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Reforma da Lei de Recuperação Judicial e a curva da insolvência

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Para fazer frente aos desafios impostos pela crise econômica oriunda da pandemia do coronavírus e permitir ao Brasil “achatar a curva da insolvência” generalizada de pequenas, médias e grandes empresas, preservando a arrecadação fiscal e empregos, é necessária uma urgente reforma do regime legal da recuperação judicial no Brasil, previsto na Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, a Lei de Recuperação de Empresas e Falência (LREF). O legislador brasileiro tem que estar à altura do esforço que o momento histórico exige. 
A crise pandêmica acometeu a economia nacional quando o país dava os primeiros passos de crescimento após a forte retração econômica originária da crise de 2015. O quadro crônico de baixa produtividade e eficiência da economia, aliado ao elevado grau de endividamento das empresas e consumidores, compromete a geração de riqueza e a formação de um colchão de liquidez para os agentes econômicos. A falta de um nível adequado de poupança privada na economia implica que as empresas e consumidores têm pouquíssimo fôlego financeiro para suportar uma quebra dos fluxos de caixa. O Governo, por sua vez, em razão do alto grau de endividamento público e má qualidade do gasto em despesas correntes e investimentos tem capacidade limitada de socorrer a economia sem agravar ainda mais a situação macroeconômica. 
É de se reconhecer que a crise econômica desencadeada pela pandemia passa longe de ser a típica crise de contração de demanda agregada, ou uma crise oriunda de choques pontuais de oferta decorrentes, por exemplo, de cataclismos naturais. A novidade é que temos simultaneamente a uma queda de demanda, de viés deflacionário, uma abrupta e profunda ruptura da oferta de produtos e serviços da economia decorrente das medidas de isolamento social e paralisação das atividades econômicas consideradas não essenciais, com aptidão para gerar efeitos inflacionários. No balanço econômico, um cenário possível no futuro imediato é o de estagflação, como alguns economistas têm alertado. 
O risco que se apresenta hoje é que a quebra transitória dos fluxos de caixa e os efeitos do trauma humano e social decorrentes do coronavírus sobre empresas e consumidores causem mudanças estruturais nas condições de oferta e demanda, em magnitude capaz de transformar uma restrição temporária de liquidez em um problema generalizado de solvência dos agentes econômicos. A contenção da insolvência é, em parte, perseguida pelos programas de assistência pecuniária e social anunciados pelo Governo, bem como pelas políticas de renegociação de dívidas e de oferta de crédito das instituições financeiras. Mas os diversos programas públicos e privados não serão suficientes para resolver os desafios econômicos da pandemia. 
Em linha com esforços legislativos atuais em diversos países, o Projeto de Lei 1.397/2020, em trâmite no Congresso Nacional, busca implementar medidas de caráter emergencial atinentes ao regime jurídico da insolvência. Conquanto traga importantes avanços, como uma suspensão geral e temporária das execuções de dívidas, não trata dos problemas jurídicos estruturais fundamentais que tornam o regime recuperacional brasileiro ineficaz para atender às reais necessidades das pequenas, médias e grandes empresas. 
Como é sabido, nossa lei recuperacional foi inspirada na legislação norte-americana, especialmente o disposto no Chapter 11 do Bankruptcy Reform Act de 1978. O regime instituído pelo Chapter 11 teve gestação no período de profunda crise econômica do final do século XIX, sendo originalmente voltado para promover o soerguimento das grandes empresas ferroviárias. Décadas de experiência na aplicação do Chapter 11 nos EUA permitiram o desenvolvimento de um robusto arcabouço doutrinário e jurisprudencial, assim como um acervo de estudos acadêmicos de direito e economia que lograram demonstrar os méritos como também os efeitos adversos não esperados da legislação. 
Sensível a essas constatações, o Congresso dos EUA editou o The Small Business Reorganization Act (SBRA) de 2019, que entrou em vigor 19 de fevereiro passado. O racional de política pública dessa reforma legislativa encontra-se historiado no Relatório do Comitê Judiciário do Congresso em apoio ao projeto de lei H.R. 3311. Em linhas gerais, o legislador americano reconheceu que em razão da complexidade e dos elevados custos associados aos processos de recuperação judicial, o regime original do Chapter 11 oferecia melhores perspectivas de sucesso para as grandes empresas, sendo que hipóteses de efetivo e bem-sucedido soerguimento das pequenas e médias seriam marginais. 
Assim, para corrigir as distorções percebidas, no SBRA foram introduzidas mudanças procedimentais de simplificação e adotados critérios substantivos de reestruturação sob os quais o juiz pode homologar a aprovação do plano de recuperação de pequenas e médias empresas, mesmo contra a vontade de credores adversamente afetados, passando-se a admitir a possibilidade de o empreendedor manter sua participação no negócio mesmo que não haja o pagamento integral da dívida. Essa última inovação é fruto do reconhecimento de que nas pequenas e médias empresas, diferentemente do que ocorre com as grandes corporações, a pessoa do empreendedor é a figura central do negócio e sua contribuição para a viabilidade da recuperação é considerada essencial. Há um interesse público em preservar o empreendedor e fomentar sua atividade de forma geral. 
