Ainda que o tema da consolidação substancial já venha sendo debatido há certo tempo na comunidade jurídica brasileira, uma recente decisão proferida pela 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da cidade de São Paulo, no processo de recuperação judicial do Grupo Urbplan (processo nº 1041383-05.2018.8.26.0100), tornou obrigatórias certas reflexões a respeito dos critérios a serem adotados para a implementação da consolidação substancial em procedimentos de insolvência requeridos por empresas integrantes de um grupo econômico, seja de fato ou de direito1, com a consequente apresentação de um plano unitário, a ser votado de forma também consolidada e conjunta por todos os credores.
Tais reflexões se mostram ainda mais relevantes para credores internacionais detentores de títulos de dívida emitidos por empresas brasileiras.
Há, via de regra, certo estupefato com aquilo que se considera a banalização da utilização do instituto, em especial para aqueles que têm atuação relevante e contato com o mercado e legislação falimentar americanos, nos quais a utilização do denominado substantive consolidation é excepcional, rara, mesmo, e aplicada a casos extremos, maiormente em atenção aos direitos dos credores2.
A consolidação substancial nada mais é do que a “utilização do patrimônio de todas as empresas pertencentes ao grupo econômico para o pagamento de todos os credores do grupo econômico, desconsiderando-se a personalidade jurídica ou a autonomia existencial de cada uma das empresas componentes do grupo econômico.”, definição dada pelo próprio juízo do processo de recuperação judicial do Grupo Urbplan3.
Não há, na legislação brasileira, qualquer definição do conceito de consolidação substancial, tampouco a estipulação de critérios objetivos para sua adoção em casos concretos.
A ausência da previsão legislativa em um país culturalmente legalista tem dado margem à divergência de interpretações judiciais, criando insegurança jurídica para credores envolvidos em processos de recuperação judicial.
Tem-se aceitado a consolidação substancial sem uma análise detalhada, individualizada e raramente baseada em acervo probatório que a justificasse, permitindo-se sua adoção em casos concretos com arcabouços fático-jurídicos absolutamente distintos entre si4.
Como mencionado acima, a lacuna da Lei de Recuperações Judiciais e Falência (Lei nº 11.101/05) deu margem a interpretações diversas sobre a aplicação e os critérios a serem preenchidos pelos devedores para consolidação substancial.
Os critérios (confusão patrimonial, gerenciamento sob regime de caixa único, acionistas e diretoria comum, desvio de ativos por meio de empresas do grupo, garantias cruzadas entre tais empresas, etc.), em regra, estão alicerçados na (des)organização societária e administrativa do devedor, mas pouco atentam para a intenção das partes no momento da formação da relação de crédito e para a possibilidade de os credores anteverem a potencial confusão patrimonial, a ponto de tratarem as empresas integrantes do grupo econômico como uma só.
A decisão proferida no caso do Grupo Urbplan, por exemplo, estabeleceu “os requisitos objetivos exigidos para a excepcional autorização da consolidação substancial (…), quais sejam: a) interconexão das empresas do grupo econômico; b) existência de garantias cruzadas entre as empresas do grupo econômico; c) confusão de patrimônio e de responsabilidade entre as empresas do grupo econômico; d) atuação conjunta das empresas integrantes do grupo econômico no mercado; e) existência de coincidência de diretores; f) existência de coincidência de composição societária; g) relação de controle e/ou dependência entre as empresas integrantes do grupo econômico; h) existência de desvio de ativos através de empresas integrantes do grupo econômico.”.
A falta de requisitos legais objetivos é ainda mais grave ao se considerar que a consolidação substancial é verdadeira desconsideração da personalidade jurídica por iniciativa e em benefício do próprio devedor, na medida em que, ao propor a desconsideração dos limites de responsabilidade e autonomia patrimonial impostos pela legislação civil e societária, autoriza que empresas em recuperação judicial pertencentes ao mesmo grupo econômico se responsabilizem, mutuamente, umas pelas obrigações das outras.
Ainda que, em alguns casos concretos, a consolidação tenha sido eventualmente utilizada em benefício da preservação da empresa e em prol da efetiva recuperação do negócio, fato é que pouco se tem refletido e debatido a respeito dos efeitos da adoção desenfreada da consolidação substancial no mercado de crédito.
