Advogado Guilherme Marcondes Machado: magistrados têm de levar em conta o peso social de suas decisões
A segunda instância do Judiciário tem se mostrado mais flexível às condições apresentadas nos planos de recuperação. Decisões recentes de desembargadores paulistas permitiram, por exemplo, taxas de juros menores que 1% ao mês para o pagamento aos credores e também descontos de mais de 50% do valor das dívidas - questões com jurisprudência dominante em sentido contrário.
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Há entendimentos na 1ª e na 2ª Câmara de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). Com a crise, segundo advogados, a posição dos desembargadores vem sendo no sentido de validar o que ficou acertado, em assembleia-geral, pela maioria dos credores.
Uma dessas decisões permitiu deságio de 85% da dívida originária de uma empresa em recuperação. O caso envolve uma companhia do setor têxtil e um de seus credores quirografários (a classe sem garantias). O plano aprovado em assembleia previa que a classe seria paga, em parcela única, com valor remanescente da venda de um ativo.
Voto vencido, o credor recorreu ao tribunal. Ele tinha um crédito de R$ 3,2 milhões e, seguindo o plano, esses valores seriam reduzidos a menos de R$ 500 mil. O caso foi julgado pela 1ª Câmara e os desembargadores decidiram, de forma unânime, por manter o deságio.
O relator do caso, desembargador Hamid Bdine, levou em conta o prazo previsto para o pagamento. "Mesmo que o deságio superior a 50% seja considerado elevado, deve-se considerar no caso concreto que o pagamento ocorrerá em parcela única, 180 dias após a homologação do plano", afirma em seu voto.
De acordo com o magistrado, os próprios credores (em maioria, na assembleia) preferiram aceitar o deságio para receber o crédito de forma mais rápida. "É questão pertinente ao exclusivo exame dos credores, não cabendo ao Poder Judiciário verificar sua viabilidade."
Em um outro caso, a 2ª Câmara de Direito Empresarial não só validou um plano que fixava deságio de 60% como também autorizou a empresa em recuperação, uma companhia do segmento de máquinas e ferramentas, a fixar menos de 1% de taxa de juros ao mês aos pagamentos que seriam realizados em um prazo de 13 anos.
"A recuperação judicial deve ser vista como um mecanismo a viabilizar a superação da temporária crise econômico-financeira da devedora, e os esforços à preservação de sua atividade devem ir ao encontro do ajuste com os credores", diz em seu voto o relator do caso, desembargador Ricardo Negrão. "No caso em tela, os credores votaram favoravelmente e, independente do voto contrário do agravante [credor que ingressou com recurso] o plano foi aprovado."
O Judiciário, desde 2012, apresentava uma postura mais rígida aos planos de recuperação. A imposição de limites para deságio e taxa de juros, por exemplo, tornou-se frequente a partir de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que reconheceu a possibilidade de controle judicial do plano.
Relatora do caso, a ministra Nancy Andrighi considerou que a obrigação de respeitar o conteúdo do plano não impossibilitaria a Justiça de promover o controle relativo à licitude das providências tomadas em assembleia. "A vontade dos credores, ao aprovarem o plano, deve ser respeitada nos limites da lei", afirma em seu voto.
Desde então magistrados passaram a considerar, para a correção das dívidas, o artigo 161 do Código Tributário Nacional. O dispositivo diz que créditos não pagos integralmente no vencimento serão acrescidos de juros de mora, "seja qual for o motivo determinante da falta", e fixa 1% ao mês nos casos em que "a lei não dispuser de modo diverso".
Também começaram a vetar planos com previsão de deságios mais agressivos - geralmente acima de 50%. Passaram a entender que nesses casos poderia se caracterizar o abuso de direito do devedor. Isso porque a empresa em recuperação estaria, na verdade, jogando todo o peso de sua crise econômica no credor.
Para especialistas, a crise econômica que o país enfrenta há pouco mais de dois anos - e que levou milhares de empresas a pedir recuperação judicial - contribuiu para a flexibilização do entendimento sobre essas questões. "Esses descontos, há três anos, eram de 30% e a jurisprudência ainda frisava que recuperação judicial não é perdão de dívida", diz um advogado.
Especialista na área, o advogado Guilherme Marcondes Machado, do Marcondes Machado Advogados, concorda que o tribunal ficou mais flexível em função da instabilidade econômica. "Até porque os juízes não são robôs. Eles têm de levar em conta o peso social de suas decisões. Uma falência impacta em demissões, recolhimento de tributo, custo do crédito. Se o juiz aplicar a literalidade da lei, ele estará protegendo o credor, mas em contrapartida poderá prejudicar muito mais gente", pondera.
Marcondes Machado acrescenta que os credores têm preferido os deságios mais agressivos - com a contrapartida de receberem em menos tempo - do que os planos com longo prazo para o pagamento. "No Brasil há uma instabilidade gigantesca. Não sabemos o que vai acontecer daqui duas, três semanas. Imagine um plano com mais de duas décadas", afirma. "O credor prefere receber mal do que não receber nada."
Renato Mange, sócio do escritório que leva o seu nome, entende que questões relacionadas a deságio são negociais, de competência do credor e do devedor, e sequer poderiam ser mexidas pelo tribunal. Segundo ele, já há decisões no TJ-SP permitindo carências maiores que dois anos - o que também contraria a jurisprudência.
Isso ocorreu, por exemplo, em um caso julgado pela 1ª Câmara, em que um credor quirografário contestou o prazo de quatro anos que havia sido fixado no plano de recuperação de uma empresa do setor de engenharia.
O entendimento predominante do tribunal era no sentido de que o prazo de carência para o pagamento aos credores não poderia ser maior que o período de fiscalização das empresas em recuperação. Isso porque elas têm de cumprir, nesse período (que é de dois anos) todas as obrigações previstas - sob pena de ter a falência decretada.
Mange considera, no entanto, que não há relação entre as duas questões. "Porque mesmo se a empresa não cumprir o plano depois de encerrada a recuperação, o credor pode pedir a sua falência."
Para o advogado Rodrigo Quadrante, do Leite, Tosto e Barros Advogados, não há, no entanto, "fórmula pronta" do que será aceito ou reprovado pelo tribunal. "O caso depende da realidade econômico-financeira da empresa e do mercado em que ela está incluída."