Qual a diferença das garantias fiduciárias para o patrimônio de afetação?
Onde estamos?
O número de pedidos de recuperação judicial tem sido expressivo, o que traduz mais um reflexo da crise econômica que afetou o país. Empresários e sociedades empresárias têm se valido da disciplina da Lei 11.101/2005, que regula a recuperação judicial, para tentar salvar suas atividades. As dificuldades financeiras dos devedores apresentam reflexo negativo para os trabalhadores, prestadores de serviço, fornecedores e para o mercado em geral. Todos querem saber como se proteger diante da falta de dinheiro do devedor e o que podem fazer para “não ficar para trás” na hora de receberem o que lhes é devido. Nesse cenário, muitas vezes os fornecedores, os trabalhadores e até mesmo o fisco recebem com surpresa a notícia de que há credores que não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial ou falência e que, portanto, podem cobrar o seu crédito pelas vias usuais: são, em grande parte dos casos, os credores fiduciários. As garantias fiduciárias são relativamente recentes no direito brasileiro e surgiram tendo como principal atrativo a proteção do credor em relação aos efeitos da falência do devedor. Mas esse regime diferenciado aplicável aos credores fiduciários tem ensejado controvérsias, alegando-se que tais garantias implicam privilégio excessivo que acaba por dificultar a recuperação da empresa.
O que são as garantias fiduciárias?
As garantias fiduciárias são aquelas em que o objeto da garantia (qualquer bem móvel ou imóvel, inclusive direitos, tais como casas, apartamentos, terrenos, ações, quotas, veículos automotores, créditos a receber) é transferido ao credor, que passa a ser o dono desse bem. O bem dado em garantia não precisa ser do próprio devedor, pode ser de um terceiro. A transmissão da titularidade ao credor ocorre em caráter fiduciário, porque tem por função garantir a dívida, e resolúvel, porque o bem volta para o patrimônio do garantidor assim que o credor for satisfeito.
Quais as vantagens das garantias fiduciárias?
A principal vantagem é a maior proteção do credor nas hipóteses de recuperação judicial ou falência do devedor ou do terceiro garantidor. Isso porque o objeto da garantia encontra-se no patrimônio do credor, sendo insuscetível de ataque pelos demais credores do devedor ou do terceiro garantidor. Os riscos de não recuperação do crédito, desse modo, restam diminuídos, o que facilita a concessão de empréstimo e permite que o devedor negocie condições contratuais mais vantajosas.
O que acontece com o credor fiduciário na recuperação judicial?
A Lei 11.101/2005, que trata do procedimento de recuperação judicial, em seu art. 49, § 3º, estabelece que o crédito com garantia fiduciária “não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva”. Prevê a mesma regra, contudo, a proibição “durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei” – isto é, de “180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação” (lapso temporal normalmente chamado de stay period) – de venda ou de retirada “do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial”.
Isso quer dizer que, se a garantia fiduciária tiver por objeto bem de capital e essencial à atividade empresarial, o credor, embora não perca a garantia e seu contrato continue preservado, deve aguardar o stay period para satisfazer o seu crédito.[1] Na prática, o stay period costuma ser prorrogado sucessivas vezes pelo juiz, encerrando-se somente após a votação do plano de recuperação.
O que é e qual a discussão hoje existente sobre a trava bancária?
Trava bancária é o expediente contratual por meio do qual as instituições financeiras executam sua garantia de cessão fiduciária de créditos. Significa a retenção pela instituição, até o montante que lhe é devido, da quantia depositada em conta proveniente do pagamento dos créditos cedidos em garantia fiduciária.
A grande discussão atual sobre o tema reside na extensão desse direito:
É possível a apropriação pelas instituições financeiras – especialmente no curso da recuperação judicial do devedor – da totalidade dos valores depositados em garantia fiduciária, como os contratos de financiamento costumam prever? Ou, ao contrário, deve haver limitação na execução da garantia fiduciária, de maneira a se restringir o montante que pode ser retido pelo credor, para que o devedor não fique privado de todo o capital e, com isso, possa continuar a exercer suas atividades econômicas e se reerguer financeiramente?
