Em tempos de operação Lava-Jato e diante da constatação da participação de diversas sociedades empresárias nos mais variados esquemas de corrupção envolvendo a administração pública, a pegunta que se faz é a seguinte: O princípio da preservação da empresa, corolário da recuperação judicial, poderá se sobrepor ou atenuar as sanções impostas pela Lei Anticorrupção?
É inegável que a edição da Lei Anticorrupção representou uma importante conquista do país. Em síntese, a referida Lei impôs a responsabilidade objetiva, administrativa e civil, das pessoas jurídicas pela prática de atos em prejuízo à administração pública, nacional ou estrangeira. Sendo assim, o objetivo principal da Lei Anticorrupção não foi outro senão inibir e penalizar as pessoas jurídicas pela prática de atos contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, independente da constatação de culpa ou dolo.
Já a Lei de Recuperação Judicial, que ganha cada vez mais importância e destaque no ordenamento jurídico, tendo em vista o atual momento de crise econômica, tem como objetivo principal viabilizar a superação da crise econômico-financeira das sociedades empresárias que exerçam atividades viáveis, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa.
A problemática surge quando a multa da Lei Anticorrupção desencadeia crise que levaria a sociedade a ajuizar recuperação
A problemática surge quando a multa imposta pela Lei Anticorrupção, em decorrência da constatação da prática dos atos descritos naquela Lei, desencadeia uma situação de crise econômico-financeira tal que levaria a sociedade empresária penalizada a pretender ajuizar um pedido de recuperação judicial.
Neste ponto, as mencionadas leis se (des)encontram. Esse jogo de palavras tem a intenção de conduzir o leitor à reflexão do limite da preservação da empresa ou da necessidade de garantir a manutenção da atividade empresária que, apesar dos erros cometidos por quem a conduziu, gera uma infinidade empregos, além de circular riqueza em toda a sociedade.
Com relação à interação dessas leis, o primeiro e mais importante ponto diz respeito à submissão das multas aos efeitos da recuperação judicial. Nesse aspecto, a definição da natureza jurídica desse crédito é fundamental, tendo em vista que se for considerada como de natureza fiscal, o crédito estaria excluído dos efeitos da recuperação.
Em contrapartida, se a multa for entendida como meramente uma indenização compensatória, não há dúvidas de que seria um crédito quirografário do Estado a ser relacionado na recuperação judicial dessas pessoas jurídicas, sendo pago na forma do plano aprovado pelos credores em assembleia.
A defesa da extraconcursalidade desse crédito está fundamentada no argumento de que a sanção aplicada, em que pese a discussão acerca da natureza jurídica, teria como função a diminuição do patrimônio do ofensor para que a conduta praticada não se repetisse. Nesse sentido, se esse crédito fosse considerado concursal, em tese, a multa prevista na Lei Anticorrupção não seria eficaz.
No entanto, é importante destacar, assim como já mencionado anteriormente, que a recuperação judicial tem como função viabilizar a superação da crise econômico-financeira com objetivo de preservar a empresa, entendida como a atividade que gera empregos e circula riquezas. Com efeito, em eventual recuperação judicial dessas pessoas jurídicas, sustenta-se a efetiva concursalidade desses créditos e o imediato afastamento dos controladores e/ou administradores que conduziram a pessoa jurídica à prática de atos ilícitos.
Em continuidade à análise dos (des)encontros das leis, a Lei Anticorrupção possibilita o ajuizamento de procedimentos judiciais, apesar das punições administrativas previstas. Isso é um problema! O Brasil tem necessidade de criar um procedimento único para negociar o acordo de leniência e, assim, permitir o prosseguimento do exercício atividade empresária pela pessoa jurídica punida.
A falta de segurança jurídica quanto à cessação de procedimentos administrativos ou judiciais, após a celebração do acordo de leniência, criará uma situação de pena perpétua para as pessoas jurídicas, situação muito prejudicial para o desenvolvimento do país.
Por fim, cabe destacar também que a antinomia existe entre o art. 4º da Lei 12.846/13 e as regras da Lei de Recuperação Judicial. A referida regra da Lei Anticorrupção garante a subsistência da responsabilidade da sucessora para pagamento de multa e reparação integral, até o limite do patrimônio transferido.
De acordo com as regras da Recuperação Judicial, esses meios de recuperação apenas seriam viáveis se o sucessor tivesse a garantia de que eventuais obrigações permaneceriam com a sociedade em recuperação judicial e o mencionado crédito da obrigação fosse pago na forma do plano de recuperação judicial. Nesse aspecto, haverá a necessidade de ponderação por meio das regras de cronologia da norma e especificidade que demandará do julgador também a necessidade de se ponderar os princípios aplicáveis diante do caso analisado.
Portanto, esses são alguns dos (des)encontros das Leis Anticorrupção e de Recuperação Judicial que merecem atenção. Não se pretende, de forma alguma, que as pessoas jurídicas sejam absolvidas dos atos de corrupção praticados contra o patrimônio público. No entanto, não há como negar que a punição severa e irrestrita poderá causar danos ainda maiores para a sociedade como um todo, pois essas pessoas jurídicas, independentemente dos crimes que cometeram, devendo por eles serem responsabilizados, geram milhares de empregos diretos e indiretos, sem contar os inúmeros credores que também poderão ser atingidos em caso de falência dessas pessoas jurídicas.
Juliana Bumachar e Pedro Freitas Teixeira são, respectivamente, sócia e advogado do Bumachar Advogados Associados
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