Transições de governo provocam reflexões sobre quais são as mudanças necessárias para o país e como alcançar os consensos políticos para implementar tais reformas. Quando esse exercício é feito em relação ao ambiente de negócios no Brasil, a lista de mudanças é grande. Mas, encontrar um alinhamento político sobre elas pode ser difícil.
A necessidade de algumas reformas é óbvia e sua urgência evidente. A reforma tributária, por exemplo, já tarda algumas décadas, e embora haja clareza sobre a sua necessidade e propostas refletidas (ver o trabalho do Centro de Cidadania Fiscal), há imensa dificuldade para formação de um consenso em torno dos projetos em discussão. Por conta dessas divergências, o sistema tributário segue complexo, cheio de exceções, injusto e, por vezes, dando incentivos errados.
Outras reformas são menos óbvias, mas não menos importantes. Embora tenha recebido alguma atenção após a crise de 2008, a reorganização dos reguladores do mercado financeiro e de capitais que poderia assegurar um monitoramento mais efetivo do mercado e, consequentemente, maior estabilidade do sistema financeiro, permanece esquecida e carente de proposta. É provável que o atual desenho institucional do mercado financeiro e de capitais, embora comprovadamente falho, prossiga intocado até que uma nova crise volte a apontar suas lacunas. Apesar da importância, o tema é tão distante das demandas populares que encontra pouco ou nenhum eco no ambiente político. Sobre o assunto, Marcelo Trindade escreveu neste jornal em 7/1/2016.
O projeto em discussão não resolve os problemas concretos enfrentados por empresários, empresas e investidores
Além disso, as novas formas de financiamento exigem adequação dos tipos societários disponíveis no ordenamento jurídico brasileiro. A natureza dos investimentos que ocorrem por crowdfunding não se adequa nem às sociedades limitadas, nem às anônimas. As formalidades que cercam as limitadas exigem uma proximidade entre os sócios que não existe entre os investidores das plataformas de investimento coletivo e os empreendedores que buscam recursos nesses ambientes. As sociedades anônimas, por sua vez, são complexas e caras para as pequenas empresas que tipicamente se financiam por meio desses mecanismos. As poucas plataformas de financiamento coletivo existentes no Brasil fazem uma ginástica jurídica imensa, que implica riscos e custos, para estruturarem esses investimentos.
Essa ginástica não é menor nos investimentos anjo ou de capital semente. Diferentemente do que ocorre em outros países, esses investidores se valem de estruturas contratuais que evitam a entrada dos investidores no capital das investidas, uma vez que a frequente desconsideração da personalidade jurídica diante de demandas trabalhistas e tributárias representa um risco que esses investidores não estão dispostos a suportar.
Com tantas demandas que nascem de problemas reais, para os quais, muitas vezes, não há sequer propostas, muito menos consenso, causa estranheza a fácil trajetória seguida pelo Projeto de Lei nº 1.572, de 2011, que institui um código comercial.
O projeto de código comercial está prestes a concluir mais uma etapa. O relatório do deputado Paes Landim será levado a votação na comissão especial formada para analisá-lo, que deve aprová-lo sem maiores embates. O projeto tem conseguido consenso político. Apesar disso, causa imensa controvérsia entre especialistas em direito comercial.
O projeto em discussão não nasce ou resolve qualquer dos problemas concretos diariamente enfrentados por empresários, empresas ou investidores. Ao contrário, de acordo com seus autores, o projeto teria origem na necessidade de um empoderamento do direito comercial.
Para eles, o fato de o Brasil ter revogado quase que inteiramente o código comercial em 2003 teria tirado da matéria a importância que ela merece. Com isso, o direito comercial seria menos estudado, menos ensinado e o nível de conhecimento dos profissionais que lidam com ele, como juízes e advogados, estaria se deteriorando.
Por conta da firme oposição de grandes nomes do direito comercial que, em geral, são contratados para defender os interesses de grandes empresas, o debate público sobre o projeto foi muitas vezes interpretado como uma guerra entre as grandes empresas e os pequenos empresários, como se o conteúdo do projeto fosse bom para os pequenos e ruim para os grandes.
Esta interpretação está errada. Obviamente juristas renomados e grandes companhias têm a capacidade, inclusive econômica, de se antecipar às mudanças legislativas, tentar influenciá-las e não fazem isso de maneira altruísta. Mas, as propostas em discussão também não atendem aos anseios dos pequenos empresários. Ocorre que, no caso deles, a capacidade de se organizar para combater essas mudanças é menor.
A razão de tamanha oposição é que as propostas do projeto são, em geral, ruins e de baixa qualidade técnica, além de se sobreporem a matérias já reguladas por leis específicas, como a Lei das S.A. e Falências e os Códigos Civil e de Processo Civil, cujos precedentes são consolidados ou estão em processo de consolidação. A consolidação de uma lei e suas interpretações é, em geral, positiva, na medida em que confere uma certa previsibilidade sobre um assunto e mais previsibilidade significa menos risco.
Sob o pretexto de reestabelecer princípios eliminados quando da revogação do código comercial, o projeto lança mão de uma série de conceitos com conteúdo abstrato, cuja determinação somente se dará por meio de discussões das controvérsias concretas perante o judiciário. Controvérsias jurídicas são interessantes para os advogados que, por dever de ofício, tem um certo amor pelo embate judicial. No entanto, elas não são boas para os empresários e investidores que arcam com os custos dessas discussões. Por isso, o projeto do código comercial não é bom nem para pequenas, nem para grandes empresas.
Luciana Dias é advogada, ex-diretora da CVM, mestre e doutora em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo e mestre pela Universidade de Stanford.