Em decisão paradigmática, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a inexistência de foro universal em recuperação judicial (REsp nº 1.236.664/SP). A decisão confirmou o entendimento de que a empresa em recuperação judicial não pode se valer do juízo recuperacional para cobrar créditos ou para solucionar controvérsias relacionadas à execução de contratos. Isso, segundo o STJ, deve ser feito em ação própria, ajuizada em foro distinto ao da recuperação judicial.
A primeira virtude da decisão é de ordem conceitual: ela reestabelece os limites do processo de recuperação judicial. A recuperanda não pode se valer de um processo peculiar, voltado a dar-lhe fôlego para superar dificuldades, para cobrar créditos que entenda serem devidos. Esse expediente tem ocorrido com frequência e tem o potencial de arruinar as virtudes da recuperação. É que para cada pretensão apresentada pela recuperanda, poderá ser aberta instrução probatória, além de toda a cadeia de recursos prevista na legislação processual. Subitamente, a recuperação judicial transforma-se em um emaranhado de ações de conhecimento, com todos os ingredientes para se eternizar.
A segunda virtude é de ordem lógica. Não faz sentido que uma empresa tenha de discutir no processo de recuperação judicial pendências que possa ter, por exemplo, com fornecedores de filial situada em localidade distante. A experiência demonstra que o contencioso desenvolvido onde o contrato foi celebrado e executado pelas partes é mais célere e menos custoso. Atrair esse contencioso ao juízo da recuperação não se justifica.
A superação da crise não deve eximir a empresa em recuperação das demais normas do ordenamento jurídico
A terceira virtude está relacionada à administração da Justiça. A inexistência de foro universal alivia a sobrecarga do juízo da recuperação. Nas comarcas onde há varas especializadas, o ajuizamento pela recuperanda de ação perante o juízo da recuperação prejudicaria a própria especialização da vara, premida que estaria a lidar com ações que ultrapassam a sua especialização. Nas comarcas onde não há varas especializadas, por outro lado, o imã da universalidade do juízo provocaria concentração desproporcional do volume de processos na vara onde se processa a recuperação.
Por fim, há uma virtude sistêmica da decisão. Afinal, se até mesmo a empresa em processo de falência não pode se valer da universalidade do juízo quando se trata de cobrar créditos contra terceiros (art. 76 da Lei 11.101/76), não faria sentido que o inverso se aplicasse ao caso da empresa em recuperação judicial.
Em suma, a lógica da decisão do STJ é a de resguardar a integridade do processo de recuperação judicial, preservando, evidentemente, o direito da recuperanda de cobrar seus créditos, desde que o faça em ação própria, no foro definido pelas normas do Código de Processo Civil.
A inexistência de foro universal em recuperação judicial mostra-se, por fim, importante para preservação do direito do devedor da recuperanda a um processo justo - um aspecto normalmente negligenciado nas análises sobre a recuperação judicial. É que a recuperação judicial tem por fim ajudar a empresa em dificuldade. Esse propósito não pode se irradiar sobre a análise de pleitos que a recuperanda possa ter contra terceiros, porque aí cria-se uma situação de inaceitável favorecimento; um pressuposto inconstitucional de que o pleito da empresa em recuperação merece um olhar mais benevolente do julgador.
Além disso, existem as questões práticas. O procedimento da recuperação judicial é peculiar e não prevê as garantias típicas do processo de conhecimento. Não há, por exemplo, sentença, apelação, reconvenção etc. A própria matéria passível de discussão é limitada pela Lei nº 11.101/2005 aos créditos listados ou não, sua legitimidade, valor e classificação (art. 8º da Lei nº 11.101/2005) e aos requisitos do plano de recuperação judicial. Em suma, uma criatura processual única.
O princípio da união de esforços para a superação da crise da empresa trazido pela Lei nº 11.101/2005 é, sem dúvida, louvável. Mas ele não deve eximir a empresa em recuperação judicial de observar as demais normas do ordenamento jurídico brasileiro quando se trata de exigir pagamento de créditos que alega deter. Os efeitos da decisão do STJ retratam essa temperança: de um lado confirmam o compromisso do legislador com a eficácia da recuperação judicial, de outro lado impedem a criação de um regime de favorecimento da empresa em recuperação quando se trata de analisar cobrança de créditos que esta porventura detenha contra terceiros.