eles no fluxo, que já se observou, já foi constituído, que já tem um fato gerador e, portanto, o Estado irá receber esse fluxo no futuro, seja crédito tributário, seja algum outro tipo de crédito. Não havia nada que proibisse que esse tipo de operação fosse realizado, tanto assim é que houve algumas experiências já no Brasil. O que acontecia é que sempre houve muita insegurança sobre quais tipos de créditos poderiam ser securitizados. Quem mudaria a natureza desse crédito, já que o crédito tributário tem uma série de privilégios, uma cobrança. Quem cobraria, seriam ainda as procuradorias ou o direito de cobrança também seria transferido? Concluí, então, que pelo fato de a Lei Complementar ser recente, ainda há algumas dúvidas.
Após a exposição inicial pela Uinie, a Luciana passou a palavra para o Eduardo, para que pudesse falar sobre os benefícios e repercussões da Lei. Eduardo começa trazendo um contexto de que o Brasil, atualmente, tem um estoque reconhecido de cerca de 5 (cinco) trilhões de reais de créditos inadimplidos, sendo esse o estoque da dívida ativa, considerando apenas aquilo que já passou da fase administrativa de constituição dos créditos. São 5 (cinco) trilhões de reais, sendo que, hoje, estão em cobrança cerca de 27 (vinte e sete) milhões em execuções fiscais nos Tribunais brasileiros. É uma quantidade extremamente grande de processos que tem motivado o Conselho Nacional de Justiça (“CNJ”), o Supremo Tribunal Federal (“STF”), a Advocacia Geral da União e demais procuradorias a encontrarem uma solução para esse problema. Eduardo explica, ainda, que essa estoque de cobrança e a dificuldade em operacionalizá-la está estritamente vinculada à incapacidade do Estado em realizar investimentos nos procedimentos de cobrança e recuperação de crédito. O Estado tem muita dificuldade em otimizar a identificação de grupos econômicos, de fazer a descoberta de dilapidação patrimonial, ocultação de patrimônio. Há uma cultura de inadimplência no Brasil de muitas décadas e, essa incapacidade de modificar a situação levou, então, o legislador a buscar alternativas mais inteligentes e modernas. Dentro desse contexto, nasce a ideia de criar um projeto de securitização dos créditos públicos e, com isso, alcançar rapidamente dois objetivos. O primeiro é trazer algum alívio para as contas públicas, pois se vive um momento, que já dura décadas, em que o Estado não tem capacidade de realizar investimento, falta dinheiro. O tempo todo se observa os Estados e Municípios entrando em regimes especiais. A União está o tempo todo estrangulada, acabou de anunciar mais um contingenciamento, mais um bloqueio orçamentário, num montante de 15 (quinze) bilhões de reais. E isso é algo praticamente insolúvel no curto prazo e, portanto, o Estado busca constantemente mecanismos de se financiar. Então, diante dele, há 5 (cinco) trilhões de reais de valor de face, que é um ativo contingente, que ele não tem perspectiva de operação e, mediante uma operação financeira, conseguiria transformar esse ativo contingente num fluxo de caixa imediato que pode ser usado, segundo a Lei Complementar, 50% (cinquenta por cento) para despesas associadas a previdência social e 50% (cinquenta por cento) para investimentos. Segundo Eduardo, a ideia é fazer uma venda de patrimônio público, uma receita de capital que permitiria, então, investimentos, uma dinâmica de despesas de capital por parte de Municípios, Estados e a União. Conclui, então, que o primeiro efeito é muito benéfico, pois traz um alívio imediato para as contas públicas. Outro benefício é que, a depender de como o projeto seja estruturado, a Lei permite a criação de uma espécie de parceria público-privada. Na medida em que a iniciativa privada do mercado consegue realizar investimentos no processo de cobrança e recuperação de crédito, ele consegue apoiar a procuradoria sem substituí-la. Permite que o Estado receba investimentos, que a iniciativa privada faça investimentos no processo de cobrança e tenha como resultado uma ampliação da capacidade de arrecadação que, caso bem-organizada, paga a operação e inclusive deixa um legado. Uma economia que cobra as suas dívidas é uma economia que funciona de maneira muito mais eficiente: o governo se beneficia, o investidor tem benefícios diretos, porque ele será remunerado pelo investimento, tem também a estruturação das procuradorias públicas na medida em que ele vai ter pela primeira vez a capacidade de investimento nessa área tão importante que é a cobrança e recuperação de crédito. Conclui dizendo que a Lei Complementar oferece um pacote de benefícios, mas também apresenta uma série de riscos e considerações. Como é uma legislação nova, sua interpretação está em aberto. É essencial encontrar um caminho seguro e estável para que o produto se desenvolva corretamente. Isso inclui construir uma jurisprudência sólida e garantir que os tribunais de contas e o ecossistema de controle de contas operem de maneira eficaz. Dessa forma, podemos assegurar décadas de investimentos na cobrança e recuperação de crédito.
Então, foi passada a palavra para o debatedor Bruno, que trouxe um pouco da visão do mercado a respeito da Lei Complementar. Inicia dizendo que a premissa básica desse mercado é que a cobrança de dívida inadimplida não é a atividade principal do empresário. O empresário tem que se concentrar na sua atividade operacional, nas suas vendas, na sua eficiência operacional, no seu ganho de market share, na gestão de pessoas. Por essa razão, a capacidade de cobrança desse devedor é limitada. Isso acontece em uma série de segmentos. Os mais diversos perfis de atuação no mercado, inclusive nos bancos. É muito comum que os bancos prefiram ceder suas carteiras de crédito inadimplidos para gestoras especializadas, para investidores especializados, que vão aplicar ali a expertise e as ferramentas corretas, e investir o capital que é necessário investir para a recuperação desse crédito. E, portanto, o investidor consegue focar na atividade principal dele, que é emprestar recurso, criar produto, desenvolver o mercado. O mesmo racional se aplica à dívida pública, que cresce muito a todos os anos. Existe a relação com as crises que o Brasil tem passado nos últimos anos, redução de capacidade do contribuinte, de pagamento, mas também há um elemento de inocência na cobrança. O Brasil tem procuradorias muito aparelhadas e capacitadas, no entanto, a atividade principal do setor público da Fazenda não é cobrar. Então a Procuradoria não possui as ferramentas necessárias, os elementos inclusive financeiros necessários, para realizar uma cobrança eficiente, para localizar patrimônio, para ter uma estratégia de cobrança que consiga auxiliar e impulsionar essa recuperação de crédito. Cobrar crédito adquirido custa caro, embora a expertise e as estratégias ajudem. Há uma necessidade de aplicação de capital de risco, para buscar aprimorar a capacidade de recolhimento e ter no futuro aquele recebimento. Esse capital de risco não está disponível na administração pública, pois ela tem outros focos, mas está no setor privado. Os gestores de capital, desenvolveram ao longo dos anos ferramentas que aprimoraram muito a capacidade de recuperar dívidas inadimplidas. Ferramentas que vão desde recursos tecnológicos que ajudam na identificação de bens de devedores (até aqueles objeto de ocultação), no Brasil e no exterior, até aquelas que ajudam no desenvolvimento de estratégia de cobrança, estratégia processual, identificação dos tribunais mais apropriados, dos advogados que têm mais sucesso em determinadas causas. Isso tudo permite uma assertividade maior na cobrança e, portanto, permite que esse investidor aplique esse capital de risco. Então, por conta disso, há muito interesse no mercado nessa possibilidade de antecipação e cessão de dívida pública, porque quando soma-se a expertise e a capacidade financeira dos investidores, de um lado, os privilégios de que goza a Fazenda Pública na cobrança de crédito, principalmente de créditos tributários, cria-se a capacidade de travar a recuperação de milhões. Torna-se possível devolver, de fato, o dinheiro emprestado e remunerar aquele investidor que fez uma aplicação de capital de risco e vai ter que ser, obviamente, remunerado de forma apropriada para aquele risco que ele está tomando. Destacou, ainda, que a tomada de risco vai muito da segurança jurídica do arcabouço que é construído em volta desse modelo, o qual entende que precisa ser aprimorado para haver um fluxo de capital relevante para esse perfil de operação.
