Para economista, alternativa heterodoxa é a melhor saída para permitir gastos do Estado durante crise
Luiz Carlos Bresser-Pereira
[RESUMO] Economista argumenta que o financiamento monetário (compra direta de títulos do Tesouro pelo Banco Central) é essencial para financiar gastos do Estado durante a crise do coronavírus e que a medida não causará aumento da inflação e da dívida pública.
A pandemia da Covid-19 tem sido comparada com a gripe espanhola de 1918, que causou milhões de mortes, e implica uma crise econômica que poderá ser tão grande ou mesmo maior que o crash da Bolsa de Nova York de 1929 e a Grande Depressão dos anos 1930. O grande artista plástico Nuno Ramos disse que a pandemia é um apocalipse ou uma descida aos infernos.
Já morreram mais de 370 mil pessoas no mundo, e não sabemos até onde irá essa tragédia. Porém, a gravidade desta crise —tanto em número de mortes quanto em diminuição da produção e aumento do desemprego e da pobreza— dependerá de quanto os Estados gastarem e como gastarem para enfrentá-la.
A política correta para enfrentar a morte envolve "lockdowns" (confinamento total) intermeados por aberturas e a realização de um grande número de testes. A política para salvar empresas, empregos e evitar a forme, assim como para salvar vidas, exigirá grandes gastos.
Para enfrentar esta crise, socorrer os infectados, diminuir o número de mortes e reduzir os seus custos econômicos em termos de diminuição do PIB o Estado, em todos os países do mundo, está sendo obrigado a intervir firmemente no plano sanitário, ao mesmo tempo que realiza grandes despesas que envolverão um enorme aumento do déficit público.
Quanto deverão eles gastar? Ninguém sabe com segurança, mas sabemos que, primeiro, quanto mais o Estado gastar, melhores deverão ser os resultados e, segundo, se os gastos forem financiados por emissão de moeda, eles não implicarão aumento da dívida pública, e os Estados gastarão mais.
O FMI fez há alguns dias a previsão de uma queda do PIB mundial de 5%, mas creio que será maior. Quão grande serão as despesas públicas? Até agora o Brasil está em uma situação intermediária. Alguns países, como o Japão e os Estados Unidos, estão realizando enormes despesas para segurar a economia, enquanto outros, como a China, a França, a Itália e o México, as estão limitando. É difícil explicar por quê.
O certo é que a China realizou um "lockdown" muito eficaz, controlou a difusão da doença, e as mortes somam apenas 4.638, enquanto nos Estados Unidos, que tem uma população um quarto menor, as mortes, agora decrescentes, já somam 105 mil.
Enquanto no Brasil, cujo presidente dificultou a quarentena, o número de mortos já ultrapassou 29 mil (e ainda deverá aumentar muito porque o pico não foi alcançado), na Argentina, cujo presidente adotou uma política firme de defesa contra a Covid-19, há apenas 556 mortos. Os resultados foram também muito negativos nos maiores países da Europa, mas o número de mortes já está diminuindo — e o total de óbitos foi pequeno em Portugal, Dinamarca e Alemanha.
Há muitas perguntas que as pessoas fazem. Quanto durará a pandemia? Por que a China controlou o vírus melhor que os países ocidentais? A resposta imediata que ouço é que lá o regime é autoritário, mas será que a democracia pode ser culpada? A Coreia do Sul, cujo regime político é democrático, controlou muito bem a difusão do coronavírus —e, em menor grau, também a Alemanha.
Uma explicação complementar talvez mais importante: nos países orientais não existe o individualismo que é inerente ao capitalismo e a lógica não é a da competição de todos contra todos. No Ocidente, nos últimos 40 anos, no quadro do neoliberalismo, o individualismo tornou-se violento e passou a negar qualquer ideia de solidariedade social. Uma sociedade em que isso acontece é uma sociedade doente.
Quando acontece uma pandemia como esta, nós vemos como é importante o Estado, como ele é o grande instrumento de ação coletiva de cada povo, como só através dele podemos construir uma verdadeira nação. O mercado é uma maravilhosa instituição de coordenação econômica dos setores competitivos de uma economia capitalista; já o Estado é a instituição maior que, inclusive, regula o mercado.
O Estado pode ser um mero instrumento da classe dominante, mas, na democracia, pode se voltar para a construção de um sistema solidário se não for dominado por uma ideologia neoliberal, como aconteceu no Ocidente a partir dos anos 1980. A China não é uma democracia, mas mostrou nesta crise que lá existe mais solidariedade que nos países ocidentais.
