A Lei de Recuperação de Empresas (LRE) completa seu décimo ano de vigência, cercada de questões polêmicas. Mas é evidente o sucesso econômico-financeiro que muitas empresas já obtiveram, valendo-se das prerrogativas inovadoras da LRE. E em um ano onde se prevê uma crise econômica, os avanços e benefícios da norma são essenciais ao desenvolvimento e manutenção de nossas empresas e da própria economia nacional.
Dentre as principais controvérsias da LRE, podemos citar a questão afeta às travas bancárias e seu confronto com o espírito de preservação da empresa como ente jurídico-econômico gerador de riquezas; a inclusão das micro e pequenas empresas como classe IV e seu voto por cabeça, em dissonância com o valor de seu crédito submetido aos efeitos recuperacionais; o parcelamento tributário exíguo limitado à 84 meses, face aos prazos mais extensos trazidos pelos programas de refinanciamentos (Refis); a exigência de certidões negativas de recuperação judicial de empresas em crise, para participação em certames públicos; e a falta de crédito para empresas em recuperação, mesmo com a proteção que a lei concede aos parceiros da devedora.
As travas bancárias prejudicam a empresa em crise, gerando insegurança à comunidade de credores submetida ao processo recuperatório. Torna-se um contrassenso ao espírito da lei permitir que determinados credores possam retirar bens essenciais à atividade produtiva da empresa em recuperação judicial, para terem seu direito satisfeito preferencialmente aos demais. Urge encontrar uma solução mais conciliadora.
É um contrassenso permitir que determinados credores retirem bens essenciais à atividade produtiva da empresa
Na esteira da LRE, a Lei nº 13.043, de 2014, instituiu o parcelamento tributário para empresas em recuperação judicial com o exíguo prazo de 84 meses, em pagamentos escalonados. Além de não ser viável para uma empresa em início de processo de reestruturação (e que consegue relevantes carências com todos os seus credores), começar a pagar logo de início os impostos atrasados, até mesmo antes dos trabalhistas, existem outros tipos de parcelamentos com prazos mais extensos.
Esse parcelamento praticamente torna-se ineficaz por sua rigidez quanto às parcelas a serem pagas e por seu prazo ser menor frente aos demais refinanciamentos, como o Refis. O mais correto seria, como já vem ocorrendo na prática nos planos apresentados, definir-se um percentual do faturamento para ser direcionado a equalizar os passivos fiscais, com taxas de juros menores e utilização de prejuízo fiscal para quitar dívidas tributárias. Definitivamente, essa não foi a intenção da Lei 13.043, que pode provocar a quebra de muitas empresas viáveis e que vêm pagando em dia seus impostos correntes.
Outro contrassenso - a exigência de certidões negativas de recuperação judicial de empresas em crise, para participação em certames públicos - vem sendo dirimido pela jurisprudência. Sendo a atividade da empresa voltada para o setor público, a exigência impediria a devedora de executar seu objeto social e a tonaria inviável, o que se choca com o objetivo maior da LRE, que previu a possibilidade da empresa em crise continuar a participar de certames públicos, apenas exigindo a apresentação de certidões de débitos tributários.
A Lei Complementar nº 147 inseriu nova classe de credores na LRE, enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte, em total desarmonia com as demais classes de credores, que votam em assembleia considerando o valor de seu crédito, e são classificados em relação à sua natureza trabalhista ou pelas garantias que possuem, e nunca pelo seu tamanho. Concedeu-se às micro e pequenas empresas o poder de aprovarem ou rejeitarem o plano de recuperação independentemente do valor do seu crédito, votando por cabeça, em total desconformidade com o que está previsto na LRE, em relação aos credores com garantia real, privilégios geral e especial, e quirografários.
Apesar das polêmicas que envolvem o instituto da recuperação judicial, seus benefícios vêm sendo exitosamente experimentados pelo empresariado brasileiro, que encontrou neste mecanismo multidisciplinar um celeiro de alternativas econômicas, financeiras e de mercado para superar as constantes e cíclicas crises da economia.
Alicerçada em um plano de recuperação judicial bem elaborado, com premissas econômicas, financeiras, comerciais e mercadológicas devidamente planejadas, tornando-se factível de implementação e cumprimento, e ainda considerando os avanços jurisprudenciais quanto ao entendimento do espírito de preservação da empresa e de garantia de sua função social, a recuperação judicial mostra-se instrumento hábil a propiciar um verdadeiro "turnaround".
Bernardo Bicalho e Julio Kahan Mandel são, respectivamente, presidente da Comissão de Falência e Recuperação Judicial da OAB-MG e membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais (IAMG); membro da Comissão de Estudos sobre Instituições Financeiras da OAB-SP e da Comissão de Direito Recuperacional do IASP, autor do livro Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas Anotada
Este é o último artigo da série sobre os dez anos da Lei nº 11.101, de 2005.
