As atividades empresariais contemporâneas atravessam fronteiras. Diante da corrente internacionalização e interdependência das relações globais, complexas estruturas societárias localizadas em diferentes jurisdições exercem influências econômicas e políticas sobre as relações comerciais e os países em que atuam.
O empresário que exerce atividade econômica nessas condições enfrenta uma série de dificuldades. A principal delas ocorre quando a empresa transnacional se torna incapaz de assegurar o cumprimento de suas obrigações, dando lugar à insolvência. No caso de um colapso, em não havendo uma sólida estrutura jurídica que regule essas relações, poderá tornar-se inviável qualquer esforço para recuperação de ativos dessas empresas, até mesmo pelo decurso de tempo despendido na resolução do processo.
O progressivo aumento do número de situações de insolvência transnacional, representadas em processos de falência e recuperação judicial, é retrato da expansão dos investimentos e do comércio internacional. Por outro lado, as legislações de alguns países — dentre eles o Brasil — não acompanharam essas transformações na mesma intensidade, dificultando o resgate de ativos financeiros, o restabelecimento de empresas e a proteção dos bens do devedor insolvente contra sua dissipação (fraude internacional).
Ordenamentos jurídicos ineficientes são injustos tanto ao credor quanto ao devedor. Não só isso. O próprio país, tido como ultrapassado em suas ferramentas jurídicas, acaba por sofrer perda de investimentos, pois a ineficiência da legislação e de sua aplicação importa em desestímulo ao investidor estrangeiro. Da mesma forma que o investidor busca adequada proteção ao capital que aplica em determinado território, ele também observa as condições de retorno de investimento, analisando, igualmente, riscos em caso de eventual insolvência.
Nesse sentido, a Uncitral (Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional), com a finalidade de instituir eficiência aos países para a resolução de casos de insolvência de empresas transnacionais, aprovou, em 15 de dezembro de 1997, a “Lei Modelo sobre Insolvência Transnacional”.
Por essa espécie de norma, busca-se a implantação de mecanismos de cooperação internacional entre os tribunais e demais autoridades competentes dos Estados, a fim de garantir maior segurança jurídica entre as relações empresariais globais, introduzir uma administração equitativa e eficiente das insolvências transnacionais, além de facilitar a reorganização de empresas em dificuldades financeiras.
Como se trata de uma lei modelo[1] (soft law), o texto é desprovido de efeitos vinculantes aos Estados signatários, diferente do que ocorre com as normas imperativas (jus cogens). Há, portanto, liberdade para os Estados decidirem se incorporam ou não o plano normativo.
Sobre a lei modelo per se, cabe traçar noções sobre seus elementos considerados essenciais: o acesso, o reconhecimento, as medidas deferíveis e a cooperação.
Primeiro, quanto ao acesso, a lei modelo garante aos representantes de processos de insolvência estrangeiros (pessoas ou órgãos) e aos credores o direito de socorrer aos tribunais de um Estado e de solicitar assistência. Permite-se o acesso direto aos tribunais do Estado onde tramita o processo principal de insolvência (artigo 9°), evitando, assim, a utilização de meios morosos como o envio de cargas rogatórias. Com o aperfeiçoamento desses mecanismos, atende-se ao princípio da razoável duração do processo e da eficaz administração do patrimônio da insolvência.
Haja vista que os países não dispunham de um ordenamento jurídico eficiente para preencher essa lacuna normativa, utilizavam de instrumentos como concessão de exequator (nos países adotantes da civil law) e de cortesia (pelos tribunais de common law), e de execução de mandatos advindos de outros Estados seguindo a sua própria legislação. Contudo, esses mecanismos não se mostraram suficientes para subsistência de uma cooperação internacional efetiva.
O segundo elemento pauta-se pela simplificação concedida pela lei modelo dos mecanismos de reconhecimento de processos estrangeiros. Os únicos requisitos são os listados no artigo 2° e no parágrafo 2º do artigo 15. Basicamente, exige-se que o processo estrangeiro seja coletivo com a finalidade de liquidar ou reorganizar empresas, sob o controle ou a supervisão de um tribunal (artigo 2°). É necessário também que a solicitação seja acompanhada de uma cópia certificada da abertura do processo estrangeiro e do nome do representante, além de um documento expedido pelo tribunal estrangeiro em que se acredite a existência do processo e a nomeação do representante (artigo 15, parágrafo 2º). Feito isso, o tribunal adotante da lei modelo reconhecerá o processo estrangeiro, baseado na permissão de presunção de autenticidade e validez do artigo 16[2].
Ainda, a lei modelo da Uncitral sobre insolvência transnacional adota algumas medidas (provisórias ou posteriores ao reconhecimento) com o propósito de assegurar um resultado eficiente e equitativo aos processos de insolvência. Permite-se ao tribunal conceder medidas desde o pedido de reconhecimento até sua resolução (artigo 19). O caráter discricionário das medidas permite que o tribunal as adapte ao caso examinado. O artigo 20 especifica as medidas cabíveis no processo principal, dispondo que todas as ações relacionadas aos bens, direitos, obrigações ou responsabilidades do devedor deverão ser suspensas (inciso a), bem como as execuções (inciso b) e a transmissão desses bens (inciso c). São medidas automáticas decorrentes do reconhecimento, que visam auxiliar a organização ou liquidação dos bens do devedor, bem como, quanto ao último, evitar a dissipação e o cometimento de fraudes.
Os artigos 25 a 27 (Capítulo IV) da lei modelo indicam um dever de cooperação internacional “na medida do possível” e facultam a comunicação direta entre os tribunais e representantes estrangeiros. A cooperação pode ser estabelecida através de solicitações dentro de um procedimento e, dada a dificuldade existente nos tribunais em se adaptar a esse instituto, o artigo 27 da lei modelo abre espaço para que ela seja posta em prática por qualquer meio apropriado (inciso f). Dentre eles, a nomeação de uma pessoa ou um órgão que atuará sob a orientação do tribunal (inciso a), a coordenação de administração e supervisão dos ativos e negócios do devedor (inciso c) e a aprovação ou aplicação pelos tribunais dos acordos relativos à coordenação dos processos (inciso d)[3].
Ao total, 44 Estados — de diferentes tradições jurídicas — já adotaram legislações baseadas na lei modelo da Uncitral sobre insolvência transnacional. Entre eles Austrália, Canadá, Chile, Colômbia[4], Estados Unidos[5], Japão, México, Nova Zelândia e Reino Unido[6].
Quanto ao Brasil, encontra-se hoje um limbo normativo em relação à matéria de insolvência transnacional. O país, além de não fazer parte do rol dos países adotantes da lei modelo da Uncitral, desconsidera em seu ordenamento as possíveis relações econômicas e societárias das empresas com outras entidades estrangeiras. Muito defasado da complexidade do panorama internacional sobre o tema, o país é incapaz de conferir efetividade à tutela do direito nos processos de insolvência que abrangem outras jurisdições.
No entanto, encontra-se em tramitação o Projeto de Lei 10.220/2018, que visa atualizar a Lei 11.101/2005 e finalmente incluir a lei modelo da Uncitral sobre insolvência transnacional (Capítulo VI-A, artigo 167-A e ss.). O PL 10.220/2018 foi apresentado ao Plenário da Câmara em 10 de maio e atualmente está aguardando análise da matéria em Comissão Especial.
Enquanto isso, ficamos à mercê da aplicação de dispositivos genéricos e da simpatia dos juízes. Tal atraso legislativo só não é mais grave porque os países adotantes não condicionam a aplicação da lei modelo à existência de reciprocidade. Que sorte a nossa!