3. PERGUNTAS E DEBATES
A Moderadora Luciana, então, introduziu algumas perguntas, sendo a primeira delas: “O que pode ser cedido onerosamente pelos entes federativos?”. A Debatedora Uinie responde que, conceitualmente, qualquer crédito pode ser cedido, inclusive os já inscritos na dívida ativa, objeto de parcelamento, desde que já está constituído, ou seja, desde que já verificado o fato gerador. Conclui, então, que a rigor, a restrição da Lei é com relação aos créditos ainda não estão constituídos, ou seja, aquelas expectativas de créditos. Ainda que no mercado privado isso seja possível, nesse caso tem mais ligação com a questão da responsabilidade fiscal do adiantamento de receitas futuras do que especificamente com a estrutura de securitização. Da maneira como a Lei complementar está redigida, é possível securitizar inclusive créditos já inadimplidos formalmente, ou seja, que já constam da dívida ativa. Bruno complementou a resposta da Uinie, dizendo que entende ser importante também discutir sobre o conceito de “reconhecido’ e “constituído” trazido pela Lei, pois são vagos, e que da forma que foram endereçados, abre espaço para a securitização e cessão de uma série de outros fluxos, por exemplo, fluxos administrativos. Citou como exemplo uma concessão que tenha uma outorga fixa e menciona que a Lei traz abertura suficiente para que essa outorga seja antecipada e securitizada.
A próxima pergunta trazida pela Moderadora foi: “Existe alguma limitação com relação à proporção dos créditos?”. Eduardo responde que, certamente, tribunais de contas se preocuparão com o volume comprometido na operação, a quantidade de créditos e o tamanho da “alavancagem” que o Estado vai tirar. Isso porque, em última análise, se está falando da antecipação na linha do tempo de um recebível ainda que incerto. Eduardo explica que, se um determinado ente público fizer uma operação de tamanho desproporcional à capacidade das finanças do Estado, haverá risco aqui concreto, sendo necessário muito cuidado no desenho dessas operações para evitar qualquer risco jurídico que venha a contaminar não só aquela operação, mas operações subsequentes. Ainda, relembra que, em 2016, o Tribunal de Contas da União, ao analisar alguns casos concretos e específicos de operações de que estavam sendo desenhadas, foi proferida uma liminar que determinou que todas as operações do Brasil seriam suspensas enquanto não se houvesse um desenho mais seguro e mais estável daquela operação. Isso acabou, inclusive, levando o Poder Legislativo a se organizar e a propor, na época, ao Projeto de Lei Complementar que se tornou agora Lei Complementar 208, para tentar trazer mais segurança jurídica para o processo.
Luciana aproveita e questiona ao Eduardo qual a visão dele sobre a expressão “direito autônomo ao recebimento de crédito?”. Eduardo, então, inicia a resposta dizendo que talvez esse seja o ponto mais polêmico do projeto da Lei Complementar e é o que, de início, diferencia a securitização do crédito público das demais operações de securitização de crédito privado que são bastante corriqueiras hoje no mercado brasileiro. Via de regra, nas operações de securitização, todo o direito de crédito acaba trocando de mãos, ele vai para fundo de investimento ou ele é transformado num valor imobiliário. No entanto, isso não ocorre na Lei Complementar 208, uma vez que há uma compreensão bastante sedimentada na jurisprudência e na doutrina de que o crédito público, por natureza, ele é inalienável, cabendo a sua cobrança exclusivamente, na visão majoritária, à Fazenda e à Procuradoria Pública. O crédito não pode ser cedido e, nesse caso, o que seria passível da cessão onerosa seria o direito autônomo ao recebimento do crédito. Isso significa que apenas o fluxo de pagamento associado àquele crédito é objeto da securitização. Então o Estado tem uma previsão de recebimento daqueles créditos que compõem determinada carteira e essa previsão de recebimento é alienada. E esse fluxo de pagamento passa depois a alimentar o processo de securitização. Então, há uma grande diferença em relação ao que se tem no mercado hoje, porque não se assumirá o papel da cobrança, mas no máximo de apoio a esse processo de cobrança. Do ponto de vista do contribuinte que está sendo cobrado pelo Estado, não há