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações
A Lei nº 11.101, de 2005, que irá completar dez anos de vigência em junho, passou a regular, a partir de 8 de junho de 2005, a recuperação extrajudicial e judicial de empresas, assim como a falência. De fato, após inúmeras vicissitudes na tramitação legislativa – que durou cerca de onze anos -, a nova legislação trouxe diversas inovações ao direito concursal. Alterou conceitos e termos jurídicos, extinguindo a concordata e a continuação dos negócios pelo falido, como previsto no revogado Decreto-Lei nº 7.661, de 1945. Introduziu a recuperação extrajudicial e judicial de empresas, modificando radicalmente o sistema falimentar então vigente.
Desde então, as modificações decorrentes da aplicação da nova lei estão sendo observadas. Celeridade para concessão da medida, recuperação de ativos, satisfação do crédito trabalhista, eficácia da manutenção da atividade econômica, desburocratização em relação ao micro e pequeno empresário, punição rigorosa de crimes falimentares, enfim, muitos princípios da nova lei demandam observação atenta. Interessante estudo da FGV/Rio, junto com o Ministério da Justiça, publicado em junho de 2010, da série "Pensando o Direito", apresenta pesquisa séria sobre diversos destes temas, baseado em dados de tribunais coletados em diversos Estados da federação.
Com efeito, um dos maiores problemas para a empresa que pretende obter ou está em recuperação judicial foi e continua sendo seu passivo tributário (artigo 57 e 68 da Lei nº 11.101, de 2005). Na verdade, compete ao Judiciário equilibrar os interesses em conflito, notadamente entre o soerguimento pretendido pela empresa que busca a recuperação (empregos, aquecimento econômico), e o interesse público para recebimento dos tributos devidos (saúde, educação, segurança, por exemplo).
O grande desafio da lei é manter o equilíbrio entre o interesse social com o soerguimento da empresa
É que, com o intuito de preservar o interesse social na manutenção de empresas viáveis como geradoras de riquezas, e em sintonia com o princípio da capacidade contributiva, o legislador pretendeu conceder às sociedades em recuperação judicial o direito ao parcelamento dos créditos tributários. Assim, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que, enquanto não for editada lei específica sobre o parcelamento dos créditos tributários de devedores em recuperação judicial, parece evidente a impossibilidade de aplicação do disposto nos artigos 57 da Lei nº 11.101, de 2005, e do artigo 191-A do CTN no sentido de exigir a prova da suspensão da exigibilidade do crédito tributário (Recurso Especial nº 1.187.404).
A nova questão jurídica surge com a recente Lei nº 13.043, de 13 de novembro de 2014, instituindo parcelamento de dívidas fiscais, especialmente para as sociedades em recuperação judicial. O artigo 43 conferiu nova redação ao artigo 10-A da Lei nº 10522, de 19 de julho de 2002, instituindo um parcelamento específico para pagamento das dívidas tributárias de sociedades em recuperação judicial.
Todavia, após um exame mais cuidadoso, parece que a simples edição de lei especial, da forma como foi disposta, não resolve a questão. Primeiro, o artigo 44 da Lei nº 13.043, de 2014, determina expressamente que a Secretaria da Receita Federal e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional editarão os atos necessários à efetivação desse parcelamento. Assim, tratando-se do parcelamento, enquanto a lei não for regulamentada, a sua eficácia é limitada. Segundo, no parágrafo primeiro, o legislador exige que o contribuinte inclua no parcelamento a totalidade dos seus débitos tributários, inscritos ou não na dívida ativa, mesmo que discutidos judicialmente, enquanto o parágrafo segundo condiciona a concessão do parcelamento à desistência expressa, e de forma irrevogável, de qualquer impugnação, ação ou recurso e, cumulativamente, a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundem as lides administrativas e judiciais.
Estas duas exigências criadas pela lei são de duvidosa constitucionalidade.
No primeiro caso, impor ao contribuinte a renúncia ou ônus para o exercício de um direito que a Constituição da República lhe assegura pode significar legislar de forma abusiva (vale conferir a Súmula Vinculante nº 28, do STF). Ademais, o STJ tem entendimento pacífico no sentido de não aplicar a renúncia para aderir ao parcelamento.
Há ainda parte da doutrina que considera mesmo inconstitucionais os artigos 57 da Lei nº 11.101, de 2005, e do artigo 191-A do CTN, por desrespeito ao princípio da razoabilidade. Sustenta que o legislador não pode condicionar a concessão da recuperação judicial à comprovação da regularidade do crédito tributário, pois o mesmo não se sujeita a recuperação judicial. Em decorrência da supremacia das normas constitucionais, nenhum ato jurídico será válido se for contrário à Constituição.
Por isso mesmo, prestes a completar dez anos de vigência, o grande desafio do direito falimentar moderno e da lei de recuperação brasileira é manter o equilíbrio entre o interesse social com o soerguimento da empresa, a satisfação dos credores e o respeito aos direitos do devedor.
Este é o primeiro de uma série de três artigos sobre os dez anos da Lei nº 11.101, de 2005.
Luis Felipe Salomão e Paulo Penalva Santos são, respectivamente, ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e advogado e professor da FGV/RJ. Também são autores do livro "A nova lei de falências e de recuperação de empresas", da Editora Forense
Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações