Estamos em um momento de profundas transformações na insolvência brasileira. Não à toa, Thomas Felsberg me chamou de lado na semana passada e, em mais uma das suas profecias, cravou direto ao gol: nosso tradicional departamento de insolvência agora passa a ser o departamento de Transformação, Reestruturação e Insolvência.
A profecia é a tradução inteligente em palavras de algo que vimos observando há mais de dois anos. A evolução da jurisprudência e a reforma da lei de insolvência promovida pela lei 14.112/20 ("LRF") alteraram o pêndulo entre devedores e credores, privilegiando os últimos, e trouxeram maior segurança jurídica aos investidores.
Grandes beneficiados pela última reforma da LRF, que almeja a manutenção ou reinserção eficiente de ativos na economia, os investidores vêm tomando confiança para desbravar o mercado de distressed, até então incipiente no Brasil. Isso se dá especialmente porque: (i) agora a cessão ou promessa de cessão de crédito tem que ser comunicada nos autos da recuperação judicial (§7º art. 39 LRF), garantindo maior transparência às transações nesse ambiente; (ii) há norma expressa na lei garantindo que os créditos cedidos a qualquer título manterão sua natureza e classificação (§3º, art. 83); (iii) não haverá sucessão do investidor ou novo administrador em decorrência da conversão de dívida em capital, aporte de novos recursos ou substituição dos administradores atuais dos devedores (§3º art. 50 LRF); (iv) as regras sobre as UPIs e a não sucessão do adquirente desses ativos estão mais claras e contundentes (arts. 60, 60-A, 142 LRF); (v) o financiamento a empresas em recuperação ("DIP") está mais seguro e garante privilégios e proteção eficiente ao financiador (art. 69 A-F).
O resultado é que nunca se viu tantas operações estruturadas de alta complexidade em casos de insolvência. Na crise surgem as oportunidades. Credores vêm promovendo leilões regulares de seus créditos no mercado; fundos investidores se aproveitam do momento para investir em operações com alta rentabilidade e um risco (agora) controlado para quem souber dançar conforme a música. DIPs, apresentação de plano alternativo pelos credores, capitalização de créditos na devedora e implementação de nova gestão são alguns exemplos recentes deste território recém desbravado.
Nesse contexto de transformações surge a SAF, por meio da lei 14.193 de agosto de 2021 ("Lei da SAF"), que promete revolucionar o meio futebolístico no curto prazo, ao criar a sociedade anônima do futebol, que aproveita diversos conceitos já testados pela LRF.
Como se verá, a SAF trouxe um ambiente mais favorável aos negócios para o futebol brasileiro, ao segregar as atividades relacionadas ao futebol para uma nova estrutura, sem contaminação imediata com as dívidas atuais do clube. Essa nova estrutura necessariamente tem um sistema de governança exigido por lei, gestão profissionalizada e mecanismos societários que garantem transparência e segurança jurídica para atrair investimentos na área. Implementa, ainda, regimes fiscais mais benéficos aos clubes e abre novas possibilidades de reestruturação das dívidas.
O momento é mais do que pertinente. Tradicionalmente os clubes de futebol pedalam para equilibrar suas contas. Com a pandemia, a crise se aprofundou a níveis alarmantes, impactando-os profundamente.
No mundo polarizado de hoje, a torcida se divide de forma acirrada: alguns sedentos pela SAF, que traria uma mudança de patamar do futebol brasileiro com a entrada de recursos para investimento; outros avessos a ouvir a respeito, já que a SAF representaria a redenção do amado clube associativo, onde os torcedores associados têm voz e voto, às forças do capital. Fato é que, aos poucos, alguns clubes vêm aderindo à SAF e buscando a reestruturação de suas dívidas.
No meio desse fla-flu, muitos investidores ainda observam desconfiados. Por enquanto. A tendência é que a SAF se consagre. E isso por um simples motivo: ela funciona bem. Apesar de alguns pontos de atenção na lei, que mereceriam ajustes, muitos dos seus conceitos estão alinhados com a LRF e com a jurisprudência dos tribunais.
De toda forma, com base nessas novas regras, é possível adotar uma série de soluções estruturantes que conciliem os interesses de parte a parte, tornem a atividade lucrativa, e ainda tragam benefícios sensíveis ao esporte e ao espectador. Mas é necessário achar o equilíbrio ótimo. Como a Lei da SAF importou diversos conceitos da LRF e inclusive abriu as portas para os clubes entrarem com pedidos de recuperação judicial ou extrajudicial, é imprescindível que esses dois mundos - futebol e reestruturação - unam suas forças para gerar negócios que atinjam esses objetivos.
