A Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, que trouxe para o ordenamento brasileiro o instituto da recuperação judicial, além de regular a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária (LRJF), revogou a longeva Lei de Falências (Decreto-lei 7661, de 21 de junho de 1945), e fez brotar a expectativa, de que se abrisse a oportunidade de as empresas com dificuldades financeiras acordarem voluntariamente, com seus credores, a forma de pagamento de sua dívida[1]. Consoante a lei pretérita, cabia ao magistrado aprovar o plano de recuperação judicial, enquanto que a lei atual determina que os próprios credores o façam, além de estabelecer pressupostos mais claros para que a concordata possa ser requerida, entre os quais figura a comprovação de existência de crise financeira.
Inobstante a lei atual ser considerada uma lei moderna e avançada em matéria de crise de empresas, transcorridos 17 anos de sua vigência[2], não se pode ignorar a existência de percalços. Das empresas que requerem recuperação judicial no Brasil, menos que 5% se endireitam e retornam às suas atividades, exitosamente (Corporate Consulting); as demais, mormente, em razão da longa tramitação processual, transformam-se em fantasmas viventes. Diferentemente, nos Estados Unidos da América, a recuperação das empresas beira os 89% (dados de 2002 a 2011 da Harvard Business Review).
A principal queixa é a utilização pouco ortodoxa das possibilidades concedidas pela lei, que permite à empresa devedora procrastinar o pagamento da dívida e obter sua novação, chegando perto da institucionalização do calote. Sucedeu no caso o descrito no brocardo italiano: fata la legge, trovato l’inganno (feita a lei, encontrada a brecha). Esse estado de coisas torna-se possível por:
(i) nem sempre os credores possuírem a visão clara da recuperabilidade ou não da empresa;
(ii) mesmo em havendo certeza da inviabilidade de tal recuperação, administradores não se pejam em onerar a própria empresa, os credores e, em última análise, o erário público;
(iii) não ser incomum, os planos contemplarem altos percentuais de deságio, perdão de dívidas, falta de correção monetária, juros ínfimos ou nulos, prazos excessivamente dilatados, carências enormes e oneração excessiva dos credores;
(iv) às vezes, faltar preparo e especialização, respectivamente aos administradores judiciais e aos juízes que analisam os requisitos e deferem o processamento do plano de recuperação judicial.
Ultimamente, a solvência das empresas vem sendo prejudicada pela crise econômica que vem grassando no Brasil, desde 2015; bem como pela dificuldade na obtenção de crédito. Esses fatores tem ampliado substancialmente o número das recuperações judiciais. Cotejando as duzentas recuperações deferidas em 2007, com as 1816 ajuizadas em 2016 (dados da Serasa Experian), verifica-se o aumento recorde de 831%, unicamente no lapso de tempo de nove anos.
Uma das tônicas da LRJF é o princípio da autonomia dos credores, que dispensa a necessidade de fundamentar suas decisões, por conhecerem eles, melhor que ninguém, os meandros da situação e deverem estar atentos à defesa de seus interesses. As principais emanações do referido princípio, ínsito na LRJF, são a Assembleias dos Credores (AGC) e o Comitê de Credores. O nó górdio da lei é a soberania da decisão dos credores na AGE, de um lado, e a aprovação do Plano de recuperação judicial e o controle da legalidade formal, material ou substancial pelo magistrado, de outro. Alguns consideram soberana a decisão assemblear, cabendo ao juiz apenas a homologação. Para outros, o magistrado poderia julgar o mérito do Plano, verificando sua factibilidade econômica e, no final aceitando-o ou rejeitando-o. A posição intermédia parece ser a melhor. Deixando de lado os extremos - mero validador ou senhor da livre decisão sobre o Plano, ignorando a decisão dos credores -, cabe ao magistrado rejeitar o Plano se o mesmo ferir princípios como o da isonomia, da proporcionalidade e da razoabilidade; sendo ilegal, viciado ou abusivo. Exemplificativamente, quando há tratamento diferenciado com relação a credores de mesma classe, o pars conditio creditorum (igualdade entre os credores) é desconsiderada, maculando-se o respectivo Plano.
Defeito estrutural da LRJF, responsável muitas vezes pela apresentação de Planos exorbitantes é não fixar parâmetros ou exigir requisitos mínimos ao Plano, principalmente no que tange a prazo de pagamento, deságio, juros, carência, correção monetária etc. Não é incomum planos com haircutsbeirando a 90%, pagamentos a perder de vista, carência longuíssima e inexistência de juros e correção monetária.
O Poder Judiciário precisa estar vigilante, por ser muito tênue a linha que separa a leniência com relação a Planos imoderados e a intervenção ilimitada. O Judiciário ao não homologar Planos com previsões ilegais, desproporcionais e excessivas estará: (i) desencorajando a tentativa de novar dívidas, se não existir embasamento legal, financeiro ou econômico; e (ii) incentivando empresas a apresentarem Plano coerente e exequível, apto a permitir o pagamento de credores, a retomada do vigor financeiro e a continuidade das atividades empresariais, com credores e trabalhadores satisfeitos[3]. Em assim sendo, o custo Brasil será minorado e a sociedade e a economia brasileiras favorecidas. Tal não sucederá, sem o trabalho conjunto de operadores do direito, da economia, da administração de empresas e das ciências contábeis e atuariais, para: (i) alertar mais amplamente sobre o problema; (ii), indicar caminhos, tanto para a interpretação da lei vigente, quanto para sua emenda parcial; (ii) impulsionar e normatizar a mediação no âmbito da recuperação judicial; e (iii) disseminar mais amplamente as soluções encontradas. Hodiernamente há vários fóruns em que isso poderá acontecer: institutos de pesquisa e ensino, escolas da magistratura, do ministério público e da advocacia, associações de classe etc.
[1] Teixeira, Tarcísio, “A Recuperação Judicial de Empresas”, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 106/107 p. 181 - 214 jan./dez. 2011/2012, p. 181/214.
[2] “Em 10 anos, quase 7 mil empresas entraram em recuperação judicial no Brasil”, nota veiculado pela Consultor Jurídico, em 13 de junho de 2015.
[3] Ver Bardi, Tamara Luísa, “Recuperações Judiciais”, s. p. c., São Paulo, 2016 (trabalho apresentado no âmbito do Curso de Especialização em Direito e Economia dos Negócios do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (CEDES).
25/05/2017