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Os bastidores do plano de recuperação judicial de uma gigante dos calçados

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A Passarela entrou em recuperação com dívidas de R$ 85 milhões e estruturou um plano robusto que garantiu a aprovação de 87% dos credores.
 

A recuperação judicial entrou na pauta de muitas empresas afetadas pelas sucessivas crises no país nos últimos anos. Mas, o processo que começa com a esperança de conseguir salvar os negócios poucas vezes é bem-sucedido. Segundo dados do relatório Doing Business, do Banco Mundial, apenas cerca de 13% das companhias brasileiras conseguem se recuperar.

O desafio, muitas vezes, começa logo no início: na construção de um plano robusto, que convença grande parte dos credores de que é possível sair do lamaçal. Nesse cenário, a empresa de calçados Passarela alcançou dados impressionantes. A tradicional varejista de Jundiaí, a cerca de 60 quilômetros de São Paulo, montou um plano que foi aprovado por 87% dos credores em novembro do ano passado.

“Não é algo comum. Tem de comemorar esse resultado porque ele mostra a credibilidade do plano apresentado. Os credores ficam mais tranquilos e a equipe interna segue seu trabalho mais motivada”, afirma o advogado João Nogueira, do Nogueira & Tognin Advogados Associados, que não esteve relacionado ao processo da Passarela.

Nesta reportagem, o Do Zero ao Topo — marca de empreendedorismo do InfoMoney — conta alguns detalhes exclusivos de como o processo de recuperação da empresa foi conduzido.

Fundada em 1981, a Passarela já ocupou o posto de gigante do setor de calçados. Também foi pioneira na venda online desses produtos em 2005. Mas, há seis anos, entrou numa crise financeira. No início de 2020, a situação se agravou com a pandemia de covid-19 e a empresa precisou fechar 10 das 25 lojas físicas no interior paulista. Em agosto daquele ano, a dívida com credores estava em R$ 85 milhões, quando a empresa homologou seu plano de recuperação judicial (RJ).

O pedido de RJ faz parte da estratégia adotada por Luis Tomasetti para tirar a empresa da crise. Tomasetti prestava consultoria para a empresa desde 2018 e, em janeiro de 2020, assumiu como CEO.

“Eu já vinha fazendo uma imersão em processos, indicadores, estrutura, custos etc. Tinha uma noção clara dos três níveis da empresa: estratégico, tático e operacional. Isso me deu segurança para assumir essa cadeira e fazer a reformulação”, explica Tomasetti. “Os bastidores de uma recuperação judicial são extremamente complexos. É preciso ter toda a equipe da empresa apoiando e é necessário ter transparência em todo o processo”, diz.

O primeiro passo é o planejamento

A possibilidade de RJ existe no Brasil desde 2005, quando foi aprovada a lei nº 11.101 (recentemente atualizada pela lei nº 14.112, de dezembro de 2020). O objetivo de uma RJ é evitar que uma empresa quebre. Ela traz a possibilidade de um acordo com todos os credores (desde colaboradores a fornecedores) realizado sob a supervisão da Justiça. Em outras palavras, pode-se dizer que a ideia da RJ é dar um fôlego para a empresa, a partir da suspensão temporária de cobranças.

Mas, ela precisa ter caixa para pagar as contas atuais. “A recuperação judicial não é para uma empresa que não consegue pagar as contas do dia a dia. Essa é uma estratégia para ser utilizada por aqueles negócios que estão com dívidas passadas sufocantes. É uma forma de ganhar um tempo maior para pagar os credores, permitindo a sobrevivência da empresa”, afirma o advogado João Nogueira. “Se a empresa não tiver caixa para quitar a dívida conforme o plano, o juiz vai decretar sua falência. Além disso, tem de garantir os pagamentos do dia a dia para não contrair mais dívidas”, diz.

As boas práticas para que uma RJ seja bem sucedida, portanto, começam pela elaboração de um plano capaz de garantir o cumprimento do acordo com os credores e a vida da empresa enquanto paga as dívidas do passado. Nogueira explica que é necessário saber se os clientes continuarão a comprar da empresa caso ela entre em RJ. Há multinacionais, por exemplo, que têm como regra não comprar de corporações nessa situação.