Muitas pessoas se perguntam como será o mundo depois desta crise. Abandonará o neoliberalismo? Na verdade, ele já está sendo abandonado desde a crise financeira global de 2008. No entanto, em países como os Estados Unidos e o Reino Unido, ao invés de ser substituído por um desenvolvimentismo social e ambiental, está sendo substituído por um populismo conservador de direita, em que, além da solidariedade, a racionalidade está ausente.
O mesmo aconteceu no Brasil, neste patético e infame governo Bolsonaro. Está começando aqui um verdadeiro genocídio devido aos obstáculos que o governo federal está impondo ao isolamento das pessoas. O número de mortos está se multiplicando por quase dois e o país só deverá chegar ao pico dos casos em julho. Uma tragédia.
O ponto fundamental que eu tenho defendido desde o começo desta crise é que os governos deverão deixar de lado qualquer austeridade e gastar tudo que é necessário para salvar vidas, empregos e empresas, mas que esse gasto não deve se transformar em aumento da dívida pública.
O achatamento da curva do número de mortes devido à Covid-19, dando tempo para o surgimento de uma vacina ou de um remédio eficaz, depende do grau de distanciamento social alcançado por cada país, do número de testes realizados e do atendimento aos infectados. O atendimento destes e a diminuição da depressão econômica causada pela paralisação relativa da produção dependerão do quanto o país estiver disposto a gastar e, naturalmente, de gastar bem.
A solução de financiar esses gastos com aumento da dívida pública é a geralmente adotada, mas é um equívoco que obrigará os cidadãos, principalmente os mais pobres, a pagá-la por meio de políticas de ajuste fiscal que durarão anos. Existe uma alternativa heterodoxa para o problema.
Para os economistas ortodoxos essa alternativa não existe. Já li os economistas liberais dizerem que os custos da Covid-19 serão elevados, mas “não há mágica” e que os países terão que retomar a austeridade fiscal. A ortodoxia é a incapacidade de pensar; é pensar de acordo com uma doxa, uma verdade absoluta e indiscutível.
Ora, essa “verdade” não existe nas ideologias, nas ciências sociais e nem mesmo nas ciências naturais; talvez exista na matemática. Nós estudamos para aprender a pensar em cada caso. Devemos usar as teorias disponíveis, mas sempre de forma pragmática e dialética.
Neste caso, embora defensor da responsabilidade fiscal, defendo o financiamento monetário das despesas voltadas para a luta contra a Covid-19. Defendo expressamente que o Banco Central de cada país compre títulos do Tesouro.
Foi isso o que fizeram os países ricos depois da crise de 2008, no quadro do "quantitative easing" (flexibilização quantitativa). Naquele caso, a compra de títulos públicos e privados foi feita com o objetivo de aumentar a liquidez das economias nacionais, mas a compra de títulos públicos teve como consequência, talvez não esperada, a diminuição da dívida pública. Digo talvez porque é difícil acreditar que no Japão, onde a dívida pública original era imensa e a flexibilização quantitativa foi igualmente imensa, os japoneses não estavam cientes disso.
No caso atual, além de aumentar a liquidez (a quantidade de moeda disponível para as transações) essa compra não deverá ter como finalidade a diminuição da dívida pública, mas o financiamento das despesas com a Covid-19 sem o aumento dessa dívida.
Segundo projeções do FMI, no final deste ano a dívida pública do mundo rico deverá aumentar de 106% para 122% do PIB. Em relação ao Brasil, a previsão geralmente feita é de um aumento de 78% para 90% do PIB, mas isso se o financiamento for feito pela venda de títulos do Tesouro ao setor privado. Com o financiamento monetário não haverá aumento da dívida pública.
Há boas razões para se evitar o aumento da dívida pública. Nos países em desenvolvimento, um aumento muito grande da dívida pública pode levá-los ao "default" (moratória) e os obrigar a pedir a restruturação (diminuição) da dívida, mas sabemos que essa é uma solução ruim, que desmoraliza o país e seu governo.
Uma segunda possibilidade, que vale para qualquer país, é procurar pagar a dívida no longo prazo, mas isso obrigará o país a adotar um corte muito grande de despesas, depressivo, que o levará a taxas de crescimento muito baixa por muitos anos. O Reino Unido incluiu-se neste caso: após a Primeira Guerra Mundial sua dívida subiu para 140% do PIB, levando o governo a engajar-se em uma política de austeridade fiscal que levou a um superavit primário (superávit público não se considerando as despesas com juros) de 7% durante os anos 1920.
