A 4ª Câmara Cível do Tribunal Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), ao julgar o Agravo de Instrumento nº 2005.002.22516, decidiu, pela unanimidade dos seus integrantes, que há uma "flagrante incompatibilidade entre a regra do parágrafo 5º do artigo 37 da nova Lei de Falências e Recuperação Judicial - a Lei nº 11.101, de 2005 - e o dispositivo constitucional do artigo 8º, inciso III, visto que restringe a atuação do sindicato, fazendo-o representante apenas dos trabalhadores associados, quando a Carta Magna dá-lhe poderes para representar toda categoria, o que deve prevalecer". Para entender a controvérsia, é mister conhecer ambos os dispositivos e, para dirimi-la, é indispensável dominar a doutrina que trata da classificação das normas constitucionais em razão da sua eficácia.
Quanto à eficácia, as normas constitucionais classificam-se em normas de eficácia (1) plena, (2) contida ou relativa restringível e (3) limitada. Nesse caso, interessa-nos apenas as normas de eficácia contida, que são aquelas que podem ter a sua eficácia reduzida nos casos e na forma que a lei ordinária estabelecer. Quanto aos citados dispositivos, o parágrafo 5º do artigo 37 da nova Lei de Falências estabelece que "os sindicatos de trabalhadores poderão representar seus associados titulares de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidente de trabalho que não comparecerem, pessoalmente ou por procurador, à assembleia". Já o inciso III do artigo 8º da Constituição Federal prevê que "ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas".
Isso posto, indaga-se: são, de fato, incompatíveis o parágrafo 5º do artigo 37 da nova Lei de Falências e o inciso III do artigo 8º da Constituição? Ou, por ser o inciso III do artigo 8º da Constituição uma norma jurídica de eficácia contida, o legislador ordinário poderia limitar seu campo de aplicação através do parágrafo 5º do artigo 37 da nova Lei de Falências?
A simples interpretação literal do parágrafo 5º do artigo 37 da nova Lei de Falências deixa evidenciado que a representação dos trabalhadores pelos sindicatos de suas respectivas categorias nas ações de recuperação judicial se limita a seus associados e, ademais, somente se verificará em relação àqueles que não comparecerem pessoalmente ou por procurador à assembleia geral de credores, o que está em conformidade (1) com o princípio da autonomia privada e de associação, positivados no inciso XX do artigo 5º e no inciso V do artigo 8º da Constituição; e (2) com a norma constitucional de eficácia contida do inciso III do artigo 8º da Constituição, que pode sofrer limitações por lei ordinária.
Chegar-se-á a igual conclusão através da escorreita interpretação sistemática e finalista daqueles dispositivos, eis que o parágrafo 5º do artigo 37 da nova Lei de Falências apenas e tão somente visou definir o âmbito de aplicação do direito social de defesa, explicitado na norma constitucional de eficácia contida do inciso III do artigo 8º da Constituição, nos casos especialíssimos de empresas em estado de crise econômico-financeira em regime de recuperação judicial.
Foi, por certo, o que quis, expressamente, o legislador da nova Lei de Falências, como se verifica da Emenda nº 64 ao substitutivo ao Projeto de Lei Complementar nº 71, de 2003, da lavra do eminente senador Aloysio Mercadante, ao fazer constar, na exposição de motivos, por três vezes, a palavra associados, textualmente: "A fim de facilitar e estimular a participação dos trabalhadores nas assembleias gerais de credores, a Lei de Falências deve atender à reivindicação das centrais sindicais ouvidas nas audiências públicas, prevendo expressamente a possibilidade de representação pelos sindicatos de seus associados", "o sistema proposto prevê que os sindicatos representarão somente os associados ausentes à assembleia geral de credores, ou seja, basta que o trabalhador compareça a assembleia, ou nomeie procurador que compareça em seu nome, para que vote por si mesmo, sem representação do sindicato" e "que os sindicatos deverão apresentar a relação de seus associados que pretendem representar".
Por isso, admitir que o sindicato de trabalhadores representa toda a categoria nas assembleias gerais de credores, podendo contrair obrigações, reconhecer e renunciar a direitos e transigir em nome de pessoas que decidiram, de livre e espontânea vontade, a ele não se associar, (1) não é descobrir o verdadeiro espírito do parágrafo 5º do artigo 37 da nova Lei de Falências combinado com o inciso III do artigo 8º da Constituição, mas negar-lhes vigência; (2) não é privilegiar o sentido que melhor se adapta à ordem constitucional, mas encontrar o sentido que as regras não possuem; (3) é negar o princípio da autonomia da vontade; (4) é proclamar a inconstitucionalidade do parágrafo 5º do artigo 37 da nova Lei de Falências; (5) é tornar letra morta uma norma infraconstitucional, concebida e elaborada no Congresso Nacional por um senador da República que conhece como poucos o movimento sindical brasileiro e sabia o que estava fazendo, ao escrever, em uma exposição de motivos de poucas linhas, a palavra "associados" três seguidas vezes e reproduzi-la no parágrafo 5º do artigo 37 da nova Lei de Falências, para deixar patente que, na ação de recuperação judicial, os sindicatos só representam aqueles que a eles forem filiados; (6) é, enfim, interpretar parágrafo 5º do artigo 37 da nova Lei de Falências de forma absolutamente incompatível com o inciso III do artigo 8º da Constituição, eis que as normas de eficácia contida ou relativa restringível - como essa norma constitucional - podem ter sua eficácia reduzida na forma e para os fins e efeitos que a lei ordinária estabelecer.
Concluo, portanto, que, se, no caso de normas com várias significações possíveis, o juiz deve encontrar a significação que apresente conformidade com a Constituição, a norma do parágrafo 5º do artigo 37 da nova Lei de Falências se adequa e é perfeitamente compatível com a do inciso III do artigo 8º da Carta, apenas lhe reduzindo o campo de aplicação, por força da especificidade e relevância da matéria, que está longe de ser a simples e rotineira defesa de certa categoria em uma convenção coletiva de trabalho ou em uma ação coletiva como substituto processual, mas a participação no intrincado e complexo processo de recuperação judicial de empresas em estado de crise econômico-financeira.
Autor: Jorge Lobo
Fonte: Valor econômico (15/07/2009)