O Supremo Tribunal Federal (STF) deu, recentemente, um passo decisivo para tornar efetivos e seguros os modernos instrumentos de recuperação judicial de empresas previstos na Lei nº 11.101, de 2005. A primeira decisão diz respeito à constitucionalidade de alguns dispositivos centrais da lei. O PDT havia proposto uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) para a supressão de dois artigos da lei - um deles o que retira a preferência de recebimento dada aos créditos trabalhistas naquilo que ultrapassarem 150 salários mínimos.
Sustentou-se que a limitação seria contrária ao princípio da dignidade da pessoa humana. O outro, mais relevante, referia-se ao dispositivo da lei que estabelece que as unidades produtivas alienadas no curso de um processo de recuperação judicial não carregam obrigações trabalhistas - ou, mais tecnicamente, que não há sucessão. Argumentou-se que a disposição também violaria os direitos adquiridos dos trabalhadores - ficariam sem receber seus créditos caso o valor resultante da venda da unidade produtiva não fosse suficiente para honrar todos eles.
O Supremo rejeitou ambos os pedidos e seus respectivos fundamentos. A limitação da preferência dada aos créditos trabalhistas parece realmente razoável. Preferência significa, grosso modo, que o trabalhador vai receber antes de outros credores. A precedência se justifica sob o argumento de que essas verbas normalmente têm caráter alimentar, isso é, prestam-se a assegurar condições mínimas de sobrevivência digna ao trabalhador - daí o pedido fundado no princípio da dignidade humana. Mas, de fato, a prioridade para esses créditos deve ser limitada pelo escopo: assegurar condições dignas de sobrevivência. Ultrapassado o limite - e 150 salários mínimos parece um parâmetro razoável - não deve haver diferença de tratamento entre os créditos de um trabalhador e, por exemplo, de um fornecedor, que também mantém trabalhadores que necessitam sobreviver com dignidade e dependem dos salários. Acertou o Supremo.
A segunda parte da decisão é a mais relevante e dela dependia a eficiência do arcabouço da legislação. A ideia central da lei é a de que, na maior medida possível, pode-se quebrar o empresário em razão dos débitos vencidos e não pagos, mantendo-se viva a empresa. A assim chamada "venda da unidade produtiva" do devedor endividado serve para levantar dinheiro para o pagamento dos credores, permitindo que aquela atividade, geradora de empregos, de impostos etc., seja continuada por outros. Obviamente, terceiros interessados só surgirão se os débitos do antigo proprietário não contaminarem a nova operação da empresa - especialmente os débitos trabalhistas. Se o interessado na continuação das atividades produtivas herdar tais débitos, desistirá do negócio. Ao considerar constitucional o princípio, o Supremo promoveu os objetivos que inspiraram a lei: a proteção e a promoção da atividade produtiva independentemente de um eventual insucesso do empresário que a comandava.
A outra decisão do Supremo diz respeito à competência para decidir sobre o destino dos recursos e bens das empresas submetidas ao regime da recuperação judicial. Para simplificar a discussão, o problema central residia em saber se outros juízes - especialmente os trabalhistas - poderiam ou não determinar a efetivação de medidas agressivas sobre os recursos e bens, como penhoras, arrestos e sequestros.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), confirmando e consolidando uma decisão do juiz Luiz Roberto Ayoub, responsável pela condução da recuperação judicial da Varig, havia decidido que somente o juiz da recuperação judicial poderia decidir sobre os bens. Entenda-se: de acordo com a decisão do STJ, cabe aos juízes trabalhistas decidir sobre os direitos dos trabalhadores das empresas em recuperação judicial, mas eles não podem executar as sentenças porque a implementação cabe ao juiz da recuperação, responsável pela tarefa de organizar um concurso de credores. Algumas partes inconformadas com a orientação levaram a causa ao Supremo. E o Supremo manteve a decisão do STJ.
Mais uma vez agiu certo o Supremo. Para que seja minimamente possível efetivar a recuperação judicial é imperativo que um órgão tenha controle sobre os pagamentos feitos na forma aprovada pelos credores, inclusive os trabalhistas, no chamado plano de recuperação judicial - é o que se usa chamar, já há muito tempo, de juízo universal. A permissão para que qualquer órgão judicial pudesse executar os ativos da empresa tornaria o sistema caótico e impossível de ser administrado. A proteção aos trabalhadores se dá por meio de outros expedientes, como a preferência no recebimento de créditos.
As decisões proferidas pelo Supremo convergem para a manutenção do sistema de recuperação judicial como um todo, pois a supressão de alguns de seus sustentáculos impediria a aplicação da lei. No período de incerteza econômica que atravessamos, é extremamente importante que o Poder Judiciário seja capaz de aplicar as leis de modo a gerar um ambiente de segurança jurídica, notadamente as leis que tratam de assuntos sensíveis para a economia. O sistema jurídico e o sistema judiciário não podem fazer justiça sem garantir a segurança que vem do cumprimento das leis. E não se trata apenas de estabelecer segurança jurídica, mas sobretudo de assegurar que a opção do legislador pela preservação da atividade econômica prevaleça sobre interesses individuais ou de classe.
Já se disse que a evolução dos instrumentos jurídicos se faz com luzes e sombras, como quase tudo na vida. O Supremo teve luz e fortaleceu a segurança jurídica na aplicação daquele que é hoje o principal instrumento de recuperação judicial de empresas em dificuldades.
Autor: Flavio Galdino e Bernardo Carneiro
Fonte: Valor econômico (06/07/2009)