Garantia de fluxo de caixa

No caso da Passarela, os clientes não deixariam de adquirir seus produtos quando a RJ fosse aprovada, mas era preciso garantir a oferta a eles. E isso só seria possível com um acordo com os fornecedores. Eram eles, justamente, os principais credores da Passarela.

“Dos R$ 85 milhões da dívida, R$ 55 milhões eram credores de mercadoria, ou seja, nossos fornecedores. Por isso, fizemos um plano muito focado nesse grupo, analisando cada fornecedor, falando com ele do passado, mas olhando para o futuro de forma a garantir a entrega de produtos”, conta Tomasetti

O CEO da Passarela conta que a empresa criou linhas de fomento para esses credores. A primeira delas consistia no recebimento de produtos por consignação. Isto é, o fornecedor enviava o produto de forma consignada e, ao ser vendido, um percentual das vendas seria destinado para amortizar a dívida.

“Por exemplo, se vendo um calçado de R$ 100,00, tiro o custo da mercadoria, os impostos. Um percentual dos ganhos, vai para abater da dívida passada. Ou seja, quanto mais produto em consignação eu tenho, mais acelerado fica o processo de amortização da dívida”, diz Tomasetti.

Outra forma de gerar caixa, manter um fornecedor e diminuir a dívida com ele foi a negociação de um prazo maior para aqueles que não enviavam produtos consignados. A Passarela pediu de 90 a 120 dias para vender o que recebesse e, dentro desse prazo, pagar pelos produtos. Do mesmo modo que na consignação, ficou combinado que um percentual das vendas seria destinado para quitar as dívidas.

A terceira saída encontrada pela empresa foi transformar o e-commerce em um marketplace. Esse reposicionamento do modelo de negócio aconteceu em outubro do ano passado e o site de venda de calçados se transformou em um shopping de moda, onde é possível encontrar também roupas, acessórios e produtos de beleza. Hoje, o marketplace da Passarela tem 50 vendedores e a meta é dobrar esse número até dezembro. São mais de 32 mil produtos de 550 marcas, que já representam 50% das vendas digitais.

“Nós colocamos os fornecedores para vender dentro do nosso site. Com um percentual da comissão que cobramos para eles estarem ali, repassamos para diminuir a dívida”, diz Tomasetti. “Isso tem ajudado tanto a Passarela, quanto os fornecedores a venderem mais, pois aproveitam aproveitam o tráfego que a Passarela já tem, por ter um nome forte no mercado de varejo”, afirma.

Para a elaboração do plano, profissionais qualificados

A reestruturação da Passarela passou também pela troca de comando. Vanoil Pereira, fundador da empresa, deixou a presidência para Tomasetti e assumiu o comando do conselho. Outra mudança foi a adoção de um modelo mais horizontal com a diminuição do número de diretorias. “Eu diria que em dois anos fizemos uma transformação para um modelo de gestão totalmente novo, algo que, geralmente, as empresas levam de 10 a 15 anos para fazer”, diz Tomasetti.

Formado em engenharia de produção, Tomasetti vinha de uma experiência de sete anos como consultor de gestão, no Brasil e no exterior. Na bagagem, ele trazia atuações em processos de crise, redução de custos e negociações. Depois de assumir como CEO da Passarela e reduzir o número de lojas físicas, ele percebeu que a saída seria mesmo a RJ.

Para isso, buscou no mercado alguém especializado para auxiliá-lo. O escolhido foi o advogado Yuri Gallinari. “Um bom plano de RJ só é bem feito quando há um profissional competente por trás. Precisa ser alguém capaz de dizer se esse é mesmo o caminho a ser seguido ou se há outras alternativas”, explica o advogado João Nogueira. “Esse profissional precisa ainda ser alguém que aponte os pontos cegos, aqueles que a direção da empresa não consegue ver”, complementa.

O olho do dono

Nogueira observa que, mesmo que a consultoria e os profissionais chamados para auxiliar na montagem do plano de RJ sejam altamente especializados, o processo não pode ficar apenas nas mãos deles. “Quem mais conhece a empresa é o dono e as pessoas que estão no comando”, comenta. No caso da Passarela, a participação do fundador e as várias visitas feitas pelo CEO foram importantes para conseguir a aprovação dos credores. Foi o que aconteceu na negociação com a Via Marte, empresa do Rio Grande do Sul.

