Em seu segundo mandato como presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva foi pessoalmente cumprimentar o engenheiro Ozires Silva, em um evento com empresários em São Paulo. "Ele pegou no meu braço e disse: companheiro, eu sempre apoiei as privatizações que deram certo", lembra Silva ao contar os bastidores do processo que ele faz questão de frisar que duraram exatos 1.254 dias.
Em 1994, no entanto, Lula (então candidato à eleição presidencial naquele ano) e o atual ministro da Casa Civil, Aloizio Mercadante (então vice na chapa de Lula) faziam parte da campanha contra a privatização da Embraer e apoiaram os movimentos encampados pela prefeitura de São José dos Campos, comandada pela ex-deputada Ângela Guadagnin (PT) e o Sindicato dos Metalúrgicos. Durante todo o processo, segundo Silva, o sindicato instalou um caminhão de som na porta de entrada da empresa e diariamente gritava palavras de ordem contra a privatização.
"Eles estiveram pessoalmente na Embraer para me pedir para não dar prosseguimento ao processo e reclamavam das demissões que iriam acontecer, mas eu garanti ao Lula que iríamos devolver cada emprego com juros e correção monetária", afirma Ozires. Após a privatização, o número de funcionários da Embraer foi reduzido de 9 mil para cerca de 6 mil pessoas. Hoje, a empresa tem um total de 19,3 mil mil empregados, dos quais 14 mil em São José dos Campos.
No dia 7 de dezembro, a privatização da Embraer completou 20 anos. Poucos sabem, mas os bastidores do processo revelam que em vários momentos ele esteve a ponto de ir por água abaixo e a empresa, que hoje se apresenta ao mundo como a terceira mais importante fabricante de aviões comerciais do planeta, correu um grande risco de desaparecer, afirma Ozires, fundador e o principal articulador da privatização da companhia.
"Até meu enterro simbólico eles fizeram. No dia da privatização fomos apedrejados na entrada da Bolsa de Valores de São Paulo". Ao final, conta, estava fisicamente e moralmente esgotado. "Os novos acionistas me pediram com insistência para continuar no comando da companhia, mas eu estava arrasado", disse.
Em nota enviada ao Valor, o atual presidente da Embraer, Frederico Fleury Curado, afirmou que a companhia fatura hoje cerca de dez vezes o que faturou em seu melhor ano como empresa estatal, além de empregar mais de três vezes a quantidade de pessoas que empregava. "A Embraer investe mais de dez vezes o que investia e tornou-se uma marca reconhecida em todo o mundo, não apenas no mercado de aviação comercial, como no de aviação executiva e de defesa e segurança", completou.
O empresário Manoel de Oliveira, hoje presidente da Sygma Engenharia, em São José dos Campos, foi escolhido por Ozires Silva para ser seu braço direito na tarefa de viabilizar a privatização. Entre os 32 diretores e gerentes da companhia, no entanto, Oliveira era o único que não tinha formação em engenharia no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica).
Em meio a uma maioria onde predominava o pensamento racional, sua primeira façanha foi convencer os líderes de que o estudo da neurolinguística seria um passo importante para angariar o apoio dos empregados para a privatização. A estratégia deu tão certo que a área de Recursos Humanos, comandada por Artur Coutinho (hoje vice-presidente executivo de operações da Embraer) expandiu o curso de neurolinguística para os principais líderes da empresa, cerca de 110 pessoas.
Até os dirigentes do Sindicato dos Metalúrgicos foram convidados. "A ideia era mostrar que nós éramos transparentes e que precisávamos mudar a nossa mentalidade de uma sociedade protegida pelo Estado para uma situação de mercado", explica Oliveira.
Entre as cenas marcantes do curso, Oliveira lembra o momento em que alguns dirigentes do sindicato choraram e outro em que Ozires Silva se sentou no chão com os sindicalistas. O treinamento em neurolinguística conquistou os empregados e rapidamente o curso atingiu 1200 pessoas, cerca de 20% do quadro de funcionários da época.
O passo seguinte foi criar um movimento de apoio da sociedade para salvar a Embraer, mas a mensagem de fundo era a privatização. Com o apoio do sindicato, a Embraer conseguiu colher, em 90 dias, mais de 1 milhão de assinaturas. "O movimento de um milhão de assinaturas foi fundamental porque conscientizou o empregado e a comunidade de São José dos Campos", disse. Até um avião Tucano foi instalado na Avenida Tiradentes, em São Paulo, para colher assinaturas para salvar a Embraer da falência.
Outra iniciativa criada por Manoel de Oliveira para favorecer a privatização foi a frente parlamentar para apoio à Embraer, liderada pelo então gerente Frederico Curado. "Precisávamos do apoio dos políticos e o Fred foi deslocado para Brasília com essa missão que durou cerca de um ano", conta. Para Oliveira, Curado começou a desenvolver a sua carreira de presidente da companhia naquele momento.
"Ali ele desenvolveu uma capacidade que é fundamental em qualquer líder, que é a articulação da boa política", explicou. Curado também foi o primeiro presidente do Clube de Investidores da Embraer, que congregava as ações da companhia.
Mesmo com todas as dificuldades que a empresa passava e uma dívida de US$ 2 bilhões, Oliveira conta que a Embraer nunca deixou de pagar os salários em dia. "Nós precisávamos do empregado e ele tinha que sentir que a empresa continuava viva", explicou.
