De junho de 2005, quando a Lei de Recuperação Judicial e Falência (Lei 11.101) entrou em vigor, até maio deste ano, o Brasil registrou 10.286 pedidos de recuperação e outros 31.128 de falência, segundo dados do Serasa Experian. Nesse mesmo período, 8.159 pedidos de recuperação foram deferidos e 13.327 falências foram decretadas.
O grande diferencial entre a nova lei e o Decreto-Lei 7.661/45, que antes regulava a falência e o velho instituto da concordata, é que o foco passou a ser a preservação da empresa — isto é, da produção de bens e serviços, dos empregos e dos interesses dos credores. Centrada na função social da empresa, a Lei 11.101/05 trouxe para a cena a figura da recuperação judicial, ampliando as possibilidades de saneamento financeiro das sociedades em crise para evitar sua quebra.
Os números dos últimos 13 anos demonstram a importância da lei, já que, mesmo com as novas regras, os pedidos de falência ainda superam os de recuperação judicial em uma proporção de três por um.
O governo federal encaminhou em maio de 2018 ao Congresso uma proposta de atualização de até 80% do conteúdo da Lei 11.101/05. O projeto tramita no Senado, mas não há previsão para a votação. Entre as inovações, o novo texto confere mais poder às instituições financeiras no gerenciamento e na negociação de créditos.
No STJ, ambos os institutos — falência e recuperação — são frequentemente examinados. O tribunal analisa equações que envolvem, de um lado, os interesses dos credores e, de outro, o princípio da preservação da empresa.
Ganhos sociais
O objetivo da preservação da empresa pode impedir, por exemplo, a busca e apreensão de bens considerados necessários para as atividades produtivas. Ao julgar o CC 149.798, a ministra Nancy Andrighi explicou que, apesar da inadimplência, a constrição dos bens prejudicaria a eventual retomada das atividades da empresa.
“Apesar de o credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis não se submeter aos efeitos da recuperação judicial, o juízo universal é competente para avaliar se o bem é indispensável à atividade produtiva da recuperanda. Nessas hipóteses, não se permite a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais à sua atividade empresarial.”
Em outro conflito, o CC 118.183, Nancy lembrou que o STJ enfrenta situações nas quais é necessário definir qual juízo detém a competência para praticar atos de execução incidentes sobre o patrimônio de empresas falidas ou em recuperação. Segundo a magistrada, as decisões proferidas sempre têm como norte a necessidade de preservação da par conditio creditorum, nas falências, ou do princípio da continuidade da empresa, nas recuperações judiciais.
A justificativa de se proceder a tal análise, segundo a ministra, é que o juízo da falência tem melhores condições para decidir acerca das questões, de modo a preservar a empresa.
“Não se pode perder de vista o objetivo maior, de preservação da empresa, que orientou a introdução, no ordenamento jurídico brasileiro, da regra do artigo 60, parágrafo único, da Lei 11.101/05. O que buscou o legislador, com tal regra, foi implementar a ideia de que a flexibilização de algumas garantias de determinados credores, conquanto possa implicar aparente perda individual, numa análise imediata e de curto prazo, pode significar ganhos sociais mais efetivos, numa análise econômica mais ampla, à medida que a manutenção do empreendimento pode implicar significativa manutenção de empregos, geração de novos postos de trabalho, movimentação da economia, manutenção da saúde financeira de fornecedores, entre inúmeros outros ganhos”, declarou Nancy.
Fazenda Pública
Até mesmo a Fazenda Pública deve obedecer à regra de respeitar as deliberações do juízo universal da falência, não havendo autonomia para atos de constrição de crédito junto à empresa recuperanda.
“A jurisprudência desta corte superior firmou entendimento de que não são adequados, em execução fiscal, os atos de constrição que possam afetar, de alguma forma, o plano de recuperação judicial da sociedade empresária, em homenagem ao princípio da preservação da empresa, porquanto o pagamento do crédito tributário devido será assegurado, no momento oportuno, pelo juízo falimentar, observadas as preferências legais, não havendo, assim, prejuízo à Fazenda Pública”, justificou o ministro Benedito Gonçalves ao analisar o REsp 1.592.455.
Tendo em vista a multiplicidade de recursos, os ministros da 1ª Seção do STJ afetaram em fevereiro de 2018 o seguinte tema para julgamento sob o rito dos repetitivos: possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal (Tema 987).
Processos suspensos
Ainda no campo das questões entre a empresa recuperanda e a Fazenda Pública, a suspensão das execuções, embora não seja regra prevista na Lei 11.101/05, pode ser determinada com a finalidade de preservação da empresa. Ao julgar o REsp 1.548.587, o ministro Gurgel de Faria resumiu o entendimento.
“Atento ao artigo 6º da Lei 11.101/05, este Tribunal Superior tem externado que, embora o deferimento do plano de recuperação judicial, por si só, não implique a suspensão do processo executivo, os atos de constrição patrimonial só serão adequados caso não coloquem em risco a atividade empresarial, pois o referido instituto tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores.”
Gurgel de Faria lembrou que existe presunção de suspensão da execução fiscal nos termos do artigo 151 do Código Tributário Nacional, “pois não é legítimo concluir que a regularização do estabelecimento empresarial possa ser feita exclusivamente em relação aos seus credores privados, e, ainda assim, às custas dos créditos de natureza fiscal”.