Mas, afinal, o que é a SAF?
No Brasil, tradicionalmente a atividade futebolística é explorada por meio dos clubes, que podem ser estruturados tanto sob a forma de sociedades mercantis quanto de associações civis, modelo que prevalece na grande maioria deles. Com a promulgação da Lei 14.193/2021, agora o esporte poderá também ser explorado por meio da Sociedade Anônima do Futebol ("SAF").
O objeto social da SAF é o desenvolvimento da atividade relacionada ao futebol; a formação de atletas e a obtenção de receitas decorrentes das transações de seus direitos desportivos; a exploração de direitos de propriedade intelectual do clube; outras atividades conexas ao futebol (participação em sociedades, organização de eventos)1.
A SAF poderá ser constituída de três formas: pela transformação do clube ou pessoa jurídica original em SAF; pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original, com o drop down de ativos relacionados à atividade futebol para essa nova estrutura; e pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento.
Especificamente no que tange à constituição da SAF via drop down de ativos, que mais se assemelha ao conceito de constituição de uma unidade produtiva isolada ("UPI") numa recuperação judicial, as atividades relacionadas ao futebol desenvolvidas pelos clubes são segregadas e cedidas para a SAF, que passa a deter os direitos e obrigações decorrentes dessas atividades. São, assim, obrigatoriamente transferidos à SAF todo esse conjunto de ativos, inclusive contratos de trabalho, contratos de direito imagem e uso, direitos e deveres relacionados a competições. Poderão ainda ser transferidos imóveis (instalações desportivas), móveis e outros tipos de ativo relacionados à atividade.
Em troca, o clube receberá da SAF 20% da sua receita corrente líquida obtida com a exploração dos ativos, e ainda 10% ou mais das ações ordinárias da SAF (o clube ou pessoa jurídica original poderá integralizar a sua parcela ao capital social na SAF por meio da transferência dos seus ativos a ela).
Como acionista, o clube terá alguns direitos especiais, como o direito de veto sobre as seguintes matérias sensíveis: (i) alteração da denominação; (ii) modificação dos signos identificativos da equipe de futebol profissional; (iii) mudança da sede para outro Município. Enquanto o clube mantiver participação de ao menos 10% do capital social votante ou total, também terá direito de veto sobre (iv) alienação, oneração, cessão, conferência, doação ou disposição de bens imobiliários ou direito de propriedade intelectual; (v) atos de reorganização societária; (vi) dissolução, liquidação e extinção; (vii) participação em ligas de clubes.
Como já antecipado, obrigatoriamente a SAF terá uma estrutura de governança mínima constituída por Conselho de Administração, Conselho Fiscal, e diretores com dedicação exclusiva.
Em mais uma similaridade com a UPI na recuperação judicial, a SAF não responde pelas obrigações e dívidas dos clubes anteriores ou posteriores à sua constituição, desde que cumpra suas obrigações financeiras para com os clubes. Ou seja, o clube permanecerá responsável pelas dívidas atuais, e deverá quitá-las com a destinação dos 20% das receitas mensais que receberá da SAF, ou 50% dos dividendos ou outras remunerações na condição de acionista da SAF, se optar por reestruturá-las por meio do RCE (vide abaixo). Caso opte por outras formas de quitação da dívida, em princípio essa remuneração poderá ser livremente utilizada pelo clube.
Desde que a SAF cumpra com essas obrigações de pagamento perante o clube, seu patrimônio estará livre de qualquer sucessão nas dívidas preexistentes. Ressalte-se, no entanto, que a SAF poderá responder subsidiariamente pelas dívidas do clube, se este se tornar inadimplente com suas obrigações perante os credores. Este ponto, portanto, é extremamente sensível aos investidores, que idealmente deverão já estipular nos contratos de investimento com o clube a forma com que este deverá quitar seus credores, o que deve ser uma condição suspensiva ou resolutiva do negócio.
De toda forma, essa nova estrutura promete proteger os interesses do investidor que, seguindo os termos da lei, em princípio encontrará um ambiente seguro para aportar recursos via equity ou dívida numa estrutura societária que protege o ativo futebolístico das dívidas anteriores, contraídas pelos clubes. Sob este regime, o investidor poderá receber dividendos, se a SAF der lucros, e participar efetivamente da gestão do negócio.
