A deterioração do cenário econômico levou as principais companhias abertas brasileiras a registrar perdas de R$ 7,34 bilhões devido a inadimplência de seus clientes em 2015, cifra 38% maior que a contabilizada em 2014, quando havia sido de R$ 5,31 bilhões. O avanço superou com folga o crescimento das vendas desse mesmo conjunto de empresas em igual período de comparação, de 13%, levemente acima da inflação.
O dado foi apurado em levantamento feito pelo Valor com base nos balanços de 62 empresas não financeiras que integram o Índice Bovespa (Ibovespa) ou o IbrX e que detalharam as despesas com provisões para crédito de liquidação duvidosa (PCLD) em notas explicativas. A Petrobras foi excluída da base para não distorcer os dados já que, sozinha, registrou perda de R$ 4,66 bilhões com recebíveis do setor elétrico em 2015.
O aumento na adição líquida de despesa de PCDL (ou seja, constituição de provisões, menos reversões por cobrança de atrasados) foi bem disperso entre os setores e pôde ser identificado tanto em companhias de consumo, tradicionalmente mais expostas a inadimplência, como naquelas que têm outras empresas como clientes (B2B), e que não costumam sofrer com atraso de pagamentos.
A mediana dos índices de variação de despesa de PCLD da amostra pesquisada apontou para uma alta de 36%. Isso significa que metade das empresas teve crescimento de perda com inadimplência acima desse índice e a outra metade, abaixo.
O volume de créditos vencidos dentro das contas a receber de clientes desse conjunto de companhias cresceu 24% na comparação anual, para R$ 31,79 bilhões. Já a mediana da fatia de carteira vencida sobre o contas a receber total subiu de 14,1% para 19,6%.
Para o diretor sênior de empresas da agência de classificação de risco Fitch, Ricardo Carvalho, o cenário de aumento da inadimplência reflete a grave crise econômica e adiciona instabilidade a um momento já difícil para as companhias, que têm de lidar com receitas menores e um alto custo de financiamento. Ele diz que, além de sofrer com redução na demanda, as empresas ainda têm de encarar que algumas vendas feitas não se transformem em entrada de dinheiro em uma composição de fatores que deixam seus fluxos de caixa ainda mais apertados (ver mais em Fitch prevê pior ano para avaliação de empresas brasileiras).
30 das 62 empresas pesquisadas tiveram redução do índice de provisões para cobrir valores vencidos
Os especialistas destacam que o volume de provisões constituídas deve aumentar ainda mais nos próximos trimestres, já que a economia não dá sinais de recuperação - pelo contrário, as projeções indicam retração adicional de 4% do PIB este ano - e pelo fato de boa parte das empresas adotar como prática o reconhecimento desse tipo de despesa após 90 ou 180 dias de atraso nos pagamentos. "A figura tende a piorar até que normalize a situação econômica", diz Carvalho.
Por enquanto, a constituição de provisões adicionais foi suficiente, no conjunto, para que o colchão reservado para cobrir perdas por inadimplência tenha se mantido proporcionalmente estável de 2014 para o ano passado. O estoque de PCLD das empresas do levantamento era de R$ 15,66 bilhões no fim de 2015, equivalente a 49% dos créditos vencidos na data. Um ano antes, quando o saldo de provisões era R$ 13,08 bilhões, essa relação estava em 51%. Isso, porém, não é verdade para todas elas: 30 das 62 empresas pesquisadas tiveram redução desse índice.
Esse movimento é percebido no setor elétrico, por exemplo. A Eletropaulo mais do que dobrou a adição líquida de provisões no ano passado e, ainda assim, reduziu a cobertura de 54% para 37%. Isso porque o saldo de vencidos totais avançou 108%, para R$ 764 milhões. A Copel, por sua vez, quadruplicou o volume líquido de provisão constituída entre 2014 e 2015, ao mesmo tempo em que viu seu total de créditos vencidos crescer 145%, somando R$ 762 milhões. O índice de cobertura caiu de 51% para 45%. A CPFL, ao mesmo tempo, sofreu com crescimento de 72% no volume de créditos vencidos, para R$ 829 milhões e registrou R$ 127 milhões em perdas com provisões para se proteger, valor 52% superior àquele visto em 2014. Ainda assim, o índice de cobertura caiu de 29% para 21%.