mudanças. Isso traz inúmeros desafios para a operacionalização prática dessa securitização, na medida em que o mercado pode enxergar aqui um risco adicional relevante de falta de alinhamento com o Estado. Ou seja, eu invisto, mas é o Estado que se responsabiliza pela cobrança em última análise. E o que acontece se o Estado não performar a contento em relação à cobrança? Em relação às expectativas do mercado, para quem vai esse risco? Uinie complementa a fala do Eduardo dizendo que, inclusive, nas operações anteriores, essa expressão não era exatamente usada. Então, se procurou, há algum tempo, contornar esse problema da limitação de exceção de créditos de titularidade de entes federados. Existiam questões como o que se poderia ceder sem incorrer no entendimento de que esse crédito seria inalienável. Então, essa expressão direito autônomo ao recebimento veio exatamente no sentido de que a natureza, estrutura e responsáveis do crédito não vão mudar, mas apenas o fruto dessa cobrança. Bruno também complementa, dizendo que, do ponto de vista do investidor, quando ele faz uma aplicação de capital de risco, ele tem alguns vieses de análise, sendo dois importantes: o risco de tempo (quanto tempo vai levar para receber esse recurso?) e o risco financeiro (o crédito vale mesmo aquele valor, ou há algum elemento externo para reduzir o valor?). Explica que, considerando a premissa de que o Estado continuará responsável pela cobrança, existem elementos que são muito caros ao investidor. O primeiro deles é a incapacidade de ele realmente transigir sobre aquele crédito, pois não será possível ao investidor negociar o acordo, deságios, dações em pagamento, formas de pagamento etc. Isso tem um efeito direto no perfil de retorno garantido que aquele investidor vai querer. E da mesma forma, a questão do estado contribuinte com relação a parcelamentos, transações e anistias. Eduardo comenta, ainda, que se a se a securitização se tornar mais cara do que crédito para o Estado, a operação não para de pé, do ponto de vista do controle de contas.
Então, a Moderadora abriu espaço para perguntas dos telespectadores, sendo a primeira sobre a necessidade de a cessão de crédito ser realizada via Leilão judicial. Eduardo responde que, por se tratar de uma operação com o Estado, será necessário realizar uma licitação ou leilão. Diversos atores e instituições financeiras interessados irão competir, e o Estado escolherá a proposta mais benéfica. Para assegurar uma competição justa e objetiva, o edital deve ser bem elaborado. O Estado deve realizar um estudo técnico aprofundado antes da licitação para entender o valor da carteira de créditos a ser securitizada, garantindo que esse valor seja razoável e compatível com os padrões de mercado. Ela destacou a dificuldade em determinar o valor das carteiras de crédito inadimplidas, que geralmente sofrem um alto deságio devido à complexidade da cobrança no Brasil e às ferramentas judiciais disponíveis aos devedores para atrasar o pagamento. O estudo técnico deve informar os critérios de julgamento da licitação, permitindo a escolha da melhor proposta para o Estado, assegurando que a operação seja justa e defensável. Bruno, por sua vez, relatou a preocupação com a diferença de visão entre o setor público e o mercado quanto à precificação desses direitos. Relata que, durante as discussões da Lei, algumas emendas propuseram limitar o deságio a 50% (cinquenta por cento), mas não foram aprovadas. No mercado brasileiro, carteiras de crédito adquiridas sem garantia muitas vezes têm deságios de até 95% (noventa e cinco porcento), enquanto créditos com garantia podem ter deságios de 80%. Enfatizou que os investidores analisam o risco e o retorno antes de investir, buscando remuneração adequada para o capital de risco. Portanto, é crucial que os gestores públicos alinhem sua visão com a do mercado em termos de precificação das transações para atrair investidores. Ele sugeriu que os entes públicos utilizem a inteligência e a expertise desenvolvidas pelo mercado para avaliar carteiras de crédito, em vez de adotar valores arbitrários, o que poderia resultar em pouca atratividade. No contexto dos leilões, argumentou que o melhor modelo de aprovação deve considerar não apenas o preço, mas também a competência e a capacidade técnica dos