A crise pandêmica, inclusive, já demandou do Congresso dos EUA nova intervenção legislativa poucos meses após a vigência do SBRA. Nesse sentido, tem-se a edição do The Coronavirus Aid, Relief, and Economic Security Act (CARES Act), de 27 de março de 2020, que entre diversas outras medidas, aumentou o patamar de faturamento mínimo da empresa beneficiária do regime diferenciado de recuperação judicial previsto no SBRA de US$2.725.625,00 para US$7.500.000,00. 
No Brasil, a LREF padece das falhas de origem reconhecidas na sua matriz norte-americana, notadamente quanto à efetividade do regime jurídico recuperacional vigente para a realidade econômica das grandes empresas, deixando-se desamparadas as pequenas e médias, que segundo estimativas do SEBRAE, representam um total de 15,4 milhões de negócios, mais de 99% do número de registros de sociedades empresárias, respondendo por 54% do emprego formal, 44% da massa salarial nacional, e cerca de 27% do PIB. 
Embora o Congresso Nacional tenha promovido em 2014, por meio da Lei Complementar 147, de 7 de  agosto, modificações no regime recuperacional das pequenas e médias empresas com vistas a promover sua simplificação, fato é que as mudanças não repercutiram como esperado. O arcabouço legal ainda é complexo e pouco amigável às peculiaridades desse setor. No mais das vezes, as reestruturações de pequenas e médias empresas são desprovidas de ativos passíveis de venda para pagamento de dívidas, ou contam com ativos inexpressivos. Não raro, nem os credores dão muita importância já que os valores dos créditos são geralmente baixos. 
O que é materialmente possível e economicamente útil é assegurar ao empreendedor, sob a égide de um regime recuperacional especial para pequenas e médias empresas, condições de subsistência e de manutenção do negócio, mediante o estabelecimento de um plano de liquidação expedito de ativos, se é que existentes, e/ou de um regime de parcelamento de dívidas em bases e prazos razoáveis, que devem naturalmente representar um efetivo e genuíno esforço pagador do empreendedor como contrapartida a legitimar o benefício legal da reestruturação das dívidas e da reabilitação do crédito. 
Há um interesse público em se manter vivo o empreendedor e fomentar o empreendedorismo na economia nacional. Enquanto na grande empresa a pessoa do empresário é dispensável e o que se persegue é salvar a atividade empresarial organizada que seja viável, o contrário se verifica com as pequenas e médias empresas. O cenário hoje no Brasil, e em meio a uma pandemia sanitária e grave crise econômica, é que o empreendedor mal sucedido nos negócios não encontra no arcabouço jurídico um regime recuperacional moderno e eficaz. Por aqui, o insucesso empresarial, normal e inerente a uma economia de mercado, acarreta na prática uma espécie de “morte civil” para o empreendedor, que não consegue se desvencilhar das dívidas em bases razoáveis, nem consegue em tempo hábil reabilitar o crédito para voltar a empreender, inovar e gerar empregos. 
Mas a LREF também não atende adequadamente as grandes empresas brasileiras. Por incrível que pareça, fato é que a lei vigente é omissa quanto ao aspecto central que constitui a razão de ser e utilidade prática do instituto da recuperação judicial, notadamente a viabilização do ingresso de dinheiro novo (“dip financing”) em atendimento das necessidades prementes de liquidez da empresa em crise. Não concebeu o legislador nacional um regramento específico capaz de propiciar segurança jurídica para a concessão de novos créditos prioritários garantidos pela oneração ou pela alienação fiduciária de bens e direitos da recuperanda, nem previu a possibilidade de compartilhamento compulsório de garantias (com proteção adequada dos credores). Isso reduz a oferta de crédito para empresas em recuperação judicial e em diversos casos a inviabiliza por completo. Daí decorre uma das explicações para o fato de que, no ranking dos regimes de recuperação de empresas internacionais, o sistema brasileiro demonstra baixo percentual de recuperação do crédito para os credores, maior tempo de tramitação dos processos judiciais em desfavor das empresas devedoras e maiores custos para todos. 
Portanto, a reforma emergencial da LREF no enfrentamento da crise da pandemia deve criar um regime especial para as pequenas e médias empresas que tenha efetiva utilidade, e introduzir a disciplina legal do dinheiro novo na recuperação judicial em benefício de todas as empresas nacionais, especialmente as maiores. Adicionalmente, a alienação de ativos das empresas em recuperação judicial deveria passar a contar com as mesmas proteções legais asseguradas à alienação das unidades produtivas isoladas, notadamente a ausência de sucessão fiscal, trabalhista, cível e de qualquer outra natureza, pois essas alienações podem ser fontes mais rápidas de liquidez para as empresas em crise, fundamental no cenário da atual crise. 
Finalmente, como medida de excepcionalidade justificada pela pandemia, e apenas durante o período em que produzir seus efeitos, o legislador pátrio deveria permitir que o ingresso de dinheiro novo na empresa em recuperação possa ser originado não só por financiadores terceiros independentes, mas por aportes dos próprios sócios da recuperanda ou partes relacionadas, assegurada também prioridade absoluta desse crédito. Tal solução tem sido verificada nas iniciativas legislativas europeias decorrentes da pandemia, inspiradas no regime da Diretiva (UE) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019.
 

20/05/2020

Autor(a)
Darwin Corrêa
Informações do autor
sócio PCPC Advogados

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