Não é nenhuma novidade que o Judiciário Brasileiro é um palco de insegurança jurídica. Qualquer um que atue ou analise de perto o Judiciário Brasileiro se depara com decisões manifestamente conflitantes entre si (o que, convenhamos, nada mais é do que o reflexo de um sistema que se acostumou a não seguir precedentes e a julgar casos idênticos conforme o livre convencimento do juiz e as suas próprias convicções sobre as provas produzidas no processo).
Tanto isso é verdade que ninguém se surpreende quando se depara com uma decisão judicial que viola, frontalmente, dispositivos de lei ou até entendimento consolidado dos Tribunais Superiores. Tampouco se incomoda com decisões judiciais que, quando analisadas de forma macro, podem gerar impactos socioeconômicos que extrapolam a esfera de atuação das próprias partes litigantes.
Muito embora essa violação à ordem jurídica brasileira não seja nenhuma novidade, ela tem se tornado quase que uma regra nos processos de Recuperação Judicial, em razão da equivocada aplicação do princípio da preservação da empresa, insculpido no artigo 47[1] da Lei 11.101/2005, por magistrados e administradores judiciais.
O nosso ordenamento jurídico impõe aos magistrados e aos administradores judiciais o dever de sanar ilegalidades e aplicar corretamente a lei, atuando como verdadeiros fiscais do processo de recuperação judicial. Ocorre que estes fiscais, muitas vezes imbuídos do nobre propósito de preservar uma empresa em difícil situação econômica, têm, ao contrário de sanar ilegalidades, decidido por perpetuá-las.
É o que se observou, por exemplo, no recente caso envolvendo a recuperação judicial do Grupo Bom Jesus[2]. Neste caso, as Recuperandas, sem qualquer justificativa apresentada no processo, listaram todos os credores de adiantamento de contrato de câmbio (ACC) como credores quirografários, a despeito do artigo 49, §4º[3] da Lei 11.101/2005 estabelecer, expressamente, que credores de ACC não se submetem aos efeitos da Recuperação Judicial (e são, portanto, credores extraconcursais).
Muito embora a manipulação da lista de credores pelas empresas Recuperandas não seja, também, nenhuma novidade, o que realmente torna esse processo emblemático é o fato de a administradora judicial ter decidido (após o recebimento de diversas impugnações apresentadas por credores de ACC) que o artigo 49 §4º da Lei 11.101/2005 seria inconstitucional (por violar a paridade entre os credores em um processo de recuperação judicial) e que, portanto, todos os credores detentores de ACC seriam credores quirografários.
Observem que a inclusão de credores detentores de ACC na Recuperação Judicial do Grupo Bom Jesus não decorreu de constatação de eventuais irregularidades formais ou legais nos documentos que embasam o referido crédito. Referida inclusão decorreu, simplesmente, de um entendimento pessoal da Ilma. Administradora Judicial, contrário à expressa previsão legal e à jurisprudência sedimentada dos tribunais superiores acerca do tema.
Situação semelhante ocorreu no processo de recuperação judicial envolvendo o Grupo Pinesso[4] e no caso envolvendo a Atc Associated Tobacco Company (Brasil) Ltda[5]. Isto porque, muito embora esteja previsto na lei (e esteja também consolidado perante os Tribunais Superiores) que credores detentores de alienação fiduciária de bens em garantia não se submetem ao processo de recuperação judicial (cf. artigo 49, §3º[6] da Lei 11.101/2005), os juízes e administradores judiciais encarregados de referidos processos decidiram que, em razão do elevado número de credores nessa situação, estes deveriam se submeter ao processo de recuperação judicial, pois a manutenção da extraconcursalidade traria riscos à continuidade e efetividade do processo judicial iniciado pelas recuperandas.
A mais recente criação jurisprudencial decorrente do princípio da preservação da empresa é a interpretação que vem sendo dada à parte final artigo do artigo 49, §3º, que trata da essencialidade dos bens. Muito embora a opção legislativa tenha sido a impossibilidade de retirada de bens essenciais das empresas em recuperação judicial, durante o prazo de 180 (cento e oitenta) dias (em que as empresas ainda estariam negociando a aprovação de seu plano), o fato é que credores são constantemente impedidos de executar bens que foram livremente dados em garantia, sem qualquer respeito ao prazo previsto na legislação, simplesmente porque referidos bens são considerados essenciais (sem qualquer laudo ou opinião técnica de terceiros que atestem referido fato).
O que é mais grave é que há importantes nomes no meio jurídico, caso do ex-desembargador Manoel Justino Bezerra, que defendem que todos os bens da empresa são essenciais, simplesmente porque foram adquiridos para o desenvolvimento de sua atividade empresarial[7]. Por mais argumentos que existam em prol desse entendimento, é evidente que se a interpretação jurisprudencial continuar caminhando no sentido de que bens essenciais não podem ser executados por credores e, se todos os bens das empresas forem essenciais, toda a execução promovida contra empresas em recuperação judicial tendem a ser extintas por falta de bens passíveis de penhora, o que nem de longe reflete a intenção do legislador quando criou a regra prevista no artigo 49, §3º da Lei 11.101/2005.
Outro precedente bastante emblemático, principalmente no setor agrícola, é aquele que determina que os penhores incidentes sobre a safra podem ser desconsiderados, renovando-se, automaticamente, referidos penhores para as safras subsequentes, enquanto durar o processo de Recuperação Judicial.
Muito embora as Recuperandas (e os próprios juízes que aceitam essa substituição) defendam que a renovação do penhor para a próxima safra não causa nenhum prejuízo aos credores (já que haveria, apenas, uma substituição de garantia), o fato é que a substituição que é realizada, mesmo contra a vontade do credor titular da garantia, de uma safra que hoje existe (e que, portanto, tem valor), pela garantia existente sobre uma safra que ainda não foi plantada e que, a depender do resultado do processo de recuperação judicial, poderá nem sequer existir.
Além disso, essa substituição é desacompanhada de qualquer formalidade inerente ao registro desse tipo de garantia, seja para a proteção do credor, seja para publicidade parente terceiros que negociam com as Recuperandas.
Essa observação é importante, na medida em que não apenas o artigo 50, §1º estabelece que “na alienação de bem objeto de garantia real, a supressão da garantia ou sua substituição somente serão admitidas mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia”, como também o artigo 83 estabelece que em um processo de falência, um credor é considerado “credor com garantia” até o limite do valor do bem que constitui a sua garantia.
Em outras palavras, o precedente citado acima, de uma única vez nega vigência ao artigo 50, §1º, como também coloca em risco a posição do credor em um futuro processo falimentar, nos termos do artigo 83, ambos da Lei 11.101/2005.
É importante deixar registrado que nunca houve a declaração de inconstitucionalidade dos arts. 49, §3º e §4° e 50, §1º da Lei 11.101/2005, pelos tribunais superiores, seja em controle difuso, seja em controle concentrado de constitucionalidade. E muito embora se reconheça que ninguém é obrigado a concordar com qualquer decisão judicial ou lei existente em nosso país, é evidente que compete ao judiciário manter o equilíbrio do ordenamento jurídico e, principalmente, zelar pela correta aplicação da lei.
O grande problema é que nos exemplos citados acima não houve nenhuma declaração de inconstitucionalidade precedida de devido processo legal. Houve, isto sim, uma violação consciente e confessa da lei por parte de juízes e administradores judiciais que apenas não concordam com a escolha legislativa.
É preciso que fique claro que a não aplicação da lei ou a interpretação de artigos de lei em completa dissonância com o seu real conteúdo e contra o desejo do legislador, em prol do princípio da preservação da empresa, em nada auxilia no processo de Recuperação Judicial e, o que é ainda mais grave, representa perigoso precedente para todo o sistema econômico brasileiro.
Nunca é demais lembrar que diversos ramos da economia brasileira dependem de investimentos que são realizados por instituições financeiras para o financiamento da atividade produtiva. Sem esse investimento, empresas, cooperativas, pequenos empresários e produtores rurais jamais conseguiriam realizar a sua atividade econômica e todo o sistema entraria em colapso.
Como é quase que intuitivo, é muito comum que determinados financiamentos (dado o seu volume ou risco envolvido na operação) apenas sejam obtidos mediante a concessão de garantias que incidem sobre determinados bens ou direitos de titularidade dos devedores.
É evidente que o financiamento apenas é concedido após uma criteriosa análise de crédito e a comparação dos riscos e benefícios daquela operação. É o resultado dessa equação que faz com que o acesso ao crédito se torne possível para muitas pessoas e empresas, que, não fosse pelas garantias prestadas, não teriam acesso a tal crédito. O resultado dessa equação também é um elemento determinante da taxa de juros do financiamento concedida.
As garantias outorgadas em qualquer operação de crédito é condição fundamental para a sua concessão, exatamente porque possibilitam a satisfação de seu crédito na hipótese do tomador do empréstimo se tornar incapaz de cumprir com suas obrigações financeiras, como infelizmente acontece nos inúmeros casos de Recuperação Judicial ajuizados no Brasil.
Ocorre que no exato momento em que os tomadores enfrentam uma crise econômica e ajuízam um processo de Recuperação Judicial para tentar negociar com todos os seus credores uma solução conjunta para essa situação, o Judiciário Brasileiro afasta a validade da garantia concedida em favor dos credores e permite que os devedores disponham dos bens que constituem a sua garantia.
Se esse tipo de garantia, apesar de válida e existente, está sendo desconsiderada pelo Judiciário em prol do “princípio da preservação da empresa”, sem qualquer participação dos credores que financiam a atividade econômica no Brasil, isso naturalmente levará todos os agentes financiadores a questionar a segurança jurídica de se investir no Brasil. Isso gera um aumento significativo do risco de crédito e coloca em xeque a própria viabilidade da atividade de financiamento e fomento nessa área.
A prevalecer essa tendência de se anular garantias ou afastar privilégios que constam expressamente da lei, em uma suposta aplicação do princípio da preservação da empresa, o prejuízo será não apenas dos credores que não puderam recuperar o seu crédito, mas para todas as pessoas e empresas que dependem do acesso ao crédito para continuar a realizar e expandir suas atividades negociais.
Isto porque, aquele credor que, por qualquer motivo ou por qualquer entendimento de um juiz ou tribunal, for impedido de executar a sua garantia ou perseguir livremente o seu crédito, não efetuará a mesma operação no futuro. E se a fizer, certamente cobrará muito mais caro por isso.
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[1] Art. 47: A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica
[2] processo nº 1000232-47.2016.8.11.0003, em trâmite perante a 4ª Vara Cível da Comarca de Rondonópolis – MT
[3]Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
(…)
§ 4º Não se sujeitará aos efeitos da recuperação judicial a importância a que se refere o inciso II do art. 86 desta Lei.
(…)
Art. 86. Proceder-se-á à restituição em dinheiro:
(…)
II – da importância entregue ao devedor, em moeda corrente nacional, decorrente de adiantamento a contrato de câmbio para exportação, na forma do art. 75, §§ 3o e 4o, da Lei no 4.728, de 14 de julho de 1965, desde que o prazo total da operação, inclusive eventuais prorrogações, não exceda o previsto nas normas específicas da autoridade competente
[4] processo nº 0823725-50.2015.8.12.0001, em trâmite perante a 1ª Vara Cível da Comarca de Campo Verde – MT
[5] processo nº 0003817-13.2015.8.21.0026, em trâmite perante a 3ª Vara Cível de Santa Cruz do Sul – RS
[6]Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
(…)
§ 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
[7] (JUSTINO, Manoel Bezerra Filho. Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Lei 11.101/2005. Comentada artigo por artigo. 9ª edição. Revista, atualizada e ampliada. Revista dos Tribunais)
09/05/2017