Conforme observou a revista The Economist: “Os resultados foram desastrosos. A austeridade reduziu o crescimento: o produto em 1928 permanecia abaixo de do de 1918, enquanto a dívida pública continuava a crescer alcançando 170% do PIB em 1930. Diante disso, John Maynard Keynes observou: 'assuredly it does not pay to be good’ [certamente não vale a pena ser bom]”.
A consequência não prevista ou não almejada da flexibilização quantitativa foi uma grande diminuição na dívida pública dos países que a praticaram. No caso do Japão, cuja dívida era imensa, a redução foi enorme: o Banco Central do Japão detém 85% da assim chamada “dívida pública” do Japão, de forma que ela foi reduzida em 77%; já a redução da dívida pública dos Estados Unidos foi bem menor, 12%.
Vemos, assim, que há uma grande diferença entre a compra de títulos do Tesouro pelos bancos centrais ou pelo setor privado. No primeiro caso não há aumento da dívida pública, já que Tesouro e Banco Central são duas organizações que fazem parte do aparelho do Estado. A verdadeira dívida pública é a dívida do Estado líquida dos créditos do Tesouro em relação ao Banco Central.
Entretanto, não é isso o que vemos ao examinarmos a evolução da “dívida pública” dos países que realizaram "quantitative easing". As dívidas públicas do Japão, dos Estados Unidos, do Reino Unido, da Suíça, da Suécia e dos países da zona do euro não foram devidamente corrigidas.
Não foram porque os economistas adoram ficções e as regras da contabilidade pública continuam a ser regidas por conceitos superados; porque essas regras colocam o Banco Central fora do Estado, algo que só foi verdade no início da história dos bancos centrais, quando em alguns países bancos privados assumiram o papel de bancos centrais. Não foram também porque admitir que a compra de títulos do Tesouro pelo respectivo Banco Central seria incentivar a “gastança” —gastos fiscais elevados e irresponsáveis.
Não aumentar a dívida pública tem uma importância fundamental no quadro atual. Se os formuladores de políticas souberem que a emissão de moeda não aumentará em termos reais a dívida pública, terão mais liberdade para gastar o que realmente for necessário.
Esta é uma crise gravíssima que atinge principalmente as minorias sociais, os negros nos países fora da África subsaariana e os mais pobres. É uma crise diante da qual os países não devem fazer economia ao enfrentá-la. O problema fundamental desses países é o de salvar vidas, salvar empregos e salvar empresas —e para isso precisam realizar grandes gastos.
Se os ministros das finanças e seus assessores compreenderem qJue a compra de títulos do Tesouro pelo Banco Central não causará inflação e não aumentará a dívida pública, eles realizarão os gastos necessários. Se não acreditarem, ou se estiverem no triste caso dos países da zona do euro, que não têm o poder de emitir moeda, eles certamente vão gastar menos.
Não existem ainda dados definitivos sobre o quanto os grandes países estão gastando com a Covid-19, mas já existem bons estudos. Segundo um trabalho do Ibre (Instituto Brasileiro de Economia) da FGV, está havendo uma variação grande entre os países. Excluindo-se os financiamentos que não pesam no Orçamento, mas também são muito importantes para enfrentar a crise, e considerando apenas programas governamentais, temos que alguns países como a Austrália, o Canadá e o Japão estão gastando bastante (respectivamente 10,1%, 9,1% e 6,8% do PIB), enquanto outros como a Itália, a França e a Espanha estão gastando pouco (respectivamente 1,2%, 2% e 2,7% do PIB).
Não creio que isto seja por acaso. Os países que estão gastando menos são exatamente aqueles que cometeram o grande equívoco de criar o euro e perderam autonomia de política monetária. Nós vimos isso de maneira claríssima na crise do euro entre 2010 e 2015 e parece que estamos vendo isso novamente na crise da Covid-19. A Alemanha, nesse estudo, é uma exceção (está gastando 6% do PIB), mas sabemos como a conta fiscal e a conta corrente externa desse país são administradas com rigor e como é competente a sua primeira ministra.
