Em 27/06/12 a Segunda Seção do STJ aprovou uma nova série de Súmulas, dentre as quais a 480, que dispõe que “[o] juízo da recuperação judicial não é competente para decidir sobre a constrição de bens não abrangidos pelo plano de recuperação da empresa”.
Pronto: iniciado um rebuliço na advocacia nacional especializada em insolvência, seguido de diversas decisões tortuosas nos juízos onde tramitam processos de recuperação judicial.
Alguns advogados e juízos chegaram a afirmar e determinar que o STJ havia virado a mesa e decidido que o juízo recuperacional não seria o competente para julgar atos expropriatórios do patrimônio de empresas recuperandas se o crédito não fosse concursal. E isso pela leitura equivocada de “bens não abrangidos pelo plano” como se fossem aqueles derivados de “créditos” não abrangidos pelo plano.
Mas essa interpretação realmente implicaria em uma reviravolta no STJ, que já sedimentou entendimento no sentido de que quaisquer atos expropriatórios, provenientes ou não de créditos sujeitos, se pudessem impactar no cumprimento no plano de recuperação judicial, deveriam ser decididos pelo juízo da recuperação judicial. Seria a primeira súmula já editada inovando e contrariando a jurisprudência de um Tribunal.
E isso por uma razão simples: antes da edição dessa Súmula, o STJ aplicou aos casos que julgou a diretriz traçada pela Lei de Recuperação de Empresas (Lei 11.101/05 – LRE), qual seja, efetivamente recuperar judicialmente empresas viáveis em crise econômico-financeira. Para esse Superior Tribunal, permitir a continuação de atos individuais de expropriações contra as empresas em recuperação judicial poderia implicar na sua falência.
Nessa esteira foi que aquele Tribunal, desde que as questões atinentes à LRE alcançaram e provocaram sua instância, passou a decidir pela existência do juízo universal, que nasceria com o deferimento da recuperação judicial1.
Pela jurisprudência dessa Corte, o referido juízo universal seria o competente para atos de execução referentes a crédito apurados em outros juízos. Veja-se que, "com a edição da Lei 11.101/05, respeitadas as especificidades da falência e da recuperação judicial, é competente o juízo universal para prosseguimento dos atos de execução, tais como alienação de ativos e pagamento de credores, que envolvam créditos apurados em outros órgãos judiciais2” e “a partir da data de deferimento da recuperação judicial é competente o respectivo Juízo para o prosseguimento dos atos de execução3.”
Em relação a créditos sujeitos, a preocupação do STJ é no sentido de que outros juízos não possam continuar executando empresas em recuperação judicial e permitindo a esses exequentes um tratamento diferente em relação aos demais sujeitos abarcados pelo plano de recuperação 4 5.
Já sobre credores extraconcursais, o interesse recai nas recuperandas, enquanto conjunto de bens organizado para a produção de riquezas, suficientes para a manutenção de suas atividades e para o pagamento dos credores. A permissão de atos de execução que pudessem afetar a reestruturação prevista no plano de recuperação judicial e no fluxo de caixa das recuperandas seria unicamente privilegiar o pagamento aleatório de credores que buscassem a satisfação de seu crédito pela via judicial por ordem de chegada, sem atentar ao princípio de preservação da fonte produtora. E assim, sejam créditos fiscais6 ou derivados de Adiantamentos de Contrato de Câmbio7, o STJ decidiu que os atos de execução devem antes passar pelo crivo do juízo recuperacional.
Mas, finalmente, a disponibilização no Diário de Justiça Eletrônico de 01.08.12 da Súmula 480, acompanhada dos seus precedentes (AgRg nos EDcl no CC 105666 RJ 2009/0110923-8, AgRg no CC 99583 RJ 2008/0234949-4, AgRg no CC 103507 RJ 2009/0039095-7, AgRg no CC 113280 MT, AgRg no CC 114993 RJ 2010/0213284-5, CC 103437 SP 2009/0038254-0, CC 103711 RJ 2009/0039827-0, CC 115272 SP 2010/0226769-1, EDcl no CC 103732 RJ 2009/0039894-0), colocou fim às leituras equivocadas, contraditórias a toda a jurisprudência prévia daquela Corte.
A Súmula, por definição, é a forma que um Tribunal tem para pacificar um entendimento sedimentado e, no caso do STJ, orientar a interpretação de uma legislação infraconstitucional8. Seria um puro non sense admitir, depois de todas as decisões supra, que a Súmula 480 tivesse vindo para derrubar o arcabouço decisório da competência do juízo universal para atos de execução, inclusive derivados de créditos extraconcursais.