Nesses casos, segundo o magistrado, seja qual for a medida de constrição adotada na execução fiscal, será possível flexibilizá-la se, com base nas circunstâncias concretas, devidamente provadas nos autos e valoradas pelo juízo, for apurada a necessidade de aplicação do princípio da menor onerosidade.
Pequenos valores
Uma das formas que a legislação encontrou para assegurar a preservação da empresa é o estabelecimento de um valor mínimo para justificar os pedidos de falência. Segundo o artigo 94 da Lei 11.101/05, a obrigação líquida mínima não cumprida apta a embasar o pedido de falência é de 40 salários mínimos.
Ao julgar o REsp 1.023.172, em 2012, a 4ª Turma do STJ aplicou o dispositivo também para um caso que começou a tramitar ainda sob a vigência do Decreto-Lei 7.661/45. O pedido de falência foi feito com base em duplicatas que somavam pouco mais de R$ 6 mil, ou cerca de 34 salários mínimos em julho de 2001, época do pedido.
O relator do caso, ministro Luis Felipe Salomão, destacou que, embora a nova lei tenha entrado em vigor em 2005, é possível, em certos casos, aplicar seus dispositivos para privilegiar o princípio da preservação da empresa. Ele destacou que princípios constitucionais também devem ser considerados, e não apenas o direito intertemporal:
“Com efeito, a Constituição da República consagra a proteção à preservação da empresa por duas razões basilares: (i) é forma de conservação da propriedade privada; (ii) é meio de preservação da sua função social, ou seja, do papel socioeconômico que ela desempenha junto à sociedade em termos de fonte de riquezas e como ente promovedor de empregos. Assim, o princípio da preservação da empresa cumpre a norma maior, refletindo, por conseguinte, a vontade do poder constituinte originário.”
Salomão lembrou que, em alguns casos, a satisfação da dívida é irrelevante se comparada à importância social e econômica da preservação da empresa.
“Tendo-se como orientação constitucional a preservação da empresa, refoge à noção de razoabilidade a possibilidade de valores insignificantes provocarem a sua quebra, razão pela qual a preservação da unidade produtiva deve prevalecer em detrimento da satisfação de uma dívida que nem mesmo ostenta valor compatível com a repercussão socioeconômica da decretação da falência”, disse o ministro.
Protesto
O valor de 40 salários mínimos pode ser alcançado por título individual ou pela soma dos títulos. Ao analisar um caso em que se questionou a execução parcial da dívida, os ministros destacaram esse entendimento, já que o montante efetivamente executado era inferior a 40 salários.
O colegiado destacou a importância de a dívida ser comprovada com o efetivo protesto dos títulos. Mesmo nos casos em que a dívida é superior ao limite mínimo exigido pela lei, é preciso que os protestos tenham efetivamente sido realizados, sob pena de inviabilizar o pedido de falência.
No REsp 1.124.763, o valor da dívida alegada nos autos era de R$ 25 mil (mais de 70 salários na época), mas nem todos os cheques emitidos foram protestados. O ministro relator do caso, Villas Bôas Cueva, resumiu o entendimento da corte.
“Para que a falência seja decretada, é imperioso que todos os títulos executivos não pagos sejam protestados ou, pelo menos, caso o protesto seja de apenas alguns desses títulos, que perfaçam o valor de 40 salários mínimos, conforme expressa disposição legal. No caso em exame, o protesto realizado pelo ora recorrente foi de apenas um dos títulos executivos, sem que fosse alcançado o valor estipulado em lei.”
Juízo da falência
No contexto de falência ou recuperação judicial, o juízo universal é sempre o responsável pelo produto da arrematação ou alienação judicial de bens da empresa recuperanda.
As execuções fiscais em curso quando do pedido de recuperação não são suspensas, mas o produto desses processos deve ser encaminhado ao juízo universal para a correta destinação dos valores. Ao analisar um conflito de competência, a 2ª Seção decidiu que cabia ao juízo universal decidir acerca do produto de um leilão de imóvel realizado em execução fiscal na Justiça Federal.
O entendimento do STJ privilegia o juízo universal por este ter amplo conhecimento sobre as limitações e necessidades da empresa recuperanda.
“As ações de natureza fiscal não se suspendem em razão do deferimento de recuperação judicial, conforme o artigo 6º, parágrafo 7º, da Lei 11.101/05. Deve-se ressalvar que o valor obtido com a eventual alienação de bens perante o juízo federal deve ser remetido ao juízo estadual, entrando no plano de recuperação da empresa”, afirmou o ministro Sidnei Beneti, relator do CC 117.184.
No caso da empresa recuperanda sofrer falência, tal fato não altera a situação. Ao analisar o REsp 914.712, o ministro Luiz Fux (hoje no Supremo Tribunal Federal) lembrou que não há que se discutir, em sede de execução, qual a preferência para o levantamento dos valores do bem arrematado.
“A falência superveniente do devedor não tem o condão de paralisar o processo de execução fiscal, nem de desconstituir a penhora realizada anteriormente à quebra. Outrossim, o produto da alienação judicial dos bens penhorados deve ser repassado ao juízo universal da falência para apuração das preferências.” Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.
02/09/2018