As sucessivas crises dos últimos anos nas matrizes do capitalismo têm criado também no Brasil um cenário de instabilidade e tornado mais claro aos agentes econômicos o agressivo e acelerado processo de erosão pelo qual passam as garantias jurídicas tradicionais existentes.
É justamente na crise, no momento do default contratual, que se materializam as incompatibilidades da operação econômica do hoje com a legislação de ontem ou anteontem.
Salvo o fiador ainda utilizado em contratos de locação de imóvel (por mais contestável que seja a efetiva garantia que confere), as garantias pessoais dificilmente são encontradas sozinhas estruturando operações negociais complexas. Verificam-se ao menos três dificuldades práticas das garantias pessoais no Brasil: (i) a ausência de unicidade de registro e de fácil publicidade das garantias pessoais; que leva à (ii) impossibilidade do garantido em aferir o grau de comprometimento jurídico/econômico que o garantidor possui; (iii) impossibilidade fática de rastreamento e congelamento dos ativos do garantidor que satisfaçam o credor.
É na crise que se materializam as incompatibilidades da operação econômica do hoje com a legislação de ontem
Mais. A facilidade de esvaziamento patrimonial repercute diretamente em quebra de eficácia das ações persecutórias de patrimônio desviado em fraude. O aval, primo próximo da fiança e aplicável aos títulos de crédito, tem dificuldades semelhantes.
Quando se fala nas garantias reais a situação não melhora muito. A hipoteca passa por verdadeira esquizofrenia: Se de um lado enfrenta progressivo processo de desuso em virtude de seu procedimento judicial mais custoso e menos célere do que o procedimento extrajudicial da alienação fiduciária de bens imóveis; de outro lado, é a única opção em algumas regiões do país em que a alienação fiduciária ainda sofre burocracias incompreensíveis de alguns cartórios, em clara afronta à Lei Federal nº 9.514/1997.
Há também outros motivos eminentemente comerciais para sua degradação. Executar uma hipoteca de 4º grau, por exemplo, implica na maior parte das vezes não apenas em acelerar os vencimentos das hipotecas anteriores, mas sim "enforcar" o devedor de vez. Para salvar um dedo, perde-se um braço.
Mas, sem dúvida, a situação mais esquizofrênica é a relação entre garantias negociais x recuperação judicial do garantidor. As confusões conceituais dos tribunais são parte do problema. Chega-se ao ponto de o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ter que esclarecer que a propriedade de bens agropecuários depositados em armazém é do depositante e, assim, afastá-los da recuperação judicial de um armazém (veja-se, por exemplo, o Conflito de Competência nº 147.927-SP).
Mas além disso, há verdadeiros desafios teóricos e práticos. Veja-se a dificuldade de tutela para casos limítrofes entre a proteção da empresa x respeito à garantia/crédito. A teleologia do §3º do art. 49 da Lei nº 11.101/2005 de proteger o credor - basicamente, o credor com garantia real - dos efeitos da recuperação judicial é acertada, apesar de frequentemente interpretada de forma diversa pelos tribunais. Se o credor constitui a garantia e, "ab initio", deve temer evento posterior desconhecido que possa modificar substancialmente sua garantia, inexiste segurança jurídica: inexiste garantia, em seu conceito mais fundamental.
Contudo, como recuperar uma empresa esvaziada? Como satisfazer seus credores mais necessitados (por exemplo, os créditos trabalhistas)? Não são questionamentos fáceis.
Na ausência de legislação que resolva as dificuldades das garantias, pode-se dizer que, grosso modo, o Judiciário tem tratado essa relação recuperação judicial do garantidor x garantias caso a caso. Recentemente o TJ-SP permitiu penhora de parte da produção de cana-de-açúcar de uma empresa em recuperação judicial para satisfação de seu credor que a tinha alienada fiduciariamente.
Há diversos casos em que o Judiciário proíbe a consolidação de propriedade fiduciária de maquinário e/ou bem imóvel dado em garantia em que a empresa recuperanda tem sede (indispensáveis à sua atividade). A mesma proibição é também frequente em alguns casos de penhor de safra. De tudo isso, a única certeza é de que não há certeza de respeito às garantias negociais em caso de uma recuperação judicial do garantidor.
Há muito tempo se discutem melhorias e inovações no atual sistema de garantias. O adormecido PL 1.572/2011 não traria ao Código Comercial relevantes modificações aos problemas nucleares. Assim, talvez a melhor referência sejam mesmo os estudos conduzidos pelo VI Grupo de Trabalho da Uncitral desde 2002. Entre as discussões e evoluções animadoras, além da própria tentativa de se estabelecer um sistema de garantias compatível com diferentes legislações, estão a inclusão de uma garantia contratual registral, visando-se diminuir a irrastreabilidade do grau de comprometimento do garantidor, e a regra de prioridade e eficácia em casos de insolvência do garantidor.
Qualquer que seja o sistema adotado e modificações legislativas que sejam feitas para melhorar os sistemas de garantias, fato é que se a garantia não for de fato eficaz ao garantido ou se ela lhe for incerta, o risco será previamente precificado: ou não se concede o crédito ou ele se torna mais caro àquele que oferece tal garantia. Para os casos de recuperação judicial isso é mais grave: ou se quebra a empresa em recuperação judicial por retirar dela um bem ou nem à recuperação judicial ela chega por indisponibilidade de crédito.
29/05/2018