A leitura de um por um dos precedentes demonstra que todos eles, SEM EXCEÇÃO, tratam de atos de execução que ou atingem (i) bens dos sócios (através da desconsideração da personalidade jurídica) ou (ii) bens de empresas do mesmo grupo econômico das recuperandas, mas que não estejam no plano de recuperação judicial. Não tratam, os precedentes, de créditos não sujeitos; mas sim de bens não abrangidos pelo plano.
Tanto para executar os bens dos sócios de recuperandas como para executar bens de empresas terceiras sem patrimônio implicado no plano de recuperação, ainda que do mesmo grupo econômico das recuperandas, não há que se falar, de início e caso o plano não dispunha em contrário, em juízo universal, pois tais “ativos não integram o plano de recuperação judicial da empresa em recuperação”9 e implicam alcançar outras “personalidades jurídicas e patrimônios distintos daqueles das sociedades recuperandas”10. É, pois, nesse único e exclusivo sentido que se deve ler “bens não abrangidos pelo plano”.
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1 "(...) O deferimento da recuperação judicial acarreta ao Juízo que a defere a competência para distribuir o patrimônio da massa aos credores conforme as regras concursais da lei falimentar. (...)" (AgRg no CC 113.861/GO, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14/09/2011, DJe 11/10/2011).
2 CC 110941/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Segunda Seção, DJe 01/10/2010.
3 CC 114.540/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 24/08/2011, DJe 31/08/2011.
4 "[i]mportaria em conferir melhor tratamento aos credores não habilitados, além de significar a inviabilidade do plano de reorganização na medida em que parte do patrimônio da sociedade recuperanda poderia ser alienado nas referidas execuções, implicando, assim, a ruptura da indivisibilidade do juízo universal da recuperação e o desatendimento do princípio da preservação da empresa (art. 47 da LF), reitor da recuperação judicial," conhecendo do conflito "em face da impossibilidade de dois diferentes juízos decidirem acerca do destino de bens pertencentes à empresa sob recuperação, para declarar a competência do Juízo da 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo - SP." (CC 114.952/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14/09/2011, DJe 26/09/2011)
5 CC 112.392/PE, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 13/04/2011, DJe 25/04/2011
6 "Apesar de a execução fiscal não se suspender em face do deferimento do pedido de recuperação judicial (art. 6º, §7º, da LF n. 11.101/05, art. 187 do CTN e art. 29 da LF n. 6.830/80), submetem-se ao crivo do juízo universal os atos de alienação voltados contra o patrimônio social das sociedades empresárias em recuperação, em homenagem ao princípio da preservação da empresa." (CC 114987/SP, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14/03/2011, DJe 23/03/2011).
7 "AGRAVO REGIMENTAL NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PEDIDO DE RESTITUIÇÃO.ADIANTAMENTO DE CONTRATO DE CÂMBIO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. EXECUÇÃO. BENS. DESTINO. COMPETÊNCIA. JUÍZO DA FALÊNCIA. CONFLITO. SUCEDÂNEO RECURSAL. IMPOSSIBILIDADE. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.
1. Consoante jurisprudência consolidada nesta Corte Superior, é cabível o pedido de restituição baseado no adiantamento de contrato de câmbio, pois os valores dele decorrentes não integram o patrimônio da massa falida ou da empresa concordatária (art. 75, § 3º, da Lei 4.728/65 - Lei do Mercado de Capitais). Porém, isso não significa, entretanto, que as execuções possam prosseguir em outro juízo que não o da recuperação judicial, pois cabe a este apurar, mediante pedido de restituição formulado pela instituição financeira, se o crédito reclamado é extraconcursal e, portanto, excepcionado dos efeitos da falência, sendo certo que o conflito de competência não é a seara adequada à indigitada discussão, que depende de dilação probatória.
2. Assim, a fim de impedir que as execuções individualmente manejadas possam inviabilizar a recuperação judicial das empresas, tem-se por imprescindível as suspensões daquelas, devendo os credores procurar no juízo universal a satisfação de seus créditos. (...)." (AgRg no CC 113.861/GO, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14/09/2011, DJe 11/10/2011).
8 “A súmula não tem força de lei para os casos futuros, mas funciona, de acordo com o Regimento Interno do Tribunal, como instrumento de dinamização dos julgamentos e valioso veículo de uniformização jurisprudencial, como tem evidenciado a prática do Supremo Tribunal Federa.”. (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento, 50ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2009, pág. 630).
9 AgRg no CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 103.507 - RJ (2009/0039095-7), RELATOR: MINISTRO HONILDO AMARAL DE MELLO CASTRO.
10 AgRg no CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 114.993 - RJ (2010/0213284-5), RELATOR: MINISTRO JOÃO OTÁVIO DE NORONHA
Autores: Bruno Kurzweil de Oliveira e Ana Paula Comodo
Fonte: http://www.migalhas.com.br (02/01/2013)