Formas de Reestruturação do Endividamento dos Clubes
A Lei da SAF dá duas opções ao clube para reestruturar suas dívidas com a coletividade de credores: o Regime Centralizado de Execuções, ou a recuperação judicial ou extrajudicial, previstas na LRF. Essas opções, claro, não são taxativas, já que estamos no campo dos direitos disponíveis e passíveis de transação entre as partes.
Regime Centralizado de Execuções (RCE)
Concentração das dívidas
Por meio do RCE, todas as dívidas trabalhistas e cíveis dos clubes objeto de execução judicial serão concentradas num juízo centralizador, que será responsável por arrecadar os ativos e receitas e distribui-las entre os credores, organizando os pagamentos de forma alongada, segundo os critérios estabelecidos em lei.
O clube terá o prazo inicial de 6 (seis) anos para pagamento da dívida e, se tiver pago pelo menos 60% das dívidas nesse período, poderá ter uma extensão de mais 4 (quatro) anos para sua quitação. A dívida é corrigida pela taxa SELIC durante o período.
Embora não esteja clara a possibilidade de se impor um deságio coletivo aos credores sujeitos ao RCE2, a lei dispõe que o clube poderá realizar a negociação coletiva ou individual com seus credores para pagamento das dívidas. E credores que concordarem com a redução de pelo menos 30% do valor de face dos seus créditos poderão receber seus créditos de forma privilegiada.
A lei infelizmente não regula a forma de aprovação de eventual acordo coletivo, nem prevê quórum de aprovação específico no RCE para que uma maioria de credores possa concordar com um possível deságio ou outra forma de pagamento dos seus créditos, diferente da originalmente contratada (prazos, valores, alterações nas ordens de prioridade, fontes de pagamento etc). Isso pode gerar questionamentos aos intérpretes da lei. Por exemplo, pode o clube impor deságio aos credores sem a anuência da unanimidade? Ou ainda, poderá estabelecer logo no início do RCE as regras para um acordo coletivo perante o juízo competente, estabelecendo quorum de aprovação para medidas de reestruturação/pagamento, desde que seja dada ciência e oportunidade de manifestação aos credores? Há bons argumentos para ambos os lados, mas particularmente não vejo óbice aos clubes e aos credores, sob a supervisão do juiz, estabelecerem a priori um mecanismo de aprovação de acordos coletivos, com o intuito de privilegiar a decisão de uma maioria. A jurisprudência deverá se encarregar do assunto.
Enquanto os pagamentos estiverem sendo cumpridos, é proibida a penhora ou qualquer constrição de bens do clube, num stay period similar ao que se observa na recuperação judicial e extrajudicial, só que de 10 anos (ao invés dos 180 dias prorrogáveis por mais 180 previstos na LRF).
Essencial lembrar que se o clube não pagar a dívida nesse prazo, a SAF responderá subsidiariamente pelo pagamento das dívidas.
Recuperação Judicial e Extrajudicial
Sem pretender entrar nos detalhes da recuperação judicial e extrajudicial, basta-nos relembrar que ambas as medidas têm por objetivo reorganizar a atividade empresarial e reestruturar as dívidas da empresa devedora, por meio de um plano de recuperação que vincula credores dissidentes. O plano de pagamento em ambos os procedimentos precisa ser aprovado por uma maioria dos credores, e depois homologado pelo juiz.
Sabidamente, e como já introduzido neste artigo, hoje tanto a LRF quanto a jurisprudência caminharam para um ambiente de maior proteção, previsibilidade e segurança jurídica para os investidores.
Logo, a recuperação judicial ou extrajudicial pode representar inúmeras vantagens, se comparadas ao RCE. Em primeiro lugar, a certeira aplicação da regra da maioria, obedecidos os quóruns específicos de cada procedimento, permitindo a adoção de amplas medidas de reestruturação (como aplicação de deságio, conversão de dívida em capital, financiamentos DIP, constituição de UPI, venda do CNPJ) sem que uma minoria insatisfeita possa impedi-las. Some-se a isso as regras protetivas ao investidor na compra de ativos, na aquisição de créditos na recuperação, no financiamento DIP, na conversão de créditos em capital. Nestes casos, a lei lhes garante a superprioridade de recebimento em caso de falência do devedor, a imutabilidade das garantias e do negócio com o desembolso dos recursos, e ainda a não contaminação dos credores e investidores nas dívidas do devedor, conforme aplicável.