Muita gente pensa ainda que o aumento da oferta de moeda causa inflação. Isso não é verdade, mas antes quero argumentar esse aumento ocorrerá em qualquer hipótese, não importando se o financiamento for feito por emissão de moeda ou por aumento da dívida pública. Aumentará porque os governos de todos os países estão sendo obrigados a aumentar muito suas despesas, o que implicará aumento do crédito, e a quantidade de moeda em uma economia depende diretamente das variações do crédito.
Por isso, a teoria keynesiana e a teoria novo-desenvolvimentista afirmam que a oferta de dinheiro na economia é endógena. Pode decorrer tanto do endividamento das empresas quanto do Estado, e, quando este último é o caso, o financiamento do Estado pode ser realizado pelo setor privado ou pode ser monetário (pelo Banco Central).
Nos dois casos, o financiamento do Estado causa aumento do crédito e, portanto, aumento da quantidade de moeda. Onde irá o setor privado encontrar recursos para comprar os títulos oferecidos pelo governo se sua riqueza está toda aplicada? Como o investidor não tem dinheiro em caixa, ele vai ao setor financeiro para tomar dinheiro emprestado. Assim, como nesta crise haverá aumento das despesas do Estado, haverá aumento do crédito, e, portanto, haverá necessariamente aumento da oferta de moeda.
No entanto, não haverá aumento da inflação. Haveria se o aumento da despesa do Estado causasse um excesso de demanda em relação à oferta agregada, mas não é isso que estou defendendo nem é o que acontecerá. No momento, em todo o mundo, o que há é uma imensa queda tanto da oferta quanto da demanda e grave risco de deflação.
Um velho medo das pessoas comuns é que o financiamento monetário do Estado cause inflação. A teoria quantitativa da moeda que defendia essa ideia é um velho e desgastado mito. Ele provavelmente tem origem em tempos antigos quando se chamava inflação não o aumento dos preços mas o aumento descontrolado da quantidade de dinheiro na economia. Há muito tempo inflação não é isso, mas o aumento persistente dos preços.
Esse mito foi ressuscitado no pós-guerra pelos monetaristas liderados por Milton Friedman, mas eles fracassaram no seu projeto. Fracassaram tão radicalmente que hoje, quando as pessoas falam de economistas ortodoxos não se referem mais a economistas monetaristas, mas a economistas neoclássicos.
Na literatura econômica existe uma identidade, a equação de trocas (MV = Yp), na qual M é a quantidade de moeda, V é a sua velocidade, Y é a renda nacional e p é a inflação. Trata-se de uma identidade porque ela parte da definição da velocidade da moeda (de quantas vezes a moeda gira em um ano).
Os economistas neoclássicos ou monetaristas, porém, transformaram essa identidade em uma teoria ao supor que a velocidade da moeda (o número de vezes que ela gira em um ano) é constante e afirmar que o aumento de M causava a inflação.
Ora, não há nenhuma razão para considerar esse V constante e, portanto, não se pode fazer a transformação direta do M em p, de aumento da quantidade de moeda em aumento da inflação. Por outro lado, mesmo considerando-se V constante, não há uma boa razão para dizer que é o aumento de M que causa o aumento de p, da inflação. Pode ser o contrário, o aumento de p exigindo o aumento de M para que a liquidez do sistema econômico seja mantida.
Keynes não disse textualmente isso, mas mostrou que a quantidade de moeda em uma economia é endógena, ou seja, está diretamente relacionada com o aumento do PIB. Aqui no Brasil eu aprendi o caráter endógeno do dinheiro com Ignácio Rangel, que chegou a essa ideia por sua própria conta, observando a realidade brasileira dos anos 1960. Entre os pós-keynesianos, Basil Moore mostrou teoricamente a endogeneidade da moeda em 1979.
A teoria da inflação inercial, na forma pela qual foi desenvolvida no Brasil (o país que teve a mais longa e radical experiência desse tipo de inflação), mostrou isso de forma definitiva. O paper que definiu mais amplamente essa teoria, “Fatores Aceleradores, Mantenedores e Sancionadores da Inflação” (1983), afirma isso no próprio título.
O fator acelerador da inflação, ou seja, sua causa, é o excesso de demanda em relação à oferta, mas pode também ser resultado de um choque de oferta. A indexação formal e informal dos preços é o fator mantenedor ou inercial da inflação, que a torna resistente às políticas de aumento dos juros e de redução de despesas visando diminuí-la. Já a moeda é o fator sancionador da inflação, o fator que valida a inflação que está acontecendo.