Em outras palavras, é preciso que se analise, não só a utilização da consolidação substancial na perspectiva da empresa em recuperação judicial, mas, também, como os critérios que vêm sendo utilizados para aceitação do instituto influenciam na formação dos negócios jurídicos e nas relações obrigacionais creditícias existentes entre credores e devedores, em momento anterior à crise de inadimplência.
Isto, porque, de um modo geral, salvo nos casos de desconsideração da personalidade jurídica5 e/ou se de outra forma previsto nos respectivos contratos que representam o crédito, ao celebrar um contrato com a tomadora dos recursos, os credores têm uma expectativa legítima de que (i) o devedor da obrigação será, tão somente, a empresa com a qual o contrato está sendo celebrado; e ,(ii) ainda que a devedora principal do contrato seja integrante de um grupo econômico, que a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas integrantes do mesmo grupo seja respeitada, sem que outros credores de outras empresas pertencentes ao grupo possam concorrer pari passu com esse credor em termos de preferência na estrutura de endividamento.
Causa certa perplexidade e afeta expectativas lícitas e legítimas dos credores, portanto, a tendência de se autorizar que o próprio devedor (potencialmente aquele que, em infringência das leis civis e societárias, tenha praticado atos portanto ilícitos, que tenham resultado em abuso e desvio da personalidade jurídica e/ou confusão patrimonial) possa, sem qualquer autorização prévia de seus credores individuais6 e em detrimento dos negócios jurídicos perfeitos celebrados com tais credores, opor a sua própria “torpeza” no âmbito de um processo de recuperação judicial, beneficiando-se de uma (auto)desconsideração da personalidade jurídica, sob a solitária justificativa de que o plano unitário apresentado e a consolidação do grupo econômico são necessários e benéficos para o sucesso da recuperação judicial e a preservação da empresa7 (na realidade, em última análise, necessários e benéficos maiormente para a sobrevivência dos próprios sócios, acionistas ou administradores que fraudaram a personalidade jurídica que querem, agora, desconsiderar)
Essa ruptura com a estrutura de autonomia patrimonial e separação das personalidades jurídicas, de certa forma aceita pela jurisprudência, traz alguns aprendizados e estimula, ao mesmo tempo, que se tomem alguns cuidados na celebração de novos negócios jurídicos.
Em primeiro lugar, é necessário que se estabeleçam critérios objetivos para utilização da consolidação substancial em processos de recuperação judicial, que devem ser amplamente debatidos pela comunidade jurídica e que devem levar em consideração, não só a perspectiva dos devedores, mas, também, as expectativas legítimas dos credores no momento da celebração do negócio.
A insegurança jurídica do sistema atual tem consequência sistêmica e afeta operações de mercado financeiro e de capitais, em especial a precificação dos instrumentos de dívida e o custo dos recursos, já que ambos têm relação intrínseca com higidez da operação, das potenciais garantias concedidas pela devedora, com a análise da estrutura de endividamento e a autonomia patrimonial do tomador de recursos.
Tais fatores não podem ser simplesmente desconsiderados em situações impostas pela devedora, em prol de um suposto interesse coletivo de preservação, que nem sempre se sustenta.
Por fim, a incerteza jurídica atual dos processos de recuperação judicial com relação à autonomia patrimonial do devedor é um alerta às políticas de concessão de crédito.
Para fins de precificação da operação e verificação da higidez da sua estrutura, tornou-se necessário apurar a condição financeira, a administração, a aderência a regras de compliance, de integridade, de conformidade e a autonomia patrimonial, não só da empresa tomadora dos recursos, mas, também, das demais empresas integrantes de seu suposto ou assim denominado grupo econômico.
Além disso, é cada vez mais recomendável que se obtenham garantias que não estejam sujeitas à consolidação, basicamente, de terceiros ou, se cruzadas, porquanto das demais empresas integrantes do mesmo grupo econômico, que isso seja estruturado de forma que o credor venha a ter uma posição de negociação mais relevante em um potencial processo de recuperação judicial, maximizando o seu potencial recovery.
06/10/2018