participantes. A recuperação de crédito exige habilidades específicas, e o licitante que oferece a menor taxa pode não ser o mais capacitado. Em transações onde o Estado mantém uma parte da carteira de crédito, é vital ter um participante que maximize a recuperação de créditos de forma eficiente. Portanto, além do critério de menor taxa, a capacidade técnica e o histórico de recuperação de crédito devem ser considerados para garantir benefícios econômicos para o Estado. Eduardo continua mencionando que o ponto sobre o deságio máximo de 50% (cinquenta por cento), proposto em algumas emendas no Congresso, revela uma desconexão significativa com a realidade. Atualmente, a capacidade de o Estado cobrar sua dívida ativa mal ultrapassa 1% (um por cento) do valor de face. Muitos municípios, com pouca capacidade de investimento na recuperação de crédito, conseguem cobrar entre 0,6% (seis décimos por cento) e 0,8% (oito décimos por cento) da dívida ativa. Estados um pouco mais capacitados chegam a cerca de 1%. A Fazenda Nacional, historicamente, recupera cerca de 1,5% do seu estoque de quase 3 (três) trilhões de reais em dívida ativa. Mesmo com melhorias na organização tributária, a arrecadação dificilmente ultrapassa 3% (três por cento) do valor de face. Portanto, a ideia de limitar o deságio a 50% (cinquenta por cento) mostra a dificuldade de conscientizar os legisladores sobre a realidade do mercado. Esse cenário ilustra a complexidade adicional que qualquer operação envolvendo o Estado carrega, algo que o mercado geralmente não está habituado a enfrentar.
Luciana, então, traz mais uma pergunta dos espectadores: se os créditos objeto de cessão poderão ser objeto de transações tributárias, como EPI e Refis? Eduardo começa narrando que, na operação de securitização, o crédito tributário mantém suas características originais, incluindo privilégios e garantias, conforme a Lei. Isso significa que a legislação pública aplicável continua rigorosamente válida. Após a securitização, o contribuinte pode ainda utilizar benefícios legais, como parcelamentos e transações tributárias, sem que isso prejudique a operação. O Estado não pode garantir o fluxo de pagamento ou a adimplência após a securitização, pois a operação é definitiva, similar à venda de patrimônio público. Contudo, a Lei não aborda a responsabilidade do Estado pela validade do crédito no momento da cessão. Se o crédito for anulado ou seu valor reduzido judicialmente, podem surgir questões sobre como o Estado deve compensar o investidor, o que pode levar a longas disputas judiciais. Bruno concorda e complementa que, para maximizar a recuperação de crédito em operações de securitização, é crucial considerar a possibilidade de acordos entre o fisco e o contribuinte, como anistias e parcelamentos, que podem reduzir o valor do crédito e impactar o investidor. Para mitigar esse risco, uma abordagem eficaz é implementar estruturas de subordinação na carteira de crédito. Essas estruturas permitem transferir uma maior parte da carteira como garantia, garantindo um retorno mínimo ao investidor. Modelos comuns incluem fundos de investimento de crédito, onde investidores sêniores têm um rendimento pré-determinado, respaldado por um colchão de ativos. Esse mecanismo ajuda a proteger o retorno esperado, mesmo quando o valor do crédito pode ser afetado por mudanças judiciais ou negociações tributárias. Uinie, então, menciona que uma preocupação com o uso de estruturas de colchão e subordinação em securitizações é que os tribunais de contas podem questionar se essas estruturas estão permitindo um deságio maior do que o efetivamente registrado. Em setores privados, a subordinação é frequentemente usada, com o próprio cedente assumindo uma posição subordinada para garantir os retornos esperados. No entanto, a aplicação dessa prática no setor público pode enfrentar desafios jurídicos e administrativos, especialmente porque a prerrogativa de cobrança do crédito continua com a procuradoria e os mecanismos de redução da dívida, como parcelamentos, não devem ser prejudicados. Portanto, embora a estrutura de subordinação possa ser eficiente no setor privado, sua aplicação no setor público precisa ser cuidadosamente avaliada para evitar desconfortos jurídicos e preocupações dos tribunais de contas.