A dívida da Passarela com a Via Marte é de R$ 2,5 milhões. Antes da homologação da RJ, em agosto de 2020, a Passarela já vinha renegociando com esse credor há cerca de dois anos. O último acordo previa o pagamento em dez parcelas, algo que vinha sendo cumprido.

Eduardo Wingert, gerente comercial da Via Marte, confessa que foi um baque receber a notícia de que a Passarela havia entrado com pedido de recuperação judicial porque, com isso, a quitação da dívida seria mais lenta. Pela RJ aprovada, a Via Marte começa a receber no ano que vem. “Mas votamos a favor porque entendemos que a empresa tem um nome forte e acreditamos que vai conseguir sair dessa situação”, afirma. “Além disso, um fator que contou muito foi ter conversado diretamente com o proprietário da empresa, que veio nos visitar. Ele não se escondeu, não sumiu”, conta Wingert.

A Via Marte é um dos credores que segue como fornecedora da Passarela e optou por repassar seus produtos com valores à vista até começar a receber as parcelas da dívida. Essa foi uma das exigências de Wingert para votar a favor da RJ. “Foi o que pedimos como forma de não aumentar o risco”, diz.

Mas o gerente comercial da Via Marte está otimista. “A equipe da Passarela veio nos mostrar os resultados desde que a RJ foi aprovada, os ajustes internos e vimos que está dando resultado. Há um bom giro das mercadorias e, dessa forma, vamos conseguir antecipar os recebíveis. Creio que não vamos levar 15 anos, como prevê o plano, para receber”, afirma.

Assim como Vanoil Pereira, Tomasetti também fez inúmeras reuniões com credores. Entre a homologação do pedido de RJ e a aprovação, em novembro passado, foi mais de um ano viagens e encontros. “Posso afirmar que fizemos juntamente com os credores. Com alguns, reuni-me cinco vezes. Queríamos ouvir e entender a necessidade de cada um”, diz Tomasetti. “Foi um trabalho de falar do passado, mas também de criar um caminho para o futuro. Acho que a transparência com que conduzimos o processo e envolvemos cada credor é que nos garantiu 87% de aprovação na votação do plano”, afirma.

O advogado João Nogueira lembra que um plano de RJ precisa de 50% mais um para ser aprovado. Mas afirma que o alto índice conseguido por uma empresa, como foi o caso da Passarela, é bastante positivo.

Transparência com os colaboradores

Assim como as boas práticas num processo de recuperação judicial passam por ser transparente com os credores externos, o mesmo vale para os colaboradores, sejam os que forem dispensados, sejam os que continuam na empresa. “Eu sempre digo que eles precisam ser tratados de forma diferenciada, afinal, eles trabalharam pela empresa. Quando entro para auxiliar num processo de RJ, recomendo que, se possível, a gestão das dívidas trabalhistas seja negociada antes mesmo de homologar o pedido”, afirma Nogueira.

Na Passarela, Tomasetti criou grupos de trabalho para engajar os colaboradores e explicar a cada um o que significava entrar em RJ. Ele mesmo visitou lojas para falar com colaboradores e criou canais para que todos pudessem recorrer a ele ou às equipes jurídica e técnica para entender o que estava se passando na empresa. “Buscamos humanizar o processo, tirar dúvidas olhando nos olhos das pessoas para que não houvesse insegurança”, diz Tomasetti.

O objetivo de uma recuperação judicial, que é permitir que uma empresa tome fôlego para se estruturar novamente, parece estar dando certo na Passarela. Em 2021, a empresa registrou um faturamento de R$ 52 milhões e deve chegar a R$ 70 milhões neste ano. O Ebitda que estava zerado em 2020, fechou em 2021 em 3%. “Nossa projeção, que é de cinco anos, é alcançar uma margem de Ebitda de 20%. Mas é bom ver que já estamos colhendo os frutos da reestruturação”, finaliza Tomasetti.


Foto: Luis Tomasetti, CEO da Passarela (Divulgação)

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