Questão que tem se tornado polêmica nos domínios do Tribunal de Justiça paulista concerne aos limites dos poderes judiciais diante do pedido de desistência do recurso interposto contra decisão monocrática que homologou o plano apresentado por empresa recuperanda.
Observa-se que a doutrina e a jurisprudência consideram o objeto da recuperação judicial como um negócio jurídico, de natureza privada, celebrado entre a recuperanda e seus respectivos credores.
E, exatamente por esta razão, nada obsta a que, a teor do artigo 998 do Código de Processo Civil, a parte recorrente desista de eventual recurso que interpôs durante o processamento da recuperação.
Tenha-se presente que a desistência do recurso constitui um fenômeno extintivo do poder de recorrer, que inviabiliza a sua apreciação e subsequente julgamento. Tal atitude da parte recorrente, a rigor, implica o “desaparecimento” da impugnação; é como se jamais tivesse sido manifestada alguma irresignação contra o ato decisório recorrível!
Como bem esclarece Luís Guilherme Aidar Bondioli (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 20, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 2017, pág. 54), a desistência do recurso “consiste em ato unilateral e incondicional, que independe de aceitação de qualquer das partes (artigo 1.005 do CPC). Também não depende de homologação judicial, ao contrário da desistência da ação. Para o aperfeiçoamento da desistência, basta que a vontade de não mais levar adiante o recurso interposto seja externada com suficiência pelo recorrente, o que requer, entre outras coisas, capacidade postulatória, isto é, manifestação por meio de advogado regularmente constituído no processo e com poderes expressos para desistir (artigo 105 do CPC)... A desistência do recurso produz efeitos imediatos ex tunc, a partir de sua manifestação, e não comporta retratação”.
E, assim, constatada a desistência do recurso, a decisão que fora guerreada estabiliza-se de forma definitiva, projetando todos os seus efeitos no mundo jurídico.
Em significativo precedente a propósito desta questão, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial 1.408.973/SP, da relatoria do ministro João Carlos Noronha, assentou que: “A recuperação judicial visa a continuidade de empresa em crise econômico-financeira. Tem por fonte a função social da empresa, desempenhada pela atividade produtiva, buscando-se manter empregos, sem abalos à ordem econômica... Tal como é lícito a qualquer credor formular o pedido de falência, também o é desistir do pedido antes de decretada a quebra, ainda no campo da recuperação judicial, pois, enquanto perdura a recuperação judicial, os interesses prevalecentes são os privados, os interesses patrimoniais dos credores, embasados pelo interesse social de que a empresa se mantenha...”.
Importa ressaltar expressivo trecho constante de um dos votos vencedores, proferido nesse mesmo julgamento, pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, textual: “... Com efeito, não é hipótese de julgamento sob o rito de recurso repetitivo... Além disso, ainda que admitida a natureza pública normativa do instituto da recuperação judicial, isso por si só não determina a necessidade de relativização do direito de desistência da parte, sob pena de que toda a matéria de índole pública submetida a julgamento, envolvendo direito material ou instrumental, seja potencialmente invocada como justificativa para mitigar a redação evidente do artigo 501 [atual artigo 998] do Código de Processo Civil... Portanto, não se sustenta o argumento trazido pelo voto condutor de ‘que o interesse envolvido no julgamento do recurso não é apenas do agravante mas de toda a coletividade de credores da recuperanda’, exatamente porque constitui elemento fático incontestável dos autos o fato de que a busca da quebra da devedora era intenção isolada, que não representava o interesse dos demais credores...”.
Saliente-se que, em época mais recente, no início do corrente ano de 2018, esta mesma tese foi novamente suscitada perante a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, na Questão de Ordem nos Embargos de Divergência em Recurso Especial 1.159.042-PR, levantada e relatada pelo ministro Napoleão Nunes Maia Filho.
Acompanhando o voto do ministro relator, que deferia a desistência do recurso, sem quaisquer objeções, o ministro Og Fernandes declinou igualmente o seu entendimento, afinado com os demais integrantes da turma julgadora, asseverando, com todas as letras: “Entendo que tanto a jurisprudência (dominante) da Casa como a legislação processual de 2015 já sinalizaram direcionamentos à ampla aplicação do princípio da voluntariedade no âmbito dos recursos cíveis, autorizando à parte recorrente, desde que antes da proclamação do resultado, o direito de desistir do processamento do seu apelo. Desse modo, parece-me possível deferir-se o pleito de desistência formulado pela parte e, caso o Relator ou qualquer outro membro da Corte divise oportuno, que se afete o tema pela via especial repetitiva a este Órgão, a qual, em virtude do disposto no parágrafo único do artigo 998 do CPC/2015, estará imune aos efeitos da desistência recursal. Ficariam, portanto, preservados os interesses coletivos e a estabilização jurisprudencial”.
De acrescentar-se, outrossim, que, em inúmeras hipóteses análogas, embora com alguma resistência, ambas as Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo têm, de forma difusa, homologado pleitos de desistência de recurso interposto em processos de recuperação judicial, como se infere, por exemplo, do Agravo de Instrumento 2011618-83.2015.8.26.0000; Agravo de Instrumento 2271365-77.2015.8.26.0000; Embargos de Declaração 2267155-80.2015.8.26.0000/50001; Agravo de Instrumento 2068459-98.2015.8.26.0000; Agravo de Instrumento 2121854-39.2014.8.26.0000.
Destaque-se, por oportuno, um julgado em senso contrário, ou seja, que deixou de referendar pedido de desistência de recurso na esfera da recuperação judicial, proferido pela 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, ao argumento de que o interesse dos credores desponta coletivo, e que, hoje, é objeto do Agravo em Recurso Especial 1.077.314-SP.
No entanto, neste caso, o parecer da Procuradoria da República juntado aos autos, opina pelo provimento do recurso, firme no fundamento de que o interesse dos credores, na recuperação judicial, é de natureza estritamente privada, afirmando, ainda, que: “A Egrégia Corte local, ao julgar o agravo de instrumento, considerou incabível a pleiteada desistência recursal, haja vista o interesse de toda coletividade de credores da recuperanda. Trata-se aqui de direito eminentemente privado, onde prepondera a autonomia da vontade. Nesse sentido, colhem-se os fundamentos do voto proferido pelo eminente ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, no REsp. 1.408.973-SP. Com efeito, o artigo 501 do CPC/73 [atual artigo 998 do CPC/2015] permite à parte recorrente desistir do recurso a qualquer tempo e a jurisprudência desse Egrégio STJ, em interpretação sistemática desse dispositivo legal, conclui que o pedido deve ser deferido quando formulado antes da conclusão do julgamento”.
Concluo, pois, registrando que a ingerência dos tribunais na esfera da vontade das partes contraria princípios básicos do direito das obrigações, ao sobrepor descabida presunção — mera presunção — de conluio ao interesse da maioria dos credores, que manifestaram concordância com o plano apresentado pela empresa recuperanda!
04/09/2018