Bruno, então, a pedido do Eduardo, passa a explicar sobre como funciona a estrutura de cotas sênior e mezanino, frequentemente utilizada em operações de securitização para organizar o recebimento dos recursos. A cota sênior recebe primeiro e tem menor risco, enquanto a cota subordinada, que pode ser mezanino ou subordinada, recebe após a cota sênior e assume um risco maior. O Estado, por exemplo, pode contribuir com créditos ou recursos financeiros para a cota subordinada, assegurando que o investidor sênior receba uma remuneração pré-determinada, como 10% (dez por cento) ao ano. Qualquer valor adicional ou excedente vai para o investidor subordinado. Essa estrutura cria um "colchão" de segurança para o investidor sênior, alinhando o retorno esperado com o risco assumido. Embora o risco do investidor não seja eliminado, ele é moderado, o que torna a operação mais atraente. O Estado e o investidor têm interesses alinhados, facilitando um acordo que seja financeiramente vantajoso para ambos, e garante um deságio adequado para a operação. Bruno complementa que a estrutura de subordinação na securitização cria uma dinâmica de divisão de lucros entre o Estado e o investidor. No início, o investidor recebe um valor antecipado pela carteira de crédito, mas qualquer arrecadação adicional, se o desempenho superar o esperado, retorna ao Estado. Esse modelo transforma a discussão sobre deságio em uma parceria onde ambos os lados têm interesse em maximizar a arrecadação. Além disso, há um alinhamento de interesses entre o Estado e a procuradoria, que continua cobrando os créditos. Desde a reforma do Código de Processo Civil, os procuradores recebem honorários advocatícios, o que incentiva uma arrecadação mais eficiente, beneficiando tanto o Estado quanto a procuradoria. Apesar de não ser o formato ideal do ponto de vista do mercado privado, essa estrutura proporciona um alinhamento de interesses que fortalece a operação.
Uma nova pergunta é enviada por espectadores: No caso de criação de sociedade de propósito específico, parágrafo 7º da Lei Complementar, o que dispensa a licitação? Qual seria o critério de seleção? Uinie explica que, no contexto da criação de uma Sociedade de Propósito Específico (SPE) ou de uma entidade similar pelo próprio ente federativo, a dispensa de licitação se justifica. Nesse modelo, o próprio ente cria a SPE para gerenciar ativos, como imóveis do Estado, sem a necessidade de licitação para a seleção do estruturador. A dispensa se aplica porque é o próprio ente federativo que está criando a estrutura, não o investidor. Bruno, então, expõe que, embora não seja necessário licitação para estruturar a transação e criar a SPE que vai receber os créditos, ainda é preciso avaliar como a SPE emitirá os títulos e como esses títulos serão aceitos no mercado, então, que a questão central seria como verificar se, após a estruturação interna, o mercado realmente aceitará e se haverá sucesso na operação desse modelo. Uinie esclarece que, na criação de um veículo como uma SPE por um ente ou uma empresa pública controlada, não seria necessário realizar uma licitação para essa criação. No entanto, para contratar serviços necessários à operação, seria necessário seguir um processo de contratação, que pode incluir a dispensa de licitação em alguns casos específicos. Portanto, o parágrafo sétimo da legislação trata da isenção de licitação apenas para a criação do veículo, não para a contratação de serviços. Eduardo explica que a lei complementar foi proposta em 2017 para legitimar e dar segurança jurídica às operações de securitização já realizadas no Brasil desde 2015. Na prática, muitas dessas operações envolviam a criação de companhias securitizadoras pelo Estado, como a Companhia Paulista de Securitização (CPSEC), que realizou grandes emissões de debêntures. A lei, portanto, foi elaborada para reconhecer e consolidar os modelos de securitização anteriores, e pode precisar de modernização ou interpretação mais flexível para se adequar às novas necessidades.
