Este artigo inaugura uma série de cinco ensaios sobre projeto de lei elaborado pelo Grupo de Estudos do Ministério da Fazenda que pretende a alteração da Lei 11.101/05 (LRF) visando a sua modernização e a superação de entraves existentes na atual redação.
O PL foi recentemente disponibilizado (novembro de 2017) e ainda não recebeu um número de tramitação no Congresso Nacional. No entanto, deve ter prioridade na tramitação e merece nossa atenção para o que está sendo proposto e sobre as eventuais emendas que serão apresentadas nas casas legislativas.
A primeira alteração proposta pelo PL é o acréscimo do art. 2ºA à redação da Lei 11.101/05. O dispositivo traz de forma bem didática quais são os objetivos almejados com os procedimentos de recuperação judicial, falência e recuperação extrajudicial.
Foram relacionados os seguintes objetivos:
I – preservar e otimizar a utilização produtiva dos bens, dos ativos e dos recursos produtivos da empresa, incluídos aqueles considerados intangíveis;
II – viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira de devedor viável, a fim de permitir a preservação da fonte produtora, do emprego, dos trabalhadores e dos direitos dos credores;
III – fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere dos empreendedor falido à atividade econômica;
IV – permitir a liquidação célere das empresas inviáveis com vistas à realocação eficiente de recursos na economia; e
V – preservar e estimular o mercado de crédito atual e futuro.
Com “exceção” do inciso III, parte final, relativa ao retorno célere do falido ao mercado, nenhum dos demais objetivos apresentados no PL é novidade. Os demais, de forma mais direta, já são objetivos explícitos e implícitos dos procedimentos previstos na atual legislação e consagrados pela doutrina especializada.
Assim, de antemão, não faria qualquer sentido o acréscimo destes dispositivos na legislação, pois não alteram de qualquer modo os atuais objetivos dos procedimentos de recuperação e falência de empresa. Até a necessidade de se contemplar “o retorno célere do falido ao mercado” já era defendido com vigor pela doutrina especializada e estava intrínseco na atual redação.
A preservação e otimização dos ativos já está devidamente estampada na lei. Do mesmo modo, o objetivo de alcançar a superação da crise das empresas viáveis e a liquidação célere das empresas inviáveis, sem prejuízo do crédito, essencial ao sistema como um todo.
Portanto, a única justificativa para a inserção dos referidos objetivos na legislação é a finalidade didática, instruir e reforçar os objetivos já existentes da recuperação de empresas e da falência. Talvez com isso, o PL queira superar as dificuldades que o público em geral e os operadores do direito não especializados na matéria têm para compreender as razões da intervenção do Estado nas crises empresariais.
De fato, é inegável a incompreensão geral sobre o tema, inclusive por juízes e advogados. Tanto a recuperação judicial como a falência visa administrar interesses conflitantes e concorrentes para alcançar o resultado coletivo mais satisfatório possível dentro de um contexto adverso de crise.
Alguns direitos na conjuntura da empresa em crise receberam da legislação primazia sobre os demais. Por isso é que se admite que direitos creditórios e de propriedade dos credores sejam parcialmente relegados para alcançar um objetivo maior que é a preservação da empresa (atividade) em recuperação judicial ou dos ativos da falida. Naturalmente, isso acarreta resistência e incompreensão daqueles prejudicados.
Por isso é possível impor a suspensão da cobrança de uma dívida vencida ou a retenção de um bem de terceiro se isto viabilizar a recuperação da empresa ou o interesse geral dos credores da falida.
Para que isso seja possível é de fundamental importância o respeito aos procedimentos próprios da recuperação judicial e da falência, em muitos casos conflitantes com os ritos processuais trabalhistas, fiscais e cíveis que regem os procedimentos individuais de cada credor.
São recorrentes os casos em que não é obedecido o procedimento recuperacional ou falimentar universal, pois alguns juízos, desatentos aos objetivos dos procedimentos, aplicam o rito que lhe são próprios na condução do processo do credor individual e que não mais deveria prevalecer tendo em conta o interesse coletivo dos demais credores e da coletividade na recuperação judicial e falência.
Por isso o PL parece querer reforçar que o objetivo da falência é maior que o interesse individual de cada credor e que é importante priorizar a utilização proveitosa dos bens pertencentes à massa falida, pois assim estará contribuindo com o interesse geral dos credores e com a coletividade em geral.
Se otimizada a utilização desses bens, será possível que outro empresário saudável pague mais por aqueles ativos e dê a eles a função social perdida com a falência.
No mesmo espírito é reforçada a necessidade de viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira de devedor viável. As razões da crise podem ser as mais variadas, inclusive alheias à competência e eficiência do empresário, por isso é necessário um mecanismo que preserve a atividade empresarial e todos os seus benefícios (empregos, arrecadação, concorrência e etc.).
Para que isso ocorra na esfera judicial, com segurança jurídica e eficiência, a celeridade é essencial, pois a depreciação dos ativos de uma empresa é muito acelerada e o mercado, por sua dinâmica, não comporta morosidade e excesso de burocracia.
Por outro lado, a recuperação judicial e a falência não podem ser utilizadas como subterfúgio para o mero calote ou para insegurança do crédito. Assim, o ponto de equilíbrio entre os benefícios da recuperação judicial e o direito de crédito e de propriedade deve ser perseguido constantemente. A segurança jurídica é essencial e por isso fala-se em preservação e estímulo ao mercado de crédito, pois ele é essencial inclusive para viabilizar a recuperação judicial.
A recuperação judicial e a falência, como mecanismos de regulação do mercado, deveriam, por si só, serem instrumentos de fomento ao empreendedorismo. Para aquele que quer empreender é importante saber que há um mecanismo que pode viabilizar a superação de uma eventual crise e que pode se socorrer a autofalência caso seu negócio se mostre inviável.
O reconhecimento do próprio empresário de que não há mais viabilidade e de que não conseguirá assumir o pagamento de todas as dívidas é um ato de boa-fé e deveria ser visto com um olhar mais positivo, o que não ocorre hoje. Se for utilizado para liquidar o que for possível e assim permitir o retorno daquele empreendedor ao mercado, a Lei terá atingindo um de seus objetivos, tirando a pecha de desonesto do empresário falido.
Da mesma forma, o pedido de falência como instrumento de cobrança e de recebimento do crédito em concurso é instrumento muito útil ao empreendedor credor. Assim, a inserção do objetivo de fomento ao empreendedorismo está em linha com as finalidades da Lei 11.101/05, mas o destaque dado pelo PL deixa ainda mais claro que o falido tem o direito de regressar ao mercado, mesmo após a falência, pois, na maioria das vezes, a quebra não é dolosa com fim de prejudicar terceiros.
Se este for o objetivo, reforçar didaticamente que os objetivos já consagrados da recuperação de empresas e falência, a alteração proposta é muito bem vinda e deve ser acatada reforma da Lei.
01/03/2018