Para entender por que isso acontece precisamos considerar, primeiro, que a oferta ou quantidade de moeda varia com o aumento ou diminuição do crédito; segundo, que uma de suas funções é a de atuar como um “óleo lubrificante” que garante a liquidez monetária do sistema, que permite que as trocas comerciais e os investimentos ocorram de maneira normal sem que a taxa de juros seja fortemente afetada.
A experiência de "quantitative easing" demonstrou definitivamente que o velho monetarismo não faz sentido. Os bancos centrais dos países ricos compraram US$ 15 trilhões de títulos públicos e privados sem que houvesse aumento da taxa de inflação. Nos dois casos buscava-se aumentar a liquidez do sistema e baixar a taxa de juros (que chegaram a se tornar negativas) para estimular a economia, mas quando houve compra de títulos públicos isso implicou diminuição da dívida pública.
Os ortodoxos vão dizer que “fica abolida a disciplina fiscal”, mas não é isso que estou dizendo. A responsabilidade fiscal continua essencial. A compra de títulos públicos pelos bancos centrais precisará ser cuidadosamente regulada e transparentemente controlada. Dessa maneira, estou seguro que o financiamento monetário será um trunfo na luta contra a Covid-19.
Existem duas instituições que controlam as dívidas de um país: o mercado controla as dívidas privadas, e a política econômica controla a dívida pública. Qual dessas instituições é mais efetiva? O pressuposto liberal ou ortodoxo é que os políticos são incapazes de manter o controle fiscal que é necessário, e daí se conclui que a dívida pública é mais perigosa do que a dívida privada.
Mas isso só é verdade para países pobres e para alguns países de renda média sujeitos ao populismo econômico, entre os quais infelizmente o Brasil. É verdade que o endividamento das famílias e das empresas pode levá-las à falência, enquanto o endividamento do Estado não, desde que o endividamento seja feito na moeda nacional. Porém, hoje o endividamento dos Estados é altamente controlado, enquanto o das empresas e das famílias está sujeito a euforias e bolhas financeiras.
A disciplina fiscal continua essencial para o desenvolvimento econômico. Keynes fez uma revolução na teoria econômica defendendo déficits públicos e o aumento do investimento público nos momentos de recessão, mas defendeu sempre a disciplina fiscal. Os países que se desenvolveram e se tornaram ricos se desenvolverem adotando disciplina fiscal.
Por que essa disciplina fiscal é tão importante? Não é porque o Estado pode quebrar, porque Estado endividado na sua própria moeda não quebra. Nem é porque os investimentos públicos tirariam espaço para os investimentos do setor privado —o chamado "crowding out" do setor privado.
Se o Estado realiza seus investimentos na infraestrutura e na produção de insumos básicos, ele não diminui, mas abre oportunidades de investimento para as empresas. Sem dúvida, o gasto público pode causar inflação se implicar em aumento da demanda além da capacidade de oferta do país, mas a responsabilidade fiscal implica evitar que isso aconteça.
Proponho, porém, que existe uma razão maior que levará os bons políticos e os bons economistas dos países bem-sucedidos a agirem com disciplina fiscal —uma razão que eles não “conhecem”, mas, de alguma forma, têm dela uma intuição. Um Estado não pode quebrar, mas um Estado-nação pode quando está endividado em moeda estrangeira. Um país fica endividado quando incorre em deficits em conta-corrente crônicos.
Ora, déficits fiscais, antes de levar o país ao pleno emprego e à inflação, causam aumento do déficit em conta-corrente que elevam sua dívida externa, principalmente sua dívida externa privada, porque esse principalmente é o setor que se endivida em moeda estrangeira.
Isso é muito perigoso, porque o país fica à mercê de seus credores externos e pode a qualquer momento quebrar, entrar em uma crise de balanço de pagamentos que interromperá o processo de desenvolvimento econômico e levará o partido político no poder a perder as próximas eleições.
Esse argumento é importante e inverte o raciocínio ortodoxo. A indisciplina fiscal não é um mal porque quebra o Estado, mas porque ameaça quebrar o Estado-nação. Esse é um argumento novo-desenvolvimentista em favor da disciplina fiscal porque para essa perspectiva teórica o mal maior são os déficits em conta-corrente que apreciam no longo prazo a moeda nacional e tornam não competitivas as empresas industriais do país.
Luiz Carlos Bresser-Pereira, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, foi ministro da Fazenda no governo Sarney e da Administração e Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia no governo FHC.
03/06/2020