O tema tem sido objeto de decisões dissonantes: por exemplo, o TJRJ ora sustenta a possibilidade de liberação parcial dos valores retidos em razão das travas bancárias (agravos de instrumento nº. 0059541-03.2016.8.19.0000, 1ª Câmara Cível, e nº. 0015932-67.2016.8.19.0000, 8ª Câmara Cível), ora reconhece a possibilidade de a instituição financeira ficar com todos os valores retidos com as travas bancárias (v. agravos de instrumento nº. 0038015-14.2015.8.19.0000, 19ª Câmara Cível, e nº. 0023667-54.2016.8.19.0000, 22ª Câmara Cível). O STJ, por sua vez, atualmente tem preservado o mecanismo da trava bancária, entendendo que “os créditos garantidos por cessão fiduciária não se submetem ao plano de recuperação, tampouco a medidas restritivas impostas pelo juízo da recuperação” (AgInt no REsp 1.475.258, da 3ª Turma).
O mecanismo de trava bancária, a rigor, não se submete aos efeitos da recuperação judicial, por força do já aludido art. 49, § 3º, haja vista que os créditos, uma vez que se encontram cedidos ao credor, ainda que em caráter fiduciário, não mais integram o patrimônio do devedor.
Qual a diferença das garantias fiduciárias para o patrimônio de afetação?
O patrimônio de afetação consiste no conjunto de ativos destinados à realização de determinada atividade e que, por força de lei, ficam afetados a essa finalidade, sendo insuscetíveis de ataque por credores que não guardem pertinência com aludido escopo. Ao contrário das garantias fiduciárias, que podem, em alguma medida, sofrer o impacto do processo de recuperação judicial (caso recaiam sobre bem de capital essencial à atividade do devedor), o patrimônio de afetação não sofre qualquer efeito em caso de recuperação judicial ou falência do seu titular. Os bens que o integram se encontram protegidos e respondem apenas pelas dívidas a ele relacionadas.
Recentemente, o TJSP proferiu significativa decisão no Agravo de Instrumento nº. 2236772-85.2016.8.26.0000, no âmbito da recuperação judicial de importante incorporadora. No caso, a incorporadora, que atravessa crise financeira, incluiu no pedido de recuperação judicial diversas Sociedades de Propósito Específico (SPEs) com patrimônio de afetação. E pior: ainda pleiteou a “consolidação substancial”, que provoca efeitos análogos à desconsideração da autonomia patrimonial de cada sociedade, unificando-se o patrimônio de todas elas como se fossem uma só. A 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP decidiu, acertadamente, que as pessoas jurídicas com patrimônio de afetação devem ser excluídas da recuperação judicial. A decisão foi tecnicamente adequada, porque a inclusão das SPEs, no caso em discussão, esvaziaria o propósito do patrimônio de afetação na incorporação imobiliária. A conhecida falência da Encol, que deixou inúmeros adquirentes de unidades autônomas sem amparo, motivou a mudança legislativa que estabeleceu o patrimônio de afetação, instituto que tem por efeito primordial a blindagem de riscos como esse. A aludida decisão do TJSP, assim, protegeu não apenas os credores financeiros como também todos os consumidores, que, de outro modo, se veriam arrastados para o processo de recuperação judicial.
Para onde vamos?
O direito brasileiro busca tutelar a empresa em crise financeira, estabelecendo mecanismos que viabilizem seu soerguimento. A recuperação da empresa, contudo, não deve ser perseguida a qualquer preço, pois a relativização dos direitos dos credores tem sérios impactos no custo do crédito e, em termos mais amplos, para o desenvolvimento econômico do país. A orientação adotada pelo Judiciário tem implicações para o ambiente econômico como um todo, gerando maior percepção de risco e, por consequência, influenciando a disposição dos agentes financeiros para financiar atividades produtivas. Não se devem suprimir prerrogativas legais dos credores apenas por parecerem excessivas à luz da situação do devedor, sob pena de ruptura do delicado equilíbrio cuidadosamente arquitetado pelo legislador. A lei brasileira não apenas permite como regulamenta mecanismos para que os credores não se sujeitem aos percalços financeiros do devedor, como ocorre com as garantias fiduciárias. A supressão pura e simples dos efeitos dessas garantias desprestigia legítimos mecanismos de alocação de riscos postos pelo legislador à disposição dos credores, gerando insegurança jurídica. O Judiciário deve analisar eventual abusividade dos instrumentos utilizados pelo credor, mas o vetor dessa valoração não pode ser a recuperação do devedor como valor absoluto.
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[1] Como já decidiu o STJ (REsp nº. 1.263.500), o “bem de capital” é sempre um bem material utilizado na atividade empresarial da recuperanda, de maneira que “título de crédito é bem incorpóreo que não pode ser compreendido, sequer por interpretação extensiva, no conceito de ‘bem de capital’”.
21/09/2017