Questionada sobre o comportamento dos créditos vencidos e redução da cobertura, a CPFL disse reconhecer que o atual cenário econômico e as alterações recentes nas tarifas de energia podem influenciar o nível de inadimplência a afirma que vem utilizando ações adicionais de cobrança e negociação, "incluindo aumento significativo no número de suspensão do fornecimento de energia por inadimplência".
Do mesmo setor, a Cemig atribuiu a alta de 36,7% na despesa de PCDL ao aumento médio de 38% nas contas de energia em 2015 - ainda que a receita total da companhia, que inclui o segmento de geração e transmissão, tenha crescimento menos, 9%. Ainda segundo estatal mineira, a redução do nível de cobertura do total de créditos vencidos de 90% para 68% se deve ao fato de a empresa não ser obrigada a constituir provisões para débitos vencidos até 90 dias.
No varejo, o Grupo Pão de Açúcar (GPA) reportou queda de 80% para 50% na relação entre o saldo de provisões e os créditos vencidos. A empresa aumentou os gastos com PCLD em 7% em 2015, totalizando perda de R$ 552 milhões em 2015, enquanto o saldo de vencidos cresceu 77%, somando R$ 770 milhões em dezembro.
A Embraer é um caso de companhia que sofre desde 2014 com atrasos de pagamentos do governo federal
De acordo com o sócio líder de auditoria da Grant Thornton no Brasil, José Domingos, com a adoção do padrão contábil internacional IFRS no Brasil a constituição de provisões passou a depender essencialmente do julgamento feito pela empresa sobre as chances de recebimento, embora haja questões objetivas que devam ser observadas para embasar a decisão, como situação da indústria, quebras de contrato, comportamento de outros devedores em situação semelhante e também eventuais atrasos, "que são uma evidência muito contundente de risco".
Segundo ele, embora muitas empresas tenham por prática constituir provisões a partir de 90 ou 180 dias de atraso, isso não as desobriga de analisar a carteira como um todo. "Um cliente pode não ter atrasado, mas haver um risco de que ele peça recuperação judicial ou mesmo falência. E o auditor tem que desafiar o julgamento", afirma.
Por outro lado, há também o caso de pagamentos que estão vencidos, mas que contam com garantia. "Isso é muito comum no segmento de incorporação imobiliária, em que a empresa entende que vai recuperar o crédito já que há a alienação fiduciária do imóvel", diz Domingos.
O setor público também não tem contribuído para o contas a receber das empresas. A Petrobras deixa claro que a perda bilionária que foi contabilizada nos últimos dois anos se deve ao não pagamento de recebíveis por parte de distribuidoras de energia da região Norte que não receberam repasses do governo federal. A Embraer é outra que sofre desde 2014 com atrasos de pagamentos do governo federal, embora não revele em notas explicativas se o salto das adições líquidas de provisões, de R$ 2 milhões para R$ 40 milhões entre 2014 e 2015, se deve à inadimplência da União.
No setor de proteína animal, que em 2014 não sofreu com inadimplência, os saldos atrasados deram um salto em 2015. O estoque de créditos vencidos subiu 70% na JBS, 122% na BRF e 114% na Minerva, por exemplo.
Na JBS, a despesa de provisão foi pequena para o porte da empresa, mas chamou atenção salto de R$ 3 milhões para R$ 61 milhões de um ano para o outro. Segundo a companhia, o avanço dos saldos vencidos se deve a vendas maiores para o mercado externo, onde há mais atrasos devido a questões logísticas, mas com risco de perda baixo.
No caso da BRF o efeito foi mais significativo em termos de resultado, embora a empresa atribua o problema a um fator extraordinário. A companhia informou que o avanço na adição líquida de provisões, de R$ 34 milhões em 2014 para R$ 236 milhões em 2015, se deveu ao atraso de clientes do mercado externo, "em especial, oriundos da Venezuela".
Na Minerva, a alta do saldo vencido não se materializou em crescimento da despesa de PCLD em 2015, e a empresa disse que o crescimento dos débitos vencidos se deve à alta das vendas.
Para os especialistas, há, efetivamente, um aumento da inadimplência a ser enfrentado pelas empresas brasileiras, mas o crescimento de créditos vencidos também reflete um movimento de "empurrões" nos pagamentos. A avaliação é de que, em um cenário recessivo, mesmo empresas com liquidez podem atrasar a quitação de alguns débitos na virada do ano para reportar um caixa maior na data de fechamento do balanço.