Soluções Estruturantes
Fato é que ambas as alternativas para equacionamento da dívida dos clubes - RCE e recuperação judicial/extrajudicial - não são excludentes entre si. As duas, em conjunto ou sucessivamente, poderiam ser adotadas, ou ainda outras. Afinal, como a própria lei reforça, o direito de crédito das partes envolvidas é disponível, podendo o credor anuir, "a seu critério exclusivo", a deságio sobre o valor do crédito (art. 21 da Lei da SAF). Se pode anuir com o deságio, poderá também anuir com outras medidas de reestruturação.
A Lei da SAF, nesse sentido, veio para ajudar. Não só traz algumas formas de reestruturação do passivo dos clubes, como também melhora o ambiente de investimentos. E, ao absorver diversas inspirações da LRF, a Lei da SAF já nasce com certa segurança jurídica. Sabemos que a blindagem da SAF perante as dívidas dos clubes tem boas chances de funcionar, já que inspirada na UPI da recuperação judicial. A proteção dos credores que optarem por converter seus créditos em participação acionária na SAF também parece reforçada pela LRF e a jurisprudência.
Portanto, nesse cenário de transformação, a criatividade deve imperar. Abre-se um caminho para a adoção de uma série de medidas conjugadas para a reestruturação saldável do clube e estabelecimento de uma atividade lucrativa.
Por exemplo, com a possibilidade de cessão dos créditos no âmbito RCE (art. 22 da Lei da SAF), investidores poderiam adquirir créditos suficientes para em seguida participar de uma solução mais ampla de reestruturação do clube e da atividade futebolística, coordenada em conjunto com o clube e/ou SAF. Entram na mesa opções como a apresentação de um plano de RJ contemplando a conversão de créditos em capital na SAF, e a sub-rogação da SAF como credora do clube, ou a emissão de títulos de dívida pela SAF, ou ainda um DIP ao clube com garantia da SAF. A lei ainda prevê a possibilidade de emissão de debentures-fut para pagamento de parte da dívida do clube, tendo como garantia de pagamento as receitas a serem obtidas da SAF com a exploração das atividades.
Nesse ponto, não há dúvida de que tivemos progresso palpável com a Lei da SAF. E o momento de investir nessas soluções é propício.
Conclusão
A Lei da SAF é mais um elemento que reforça o período de profunda transformação que estamos vivendo. Há, sem dúvida, um grande incentivo nas novas normas para profissionalizar o futebol brasileiro, numa estrutura mais amigável ao mercado, com governança própria e transparência. Isso ajuda a fomentar os negócios e permite melhor circulação de riquezas e investimentos no setor.
Nessa toada, a lei incentiva a adoção de soluções criativas e combinadas, alinhadas entre as principais partes envolvidas: credores, investidores, SAF e clube. Para atingir e maximizar esses resultados, na esteira do que ocorre no ambiente da LRF, há um estímulo ao consenso e à autocomposição entre as partes, o que traz à tona um complexo trabalho transacional por detrás com a implementação de possíveis soluções estruturadas que redimensionem a dívida do clube à sua capacidade financeira, e ao mesmo tempo permitam o desenvolvimento de uma atividade que proporcione lucro aos acionistas/investidores.
Nesse ambiente, é essencial que as partes cheguem num alinhamento prévio e amplo sobre as premissas básicas do negócio, que podem inclusive envolver temas sensíveis como percentuais de reinventimento mínimo na SAF, eventuais limites à distribuição de dividendos e outros limites ponderáveis que atendam aos anseios do clube, dos torcedores e investidores. Afinal, já restou demonstrado que, nesse jogo, o consenso é mais valioso que qualquer radicalidade.
Bibliografia
CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de. Coordenador. Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol. 1ª Ed. São Paulo: Quartier Latin, 2021.
PEDRO, Paulo Roberto Bastos. A Recuperação dos Clubes de Futebol. In Lei de Recuperação e Falência. Coordenação Paulo Furtado de Oliveira Filho. 1ª Ed. São Paulo: Foco, 2022.
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1 Art. 1º, §2º, da Lei da SAF.
2 A questão é que o artigo 21 da Lei da SAF diz que o credor poderá anuir, "a seu critério exclusivo", a deságio sobre o valor do débito, o que pode levar à interpretação de que a aprovação do deságio é sempre individual, não havendo meio de sujeitar o credor dissidente.
13/07/2022