Luciana, então, traz uma última pergunta de espectador, que aborda a preocupação de que a lei pode estar focada apenas em arrecadar no curto e médio prazo, em vez de aumentar a eficiência do Estado. Eduardo aponta que a Lei não menciona explicitamente a assessoria de cobrança, mas sua inclusão se baseia na experiência prática de operações anteriores de securitização no Brasil. Inicialmente, essas operações tinham um caráter meramente financeiro, mas evoluíram para incluir assessoria de cobrança, com o objetivo de reduzir o risco e o custo para o Estado, além de melhorar a arrecadação. Embora a lei não exija a assessoria de cobrança, seu uso pode diminuir o custo da operação e aumentar a arrecadação, beneficiando tanto o Estado quanto o mercado. No entanto, essa abordagem enfrenta desafios, como a resistência das procuradorias e a necessidade de garantir o sigilo fiscal. A implementação bem-sucedida dessa dinâmica requer diálogo contínuo com autoridades e stakeholders para encontrar soluções que atendam a todas as partes envolvidas. Bruno destaca que, para tornar a securitização mais atraente para investidores, é crucial incluir assessoria de cobrança e administrativa especializada. Em um cenário de altos juros, investidores podem hesitar em antecipar recursos para o Estado devido à capacidade limitada de cobrança e ao risco associado, especialmente se o retorno esperado for pequeno. A inclusão de uma consultoria especializada e um alinhamento de interesses com a procuradoria pode aumentar a segurança do investidor e maximizar a recuperação dos créditos, beneficiando tanto o investidor quanto o Estado. A parceria eficaz e a resolução de desafios como o sigilo fiscal são essenciais para o sucesso desse modelo.
Chegando ao fim do debate, o Eduardo aborda críticas comuns à securitização, que incluem alegações de que ela poderia ser considerada uma antecipação de receita ou uma operação de crédito disfarçada, o que seria vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Ele argumenta que, apesar da Lei Complementar 208 especificar que a securitização não é antecipação de receita ou operação de crédito, ainda há debates sobre essas questões. Eduardo argumenta que a securitização não é uma antecipação de receita porque trata de uma receita passada frustrada, e não uma receita futura. Além disso, não é uma operação de crédito disfarçada, pois o Estado não assume obrigação de pagamento após a operação, apenas uma obrigação de repassar recursos. Esses argumentos visam esclarecer que a securitização deve ser vista como uma recomposição de receita passada, não como uma nova forma de crédito. Uinie discute a distinção entre operações de crédito e outras transações, mencionando debates históricos sobre a natureza das operações financeiras, como nas factorings. Ela concorda com Eduardo que, em casos de crédito não adimplido, como na dívida ativa, não se trata de uma nova operação de crédito. O desafio é convencer colegas de que mesmo com fundos já constituídos, a operação não deve ser considerada crédito se não houver obrigação de pagamento ou coobrigação. Ela alerta que estruturas como overcollateral e subordinação de cotas podem complicar essa distinção, e que cuidados devem ser tomados na estruturação e na elaboração de leis para evitar que a operação seja erroneamente classificada como crédito. Bruno destaca que a Receita Federal, em 2016, confirmou que cessões de crédito para instituições financeiras sem coobrigação não são operações de crédito, uma visão reforçada por decisões judiciais recentes e Uinie lembra que essa discussão é antiga e envolveu debates sobre o IOF e a natureza das cessões de crédito.
Eduardo observa que a discussão sobre se a securitização é uma antecipação de receita é complexa, especialmente quando se trata de compromissos financeiros futuros e não de receitas passadas. Ele argumenta que a Lei Complementar específica sobre securitização, que tem o mesmo nível hierárquico da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e é mais recente, claramente define que essas operações não são antecipação de receita. Portanto, seria mais apropriado seguir essa regulamentação específica em vez de aplicar as regras gerais da LRF. Apesar disso, Eduardo reconhece que ainda haverá debates sobre o assunto e enfatiza a importância de proceder com cautela, desenvolvendo um modelo robusto e jurídico adequado para garantir que a securitização seja sustentável e eficaz no longo prazo.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após um debate de alto nível sobre o tema, a Moderadora, Luciana Celidonio e Relatora, Ananda Vicentini, encerraram o painel.