Há décadas o setor sucroenergético intercala períodos de bonança com os de borrasca. Porém, as crises dos anos 2000 e, sobretudo, a que hoje assola o setor estão trazendo mudanças estruturais que deverão alterar definitivamente a configuração do setor. O processo de consolidação que já levou ao desaparecimento de dezenas de usinas tenderá a continuar, agravado desta vez pela pior seca dos últimos 30 anos, pelas erráticas políticas governamentais, pelos efeitos nefastos dos níveis de endividamento do setor (inclusive em dólar) e por uma capacidade de moagem superior tanto à demanda prevista, quanto à própria produção de cana de açúcar.
A seca estende-se como nunca ao setor de crédito, uma vez que os tradicionais provedores de recursos públicos estão retraídos e os privados ainda mais reticentes: da torneira para capital de giro não sai nem um pingo. Isoladamente nenhum destes fatores deveria surpreender, pois já são todos velhos conhecidos do setor. Porém, o que assustou – e vem mudando a configuração do setor – é a sua concomitância, que serviu como catalisador para processos de fusões e aquisições, reestruturações e recuperações judiciais (RJ). E, como afirmei, não chegamos ao fim da linha: o processo continuará e uma nova onda de consolidações já está a caminho, com a aceleração de fusões e aquisições e com novos pedidos de RJ.
Reestruturação (“Turnaround”)
O setor sucroenergético neste caso assemelha-se a outros que já passaram por essa transformação, a saber; têxtil; calçadista; autopeças; bancário, revestimentos cerâmicos; e mais recentemente o de ensino superior. Todos têm em comum um fator econômico: escala. Modelos econômicos baseados em economias de escala que permitem a diluição dos custos de produção exigem volumes cada vez maiores de produção. E assim surgem os Consolidadores e os Consolidados. Os sobreviventes deste processo de seleção natural serão os que se prepararam e encontram-se aptos para se aproveitarem da crise. Esses são os Consolidadores, que lutarão pelos melhores ativos no mercado. São empresas com capacidade mínima de moagem da ordem de 4MM de toneladas, endividamento compatível com a geração de caixa, saúde financeira equilibrada, isto é, calcada em índices de liquidez e de produtividade razoáveis o suficiente para atender às necessidades dos receosos credores.
Dentre os grandes Consolidadores encontramos diversos que passaram por profundos processos de reestruturação na década passada, adotando mudanças de gestão baseadas nos princípios da governança corporativa. Estou falando de grandes grupos nacionais como Odebrecht, Raízen e também de multinacionais de peso. Um processo de Turnaround não é “trabalho para inglês ver”: é um compromisso que a empresa assume com mudanças na sua forma de fazer negócios, na transformação de um “modelo empreendedor” para um “modelo empresarial”. Implica em planejamento estratégico com gerenciamento de riscos, definição de metas qualitativas e quantitativas, seleção de profissionais capacitados (experiência e conhecimento) e um sistema de meritocracia que permita a preservação e manutenção de talentos. Muitas usinas hoje trabalham ainda com sistemas baseados na confiança ao invés de adotarem o imprescindível binômio {confiança & competência}.
O segredo do sucesso na Reestruturação está intimamente ligado ao “timing”, ou seja, ao momento de início dos trabalhos: quanto mais cedo for o ataque aos sinais de desgaste (ou de crise), mais chances terá a empresa de se recuperar e de retomar suas atividades normalmente. Nas reuniões que tenho tido com o setor bancário, três fatores são sempre citados como fundamentais para a concessão de crédito – são eles: (i) gestão profissional com times financeiro, operacional e comercial devidamente qualificados tecnicamente e com comprovada experiência no mercado; (ii) geração de caixa operacional (Ebitda positivo); e planejamento com projeções mercadológicas consistentes. A concessão de crédito cada vez mais torna-se um processo de análise árduo. Naturalmente um histórico de “bom pagador” sempre ajuda.