Sem pagar os fornecedores (80% do exterior), a Embraer corria o risco de bloquear completamente. A primeira medida financeira foi a operação de "debt swap" (conversão de dívidas). Na época o governo abriu a oportunidade para alguns bancos credores do país usarem os papéis da dívida para gerar um empréstimo a uma empresa brasileira que fosse estratégica.
Nesse caso, segundo Oliveira, o Banco do Brasil teve um papel fundamental, pois usou os títulos da dívida externa para fazer um empréstimo à Embraer no valor de US$ 407 milhões. "Com esse dinheiro pagamos os fornecedores e a empresa voltou a produzir. Tínhamos problemas até com a compra de turbinas para os aviões", lembrou.
A operação foi aprovada pelo então presidente Fernando Collor de Melo, que foi à Embraer pessoalmente entregar o cheque e diante dos empregados disse: "Aqui está a salvação da Embraer".
Os recursos também ajudaram a Embraer a prosseguir no desenvolvimento da família de jatos regionais ERJ-145, projeto que mais tarde seria o responsável pela grande virada da empresa rumo à liderança mundial no segmento de aviões de 50 passageiros. "A Embraer estava mal e não tinha produtos. O ERJ-145, felizmente, foi uma aposta acertada", diz Silva.
Outro impasse enfrentado pela Embraer pré-privatização foi convencer quase 70% dos oficiais generais da FAB, receosos de que a empresa poderia ser vendida ao capital estrangeiro após anos de investimentos do governo. "As regras da privatização, segundo Oliveira, de certa maneira, acalmaram os militares."
Primeiro foi a 'golden share', ação especial que protege a Embraer com relação à venda para o capital estrangeiro, e segundo foi que nenhuma empresa internacional concorrente da Embraer direta ou indiretamente poderia participar da privatização. Após a operação de "debt swap", o diretor financeiro da Embraer fez o lançamento internacional de ações limitada a US$ 100 milhões. Os principais investidores foram o Bank of America, Continental Bank, Bank of Tokio e Banco ABC.
Fábrica na China foi um marco no processo de internacionalização da Embraer, hoje entre as quatro maiores do setor
Outra medida para salvar Embraer foi a recuperação de créditos que a companhia tinha pela venda de aviões que não recebia. Por meio de uma operação classificada de "mágica" pelo diretor, a Embraer conseguiu recuperar US$ 40 milhões da venda de aviões Tucano para Angola com o pagamento feito em petróleo. O produto era repassado para a Petrobras que emitia o crédito à Embraer. A mesma coisa foi feita com o Egito, mas neste caso, o pagamento foi feito com papéis da dívida brasileira. O dinheiro foi repassado à Embraer pelo Banco Central.
Nenhum movimento na fase pré-privatização da Embraer, no entanto, segundo Oliveira, foi mais polêmico do que a emissão de US$ 89 milhões de debêntures conversíveis em ações. Com o valor da ação negociado a US$ 0,03, os 27 debenturistas da empresa efetivaram a opção de conversão, o que causou desequilíbrio na proporção máxima de um terço de ações ordinárias e dois terços de preferenciais.
"Mais de 90% do capital da Embraer acabou caindo nas mãos dos debenturistas. O que significava que a Embraer já estava privatizada", relata o ex-diretor da empresa.
Segundo Oliveira, embora houvesse um parecer jurídico na época dizendo que as ações preferenciais jamais teriam direito a voto e, portanto, o controle, a Lei das S.A garantia o direito de voto das ações preferenciais quando uma empresa tivesse prejuízo por dois ou três anos consecutivos. E este era o caso da Embraer.
"De um lado tínhamos a proteção de uma lei e de outro uma dúvida", comentou. Na dúvida e para garantir que a empresa não fosse privatizada dessa forma, Oliveira conseguiu fazer o que parecia impossível. Convenceu pessoalmente cada um dos debenturistas a voltar atrás na conversão, menos três. "Tenho um parecer do Tribunal de Contas da União dizendo que esse foi um ato heroico", orgulha-se o ex-diretor.
Por meio de um acordo com a Embraer, um banco, que Oliveira prefere não citar o nome, recomprou as ações dos debenturistas com o compromisso de vender as debêntures no mercado e devolver o dinheiro para a Embraer. Para convencer os debenturistas a Embraer conseguiu que o Tesouro Nacional fornecesse garantias a essas debêntures.
"Se a gente não tivesse feito essa operação, a privatização não teria acontecido e a empresa teria morrido", relembra. Segundo Oliveira, alguém tinha de assumir esse risco e ele decidiu fazer isso. "O que ninguém esperava era que o banco fosse falir", disse. A compra das debêntures foi feita com depósitos que a Embraer tinha no banco. Essa operação, classificada por Oliveira como o último recurso para salvar a Embraer da falência, não foi bem entendida pela Justiça. Ele ficou vários anos tentando se explicar, mas, felizmente, tudo acabou bem, ressalta.
Vinte anos depois, a Embraer tem valor de mercado de R$ 17,9 bilhões (US$ 6,8 bilhões), com base no fechamento de ontem. Em um ano que o Ibovespa, principal índice da bolsa brasileira, tem queda em torno de 3%, as ações da Embraer sobem 28%. "O tempo mostrou que a iniciativa da privatização era necessária. Sem as amarras da legislação que ingessavam as empresas de economia mista, a Embraer teve sucesso garantido no mercado internacional", afirma Silva. Isso, segundo ele, explica em parte a situação de empresas como a Petrobras.