Essa tendência de adoção de parâmetros de governança corporativa chegou ao setor sucroenergético com algum atraso. Talvez pela forte preponderância de antigos grupos familiares, esse modelo que visa a transparência em todos os níveis tenha tido dificuldade de ser digerido por estruturas mais centralizadoras. Porém, a mudança é irreversível e temo que aqueles que se opuserem a este cenário certamente estarão dentre os consolidados.
Vale aqui uma observação relevante sobre o papel dos consolidados. Faz parte do processo de evolução de um setor o desaparecimento de algumas empresas, principalmente em setores em que imperam as economias de escala. No entanto existem diferentes tipos de consolidados e basicamente os dividiria em 2 grupos principais: aqueles que conseguirão maximizar valor das suas empresas e vendê-las em processos disputados, podendo até em alguns casos vir a optar por tornarem-se sócios das empresas compradoras (naturalmente como minoritários); e, no extremo oposto, aqueles que verão o valor de suas empresas derreter e no limite chegarão à venda em leilão na Recuperação Judicial (via Artigo 60, por exemplo), ou ainda na falência.
A Eficácia da Recuperação Judicial
A RJ é o tratamento extremo para casos de reestruturação. É o remédio mais violento, a “quimioterapia”: só deve ser usada na total ausência de alternativas de negociação com credores (casos, por exemplo, da reestruturação “benigna” ou da recuperação extra-judicial). Já vi casos de empresas cogitarem de pedir RJ acreditando que essa alternativa é uma panaceia, a “cura de todas as dívidas”. Nada mais enganoso. Cada vez mais os Planos de Recuperação Judicial (PRJ) exigem maior sofisticação e análise e, apesar da dívida tributária não estar contemplada na Lei 11.101 de 09/02/2005, sua inclusão nas considerações do PRJ são cada vez mais necessárias. No fundo sempre deveriam ter sido, mas no início, quando do surgimento da lei, as dívidas tributárias eram mencionadas apenas por alto.
Fluxos de caixa sem embasamento começam a ser glosados; análises de mercado requerem maior escrutínio, assim como os estudo sobre capacidades operacional e comercial. A própria qualidade do conhecimento dos administradores judiciais e também dos juízes, que vem melhorando exponencialmente, tem contribuído para processos mais sérios e exigentes. Muitas vezes ouvi a expressão “PRJ de Prateleira” – alusão aos documentos aonde muda-se apenas o nome da empresa mas o conteúdo é o mesmo. Se isso é real, certamente tal prática tem seus dias contados.
A RJ pode sim ser um instrumento eficaz para a real recuperação de uma empresa e cumprir seu propósito na economia. Mas é preciso sobretudo que os seus acionistas estejam verdadeiramente engajados com a finalidade do instrumento. As vantagens são muitas, dentre as quais destaco: (i) interrupção das cobranças de dívidas de todas as naturezas e anteriores ao Pedido de RJ (exceto as previstas no artigo 49 x 3o e as tributário-fiscais, como já aludido) – o que em tese permite que a empresa se concentre na reativação de sua atividade produtiva; (ii) suspensão, ao menos temporária, de processos de alienação fiduciária e mesmo de trava bancária. Na alienação fiduciária, a jurisprudência tem sido flexível e, em muitos casos, o prazo para a utilização do ativo dado em garantia tem superado os 180 dias de “stay period” previsto na lei.
O mesmo não se pode dizer da trava bancária: apesar de decisões sem homogeneidade nos diversos estados da federação, o STJ vem decidindo a favor da trava, ou seja, dos credores. No entanto, sob a ótica do stress financeiro a que empresas insolventes são submetidas, a RJ traz uma pausa que permite uma reflexão. Porém não nos iludamos: tal pausa é circunstancial e tem dia e hora para acabar. Por isso, as empresas que pedirem a RJ devem encará-la com seriedade e se empenharem em aproveitar a oportunidade para efetivamente mudarem seus hábitos e assim recuperarem o valor, em boa medida dissipado por práticas administrativo-